Trago flores e o cabelo ajeitado, tenho meus romantismos. Vesti minha melhor camisa e a mais fácil de arrancar, é preciso ser otimista. Desculpe não ter feito a barba. Fazer a barba, de todas as urgências do mundo, me parece agora ser a última.
Espero. Ela vai estranhar muito quando abrir a porta. Você?! Um abraço demorado, quem sabe? E o que direi a ela depois que ela disser: que surpresa, tudo bem? Talvez diga: tanto tempo que a gente não se fala. Essa loucura toda, ainda mais com…
Eu lhe darei as flores. Ela sorrirá meio sem graça. Importante: não desviar os olhos, não agora, não mais. Que lindas, não precisava. Verdade: não precisava, mesmo. Mas entre, se sente. Quer tomar alguma coisa? Quero: você. Seus olhos entre assustados e impressionados. Ouça (lhe digo): E o meteoro, você viu? Claro, só se fala nisso, o tempo todo. Que doidice. Um bólido gigante, do tamanho de Minas. E a Terra no meio do caminho. Ouvi falar que daqui a 14 dias. Então. Eu queria te abraçar e te beijar e quem sabe. Uma vez. Uma única bendita que seja. Quem sabe a gente se perca um no outro, nesse redemoinho se exploda e suma. A pedra imensa já passou a constelação de Centauro, vamos.
No seu olhar haverá 75% de dúvida. Ainda tenho chance.
Agora é que não vou recuar. Ding-dong (só há duas campainhas em todo o mundo: “téééé” ou “ding-dong”, disso não se pode escapar).
Vinte, sessenta e seis, duzentos e oito. Já esperei segundos demais, só não quero esmurrar a porta e parecer precipitado, um alucinado em desespero. Desde que a notícia vazou, o mundo enlouqueceu, gente correndo sem rumo, arrancando a roupa, pulando no precipício. E eu faria tudo muito, muito devagar. Alisaria os cabelos com calma, como se fosse a última coisa que eu faria — de fato, talvez fosse a última. Daria um abraço de braços longos, que te protegeria da vida, do vírus, balas perdidas, taturanas e do meteoro (ah, é: o meteoro!).
O sol vai ouvir o impacto? Vai sentir nossa falta? O fim das cocadas, dos espirros, cantos e coceiras? O que será do Universo sem nossos gestos? Quem mais chamará aquelas pedras agrupadas em volta de Saturno de “anéis”?
Como é inútil tamborilar os dedos na textura das flores. Olho o relógio, o que se faz numa hora dessas? O tempo é de cortar os pulsos, não de neles carregar um relógio. Arranco, jogo no chão, piso, trituro as horas, traidoras.
Dizem os cientistas que, dias antes, a eletricidade será atraída pelo campo magnético do invasor. Os fios nos postes vão soltar raios coloridos, os cabelos ficarão de pé, espetados para o alto. TVs, celulares e computadores pifarão, não vamos poder acompanhar nos noticiários. Atenda, por Deus. Haverá revoadas de pássaros buscando um inútil porto seguro. Do tamanho de Minas. Dizem que horas antes vai faltar ar. Não seremos então testemunhas do impacto? Qual a vantagem de estar vivo nesse momento?
Suas coxas, boca e ombros. Mesmo seu nariz torto. Você é a coisa mais linda do mundo que breve não haverá mais. Digo “coisa” ou procuro definir melhor? Atenda, por favor.
Não deve ter ninguém em casa. Deve ter saído, talvez para comprar três garrafas de gim para horas antes se embebedar e perder a consciência, pode ser. Ou talvez tenha se jogado da janela. Alguém disse que todos os narizes do mundo iriam sangrar ao mesmo tempo. Que maçada, já gastamos todos os lenços em choros de inconsolável lamento.
Talvez ela até faça por amor, não por desejo, apenas por despedida, ou desespero, por compaixão aos últimos momentos da espécie humana. Então a última flor se abriria sobre a terra.
Ding — e, antes mesmo do dong, uma vizinha de apartamento abre a porta: Fulana? Nã-não soube? Aaaaaaaahhhh! — e sai correndo, a descer as escadas de três em três degraus. O cachorro logo atrás, ganindo, a adivinhar tudo.
O meteoro, a um milhão de quilômetros por hora. Vinte e quatro milhões de quilômetros por dia, se acerto, nunca fui bom de matemática. E de outras coisas também.
Nada mais a fazer. Saio do prédio, jogo as flores na rua. Surpreendentemente, elas não caem no chão. Sobem. Levantam voo, feito um balão com gás hélio. O perfume fica a meu alcance, mas as flores não: sobem para o alto, cada vez mais, sem deixar cair uma única pétala.
Levam consigo o recado. Quem sabe o sentimento detenha o maldito.