…eu não poderia preparar este corpo, mas só eu e meu marido somos do ramo na cidade, nós atuamos juntos nos funerais, dividindo o serviço, se o morto é homem, ele quem cuida do banho e da desinfecção, se é mulher, a tarefa cabe a mim; alguém, nem sei quem — as palavras dos moradores, nas últimas horas, se emaranharam de dor, uma morte como esta é um fato dilacerante e assombra todos —, alguém disse que o menino deveria ser levado a Ribeirão Preto, mais de uma hora de viagem até lá, como se não tivéssemos condições de aprontar aqui a criança para o velório, não é a nossa primeira vez, já enfrentamos outros desafios (o padre, a tia Cora, o indigente atropelado), embora João, sem uma palavra, me pediu com os olhos que o substituísse, e, ele tem razão, o trabalho em dupla, desta vez, ao contrário de outras ocasiões, seria mais difícil, o tremor de umas mãos passaria para as outras, entre pessoas tão íntimas o abalo contagia, melhor que apenas um dos dois se incumbisse da tarefa. E, como mulher, que tirou do próprio ventre um filho e o entregou ao mundo, sei visceralmente, nesta minha posição, acomodar melhor, no útero cálido da terra, quem, até há pouco, estava vivo e brincava. Igual ao primeiro banho num bebê recém-nascido, começo pelo rosto. O rosto. É por ele que reconhecemos uma pessoa, nos reconhecemos na expressão dos pais ou na de quem geramos, ou mesmo nos desconhecemos diante do espelho; o rosto expõe as linhas ancestrais e os traços futuros, embora pela voz, se não silenciada como a deste menino, possamos também identificar seu dono. Desço devagar pelo rosto, devagar porque não há mais pressa, passo a ponta do dedo sobre o corte em sua testa — é por esta ferida que a vida saiu —, e o limpo com máxima delicadeza, como se ele ainda pudesse sentir alguma fisgada de dor; lavo as pálpebras e penso que os olhos, quando abertos, não foram muito além das pontes de entrada e saída da cidade sobre o Rio das Cobras, do cume do Morro Preto lá adiante, do pedaço de céu que se estende sobre o nosso vilarejo — e até onde a vista é capaz de alcançar o azul deixando de ser azul e se diluindo no esfumado das lonjuras, não foram muito além, os olhos dele, de umas paisagens vizinhas, umas lavouras cercanas, o mundo para uma criança, para qualquer criança, está ainda em novelo, à espera de que o desfie, pouco a pouco, no rápido-lento do crescer; lavo o nariz, as maçãs da face, a boca, as orelhas, e penso na mãe e no pai, a mistura de ambos aqui está (e logo não mais estará), as sobrancelhas grossas e a pele morena são marcas da família de um, os lábios finos e o queixo oval iguais aos da outra. Agora, agora os cabelos, castanhos escuros, como fios de sol no ar queimado do entardecer, desalinhados pelo vento quando ele passava às carreiras lá fora com os outros meninos, farreando pela rua principal, aos gritos e assovios, sendo todos, para nós, meninos-instantes, que, daquele jeito, alegres e ruidosos, nos tiravam das horas-mortas; meninos e vento são sempre assim, amigos, travessos, o vento subitamente arranca chapéus, ergue saias, derruba vasos, e os meninos nos põem, de repente, sorrisos de novo nas feições casmurras, nos abrem comentários divertidos e cúmplices por serem eles quem são, vidas verdes, abertas para o insólito; e os meninos daqui, curiosos, sempre gostaram de entrar em nossa venda, sem a reserva e o medo dos pais, que continuam a manter distância de nós, como se fôssemos emissários da morte, apesar de que, depois lhes servir em velórios, não cessam de nos agradecer pelo arranjo de flores no caixão, a maquiagem sóbria no falecido, a discrição dos nossos movimentos no enterro. Deslizo pelo pescoço, passando o pano umedecido em suas dobras (de pouco vinco), o pomo de adão eu quase nem sinto, de dentro da garganta vinha a voz dele, a voz procurando seu tom, sua afinação adulta (que jamais será alcançada); e, agora, a parte de trás, a nuca, a nuca, nada é mais vulnerável que uma criança de costas, sobretudo a sua nuca à vista, se os cabelos não a cobrem. O tronco. E, no tronco, as costelas aparentes, magrinho era o menino, os peitos tenros, o umbigo que um dia o unia à mãe, e, especialmente, o coração. O coração. Ápice do contentamento é, para os pais, ouvir, pelo ultrassom, as batidas do coração de seu bebê, a caminho da luz; mas, como em todas as vezes neste ofício, eu só registro com a palma da mão — o destino concluindo enfim estas linhas —, o oposto, o frio e rígido silêncio dos mortos, o dínamo pulsante sob a pele transformado num pássaro de pedra. Os braços, os dele como o de outras crianças, curtos, finos e frágeis, nascendo dos ombros como asas, as axilas macias (já enrijecidas), e, na ponta, as mãos pequeninas, e, entre os dedos da direita, meses atrás, o lápis a escrever pela primeira vez o próprio nome (e o lápis, sem quem o aponte e o use, ficará no estojo sem serventia), as unhas, que deveriam ter sido aparadas dias atrás, corto-as neste momento, uma a uma, para que, ao enlaçar os dedos dele sobre o ventre, revelem não só o nosso cuidado, meu e de João, com os detalhes, mas, também, o respeito e o carinho pelo seu corpo de criança. Sigo pela pélvis, pelas virilhas, pela genitália, áreas tão íntimas, e, apesar de já habituada, penso por ora nas coisas não florescentes, que ele jamais conhecerá, como outros meninos que se tornarão adultos — a plenitude do prazer, a morte lhe negando tantas experiências sensoriais, um imenso rol de emoções desconhecidas para sempre. As pernas. Delgadas, compridas para a idade, sinal de que, se chegasse a homem, o menino seria alto, igual ao pai; no joelho direito, marcas de machucados leves, com exceção deste ferimento recente; eu e João vimos, pela janela, quando ele caiu da bicicleta, tão pequena a cidade, tudo a gente testemunha, estamos situados na rua principal, e, se não flagramos os fatos no seu imediato acontecer, depois nos contam, tudo se sabe aqui, ao menos tudo que interessa para dar lastro às conversas entre os poucos habitantes, sejam vazias, sejam opressivas, porque as palavras aí estão para nos lembrar que estamos vivos; entre uma e outra, o silêncio vai ganhando força para, um dia, engolir todas. Eu não poderia realizar este trabalho, mas, senão eu ou João, quem o faria? Mesmo com estes anos todos de experiência, eu não estava preparada — nunca estamos, aprendi desde que entramos neste ramo —, e, no entanto, já estou no fim, não importa se me doendo toda, e João, sôfrego, do outro lado da porta, me aguardando, dilacerado. Diferente, bem diferente do primeiro banho que se dá em uma criança, água morna na bacia, este último é quase a seco, e a água neste caso é até desnecessária, pouco útil à ablução, mas gotejou sem parar sobre o corpo deste menino, gotejou e goteja ainda de mim, enquanto eu termino de lavá-lo, o meu menino…