Poemas de Adrienne Rich

Leia os poemas traduzidos "Esta noite nenhuma poesia servirá", "Atrás do motel", "Paisagem perfeita", "Vigilância noturna", "Novembro de 1968"
Adrienne Rich, poeta norte-americana
28/08/2015

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Tonight no poetry will serve

Saw you walking barefoot
taking a long look
at the new moon’s eyelid

later spread
sleep-fallen, naked in your dark hair
asleep but not oblivious
of the unslept unsleeping
elsewhere

Tonight I think
no poetry
will serve

Syntax of rendition:

verb pilots the plane
adverb modifies action

verb force-feeds noun
submerges the subject
noun is choking
verb     disgraced     goes on doing

now diagram the sentence

Esta noite nenhuma poesia servirá

Te vi andando descalça
dando uma longa olhada
para as pálpebras da lua nova

depois esparramada
dormindo pesado, nua em seus cabelos negros
dormindo mas não ignorante
dos que não dormiram não dormem
por aí

Hoje eu penso
nenhuma poesia
servirá

Sintaxe da rendição:

verbo pilota o avião
advérbio modifica a ação

verbo alimenta o substantivo à força
submerge o sujeito
substantivo sufocando
verbo     desgraçado     segue fazendo

agora diagrame a frase

…..

Behind the motel

A man lies under a car half bare
a child plays bullfight with a torn cloth
hemlocks grieve in wraps of mist
a woman talks on the phone, looks in a mirror
fiddling with the metal pull of a drawer

She has seen her world wiped clean, the cloth
that wiped it disintegrate in mist
or dying breath on the skin of a mirror
She has felt her life close like a drawer
has awoken somewhere else, bare

He feels his skin as if it were mist
as if his face would show in no mirror
He needs some bolts he left in a vanished drawer
crawls out into the hemlocked world with his bare
hands, wipes his wrench on an oil-soaked cloth

stares at the woman talking into a mirror
who has shut the phone into the drawer
while over and over with a torn cloth
at the edge of hemlocks behind the bare
motel a child taunts a horned beast made from mist

Atrás do motel

Um homem está debaixo de um carro seminu
uma criança brinca de tourada com um pano rasgado
pinheiros enlutados envoltos na névoa
uma mulher fala ao telefone, olha no espelho
brincando com o puxador metálico da gaveta

Ela viu o seu mundo esfregado e limpo, o pano
que o limpou desintegrado na névoa
ou dando o último suspiro na crosta de um espelho
Ela viu sua vida se fechar como uma gaveta
acordou em algum outro lugar, nua

Ele sente sua pele como se ela estivesse na névoa
como se seu rosto se mostrasse em espelho algum
Ele precisa dos parafusos que largou numa gaveta perdida
rasteja para dentro do mundo dos pinheiros com suas mãos
apenas,  esfrega sua chave-inglesa com um pano encharcado de óleo

encara a mulher falando no espelho
a qual trancou o telefone na gaveta
enquanto de novo e de novo, com um pano rasgado
na beira do pinheiral atrás do motel depauperado
uma criança provoca a besta chifruda feita de névoa

…..

Ideal landscape

We had to take the world as it was given:
The nursemaid sitting passive in the park
Was rarely by a changeling prince accosted.
The mornings happened similar and stark
In rooms of selfhood where we woke and lay
Watching today unfold like yesterday.

Our friends were not unearthly beautiful,
Nor spoke with tongues of gold; our lovers blundered
Now and again when most we sought perfection,
Or hid in cupboards when the heavens thundered.
The human rose to haunt us everywhere,
Raw, flawed, and asking more than we could bear.

And always time was rushing like a tram
Through streets of a foreign city, streets we saw
Opening into great and sunny squares
We could not find again, no map could show —
Never those fountains tossed in that same light,
Those gilded trees, those statues green and white.

Paisagem perfeita

Nós precisávamos aceitar o mundo como ele era:
A babá sentada passiva no parque
Era raramente abordada por algum príncipe de mentira.
As manhãs pareciam iguais e imutáveis
Nas salas da individualidade nas quais acordávamos e ficávamos
Observando hoje se desdobrar como ontem.

Nossos amigos não eram beldades do outro mundo,
Nem sabiam seduzir com palavras; nossos amantes falharam
Agora e sempre quando o que mais buscamos é a perfeição,
Ou nos esconder no armário, quando os céus trovejavam.
A humanidade surgia para nos assombrar em todos os lugares,
Crua, defeituosa e exigindo mais do que podíamos dar.

E o tempo estava sempre em disparada como um bonde
Pelas ruas de uma cidade estrangeira, cidades que vimos
Se abrindo em grandes e ensolaradas praças
Nós não encontraríamos novamente, nenhum mapa poderia mostrar —
Jamais aquelas fontes jorraram sob aquela mesma luz,
Aquelas árvores douradas, aquelas estátuas verdes e brancas.

…..

Night watch

And now, outside, the walls
of black flint, eyeless.
How pale in sleep you lie.
Love: my love is just a breath
blown on the pane and dissolved.
Everything, even you,
cries silently for help, the web
of the spider is ripped with rain,
the geese fly on into the black cloud.
What can I do for you?
what can I do for you?
Can the touch of a finger mend
what a finger’s touch has broken?
Blue-eyed now, yellow-haired,
I stand in my old nightmare
beside the track, while you,
and over and over and always you
plod into the deathcars.
Sometimes you smile at me
and I — I smile back at you.
How sweet the odor of the station-master’s roses!
How pure, how poster-like the colors of this dream.

Vigilância noturna

E agora, do lado de fora os muros
de rocha negra, sem ver.
Com que palidez, dormindo, você jaz.
Amor: meu amor é só um suspiro
soprado na vidraça e dissolvido.
Tudo, até mesmo você
clama silenciosamente por socorro, a teia
da aranha é rasgada pela chuva,
os gansos voam para dentro da nuvem negra.
O que eu posso fazer por você?
o que eu posso fazer por você?
Pode o toque de um dedo remendar
Aquilo que o toque de um dedo quebrou?
Olhos azuis agora, de cabelos amarelos,
eu permaneço em meu antigo pesadelo
ao lado dos trilhos, enquanto você,
e de novo e de novo e sempre você
se arrasta para os vagões da morte.
Algumas vezes você sorri para mim
e eu — eu sorrio de volta.
Quão doce o aroma das rosas do chefe da estação!
Quão puros, quão de pôsteres as cores deste sonho.

…..

November 1968

Stripped
you’re beginning to float free
up through the smoke of brushfires
and incinerators
the unlefead branches won’t hold you
nor the radar aerials

You’re what the autumn knew would happen
after the last collapse
of primary color
once the last absolutes were torn in pieces
you could begin

How you broke open, what sheathed you
until this moment
I know nothing about it
my ignorance of you amazes me
now that I watch you
starting to give yourself away
to the wind

Novembro de 1968

Desnudado
você está começando a flutuar, livre
por cima da fumaça do fogo dos arbustos
e dos incineradores
os galhos desfolhados não poderão segurá-lo
nem o farão as antenas de radar

Você é o que o outono sabia que aconteceria
depois do último colapso
de cor primária
depois que os últimos absolutos foram despedaçados
você pôde começar

Como você abriu caminho, o que o cobriu
até esse momento
eu nada sei sobre isso
minha ignorância a seu respeito me assusta
agora que eu o observo
começar a se entregar
para o vento

…..

Delta

If you have taken this rubble for my past
raking through it for fragments you could sell
know that I long ago moved on
deeper into the heart of the matter

If you think you can grasp me, think again:
my story flows in more than one direction
a delta springing from the riverbed
with its five fingers spread

Delta

Se você pegou este entulho para o meu passado
revolvendo-o em busca de fragmentos para vender
saiba que eu há muito segui em frente
para dentro, para o coração da matéria

Se você pensa que pode me agarrar, pense melhor:
minha história flui em mais de uma direção
um delta do leito do rio se abrindo
com seus cinco dedos abertos

…..

For an anniversary

The wing of the osprey lifted
over the nest on Tomales Bay
into fog and difficult gust
raking treetops from Inverness Ridge on over
The left wing shouldered into protective
gesture the left wing we thought broken

and the young beneath in the windy nest
creaking there in their hunger
and the tides beseeching, besieging
the bay in its ruined languor

Para um aniversário

A asa da águia-pescadora erguida
sobre o ninho na baía Tomales
sob a neblina e a dura ventania
remexendo os topos das árvores da serra de Inverness em cima
A asa esquerda fazendo-se ombro num gesto
protetor a asa esquerda que julgávamos quebrada

e os jovens abaixo do ventoso ninho
lá chiando em sua fome
e as marés  suplicando, importunando
a baía em sua arruinada languidez

…..

1999

Before the acute
point of the severing
I wanted to see into my century’s
hinged and beveled mirror
clear of smoke
eyes of coal and ruby
stunned neck the carrier of bricks and diamonds
brow of moonlit oyster shells
barbed wire lacework disgracing
the famous monument

Behind it spread the old
indigenous map     landscape
before conquerors    horizon ownless

1999

Antes do agudo
ponto do rompimento
eu quis ver no espelho chanfrado
e dependurado de meu século
limpo da fumaça
olhos de carvão e rubi
pasmado pescoço carregador de tijolos e diamantes
fronte de ostras iluminadas de luar
renda traçada de arame farpado, desgraçando
o famoso monumento

Atrás disso se esparrama o velho
mapa indígena     paisagem
antes dos conquistadores      horizonte sem dono

…..

That mouth

This is the girl’s mouth, the taste
daughters, not sons, obtain:
These are the lips, powerful rudders
pushing through groves of kelp,
the girl’s terrible, unsweetened taste
of the whole ocean, its fathoms: this is that taste.

This is not father’s kiss, the mother’s:
a father can try to choke you,
a mother drown you to save you:
all the transactions have long been enacted.
This is neither a sister’s tale nor a brother’s:
strange trade-offs have long been made.

This is the swallow, the splash
of krill and plankton, that mouth
described as a girl’s —
enough to give you a taste:
Are you a daughter, are you a son?
Strange trade-offs have long been made.

Aquela boca

Esta é a boca da garota, o sabor que
filhas, e não filhos, obtêm:
Aqueles são os lábios, lemes poderosos
empurrando através de bosques de algas,
o da garota terrível, não adocicado sabor
do oceano inteiro, suas profundezas: este é aquele sabor.

Este não é o beijo do pai, mas da mãe:
um pai pode tentar sufocar você,
uma mãe afoga você para salvá-lo:
todas as transações foram há tempos decretadas.
Este não é o conto de uma irmã e nem de um irmão:
estranhos acordos foram fechados há tempos.

Este é o engolir, o esparramar
de krill e de plâncton, aquela boca
descrita como a de uma garota —
suficiente para dar a você um sabor:
Você é uma filha? Você é um filho?
Estranhos acordos foram fechados há tempos.

…..

For the record

The clouds and the stars didn’t wage this war
the brooks gave no information
if the mountain spewed stones of fire into the river
it was not taking sides
the raindrop faintly swaying under the leaf
had no political opinions

and if here or there a house
filled with backed-up raw sewage
or poisoned those who lived there
with slow fumes, over years
the houses were not at war
nor did the tinned-up buildings

intend to refuse shelter
to homeless old women and roaming children
they had no policy to keep them roaming
or dying, no, the cities were not the problem
the bridges were non-partisan
the freeways burned, but not with hatred

Even the miles of barbed-wire
stretched around crouching temporary huts
designed to keep the unwanted
at a safe distance, out of sight
even the boards that had to absorb
year upon year, so many human sounds

so many depths of vomit, tears
slow-soaking blood
had not offered themselves for this
The trees didn’t volunteer to be cut into boards
nor the thorns for tearing flesh
Look around at all of it

and ask whose signature
is stamped on the orders, traced
in the corner of the building plans
Ask where the illiterate, big-bellied
women were, the drunks and crazies,
the ones you fear most of all:       ask where you were

Para registro

As nuvens e as estrelas não promoveram esta guerra
os córregos não informaram nada
se a montanha vomitou pedras de fogo no rio
ela não estava escolhendo um lado
a chuva que fracamente balançava sob as folhas
não tinha opinião política

e se aqui ou ali uma casa
repleta de esgoto não tratado
ou que envenenou quem lá vivia
com lentas exalações, ao longo dos anos
as casas não estavam em guerra
nem estavam os prédios lacrados com estanho

buscando recusar abrigo
para velhas sem-teto e crianças de rua
eles não tinham qualquer política para mantê-las na rua
ou morrendo, não, as cidades não eram o problema
as pontes não eram guerrilheiras
as autoestradas queimaram, mas não com ódio

Até mesmo as milhas de arame farpado
esticadas em volta de humilhantes abrigos temporários
projetados para manter os indesejáveis
a uma distância segura, longe da vista
mesmo as tábuas que precisavam absorver
ano após ano, tantos sons humanos

tantos profundos vômitos, lágrimas
sangue lentamente encharcando
não se ofereceram para isso
As árvores não se voluntarizaram para ser cortadas em tábuas
nem os espinhos para rasgar a carne
Olhe em volta para tudo isso

e pergunte que assinaturas
estão estampadas nas ordens, e traçadas
no canto das plantas dos prédios
Pergunte onde estavam as mulheres analfabetas,
barrigudas, as bêbadas e loucas,
aquelas que você teme mais do que tudo:      pergunte onde você estava

Adrienne Rich (1929-2012)
Foi uma das poetas mais lidas e influentes de sua geração, e chamou a atenção desde a primeira coletânea, A change of world, de 1951, que foi premiada por indicação de W. H. Auden. Daí até o último livro, Tonight no poetry will serve, publicado em 2011, seus poemas jamais passaram em branco.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho