Bábi Iar

Leia o poema traduzido "Bábi Iar"
Ilustração: FP Rodrigues
02/11/2020

Tradução: André Rosa

Nenhum monumento se ergue em Bábi Iar.
Um penhasco íngreme, feito lápide áspera.
Tenho medo.
Hoje tenho tantos anos
quanto o próprio povo israelita.
Vejo-me agora como
judeu.
Eis que perambulo pelo antigo Egito.
E eu, pregado à cruz, pereço,
ainda tenho em mim as marcas de pregos.
Vejo-me como
Dreyfus.
O filisteu
é meu delator e juiz.
Estou atrás das grades.
Estou cercado.
Intimidado,
humilhado,
caluniado.
E as damas em rendas de Bruxelas berram
enquanto furam-me o rosto com guarda-chuvas.
Sinto-me como
uma criança em Bialystok[1].
O sangue escorre, se espalha pelo chão.
Chefetes de botequim em raiva desimpedida
entre cheiros de vodca e cebola.
Apanho com pontapés, impotente.
Aos carrascos[2], suplico em vão.
Enquanto berram
“Esmaguem os judeus, salvem a Rússia!” —
um muambeiro violenta[3] a minha mãe.
Ó, meu povo russo!
Eu sei —
vocês são
internacionalistas em sua essência.
Mas, aqueles cujas mãos são sujas
chacoalham com o seu puríssimo nome.
Eu conheço a bondade da sua terra.
Quão vil são os
antissemitas que suntuosamente chamam
a si próprios de “União do povo russo”!
Vejo-me como
Anne Frank,
frágil
como um ramo em abril.
E amo.
Não preciso de palavras.
O que preciso
é que nos olhemos nos olhos.
Tão pouco se pode ver,
cheirar!
As folhas nos são proibidas
e o céu também é impossível.
Podemos, contudo,
gentilmente
abraçarmos uns aos outros num quarto escuro.
Estão chegando?
Não tenha medo, são ruídos
A própria primavera
virá até aqui.
Venha até mim.
Depressa, me dê os seus lábios.
Estão quebrando a porta?
Não, é o gelo se partindo…
As ervas selvagens murmuram sobre o Bábi Iar.
As árvores soam sinistras
como num julgamento.
Há no silêncio um grito sem fim,
e, tirando o chapéu,
eu
encaneço aos poucos.
Eu mesmo,
feito um berro surdo e incessante
sobre milhares e milhares de enterrados.
Eu sou
cada velho aqui abatido à bala.
Eu sou
cada criança aqui abatida à bala.
Nada disso será esquecido
por mim!
Deixem a “Internacional”
trovejar
quando for enterrado para sempre
o último antissemita da terra.
Não tenho uma só gota de sangue judeu.
Mas, em seu ódio insano, todos os antissemitas
neste momento me odeiam,
como a um judeu,
e por isso
eu sou um verdadeiro russo!

[1]  Região onde ocorreu um dos mais violentos pogroms, uma versão russa da Noite dos Cristais.

[2] No original, погромщик, palavra derivada de pogrom, que se refere àqueles que atacavam judeus.

[3]  No original em russo, o verbo насиловать pode significar “coagir”, “constranger”, mas também “violar” e “estuprar”. Optei por manter a ambiguidade com a palavra “violentar”.

 

Ievguêni Ievtuchenko

Nascido em Zimá, na Sibéria, estreou na poesia aos 20 anos, com Os exploradores do futuro (1952). Após a morte de Stalin, tornou-se símbolo da juventude soviética inconformada com os resquícios do período ditatorial e chegou a falar para mais de 100 mil pessoas no antigo Estádio Central Lênin de Moscou. O poema Bábi Iar (1961) denuncia o silêncio da imprensa e dos círculos oficiais à época acerca de um subúrbio de Kiév, na Ucrânia, transformado em campo de concentração nazista. No Brasil, alguns de seus versos estão disponíveis na antologia Poesia russa moderna (1968), com tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. Já de sua prosa foram publicados os livros Autobiografia precoce (Brasiliense, 1984), Os frutos selvagens da Sibéria (Nova Fronteira, 1984) e Não morra antes de morrer (Record, 1999).  Ievtuchenko morreu em 2017, nos Estados Unidos, aos 84 anos.

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