A trajetória de Diamela Eltit, autora de Forças especiais e Jamais o fogo nunca, parece estar pautada na vontade de realizar mudanças sociais. Enquanto trabalhava em seu primeiro romance, Lumpérica (1983), a chilena participou do Colectivo de Acciones de Arte, que combateu a ditadura de Augusto Pinochet.
Apesar de se importar muito com as comunidades menos privilegiadas, conforme afirma em entrevista ao Rascunho, e fazer de sua ficção uma maneira de demonstrar as angústias do mundo, Diamela não crê que a escrita, por si só, seja capaz de mudar a sociedade — se fosse, “habitaríamos outros mundos”. “Junto com o conjunto de forças sociais, [a literatura] colabora na busca pela emancipação”, reflete.
Em Forças especiais, a autora dá uma amostra de como busca “encenar o abandono social” em seu trabalho. A obra, lançada em 2021 no Brasil, aborda “o presente dos setores mais excluídos e mais relegados pelos poderes centrais, submetidos ao cerco e vigilância policial”.
Para pontuar essa repressão, a narrativa — encabeçada por uma personagem que se prostitui em uma lan house, numa história marcada por figuras judiadas — é entrecortada por informações a respeito do poder bélico dos opressores, responsáveis pela “metalização do mundo”, conforme trecho do livro.
Além de mostrar a onipresença da polícia, que representa um perigo latente para o bairro periférico em que os personagens vivem, a narrativa sugere como, em uma realidade tecnológica, a pobreza acaba por se acentuar. Fica ainda mais visível, apesar de potencialmente atenuada pelas ilusões do virtual. A tecnologia, afinal, “é comunicação globalizada, é vigilância e é consumo para promover o consumo”, diz Diamela. “Tudo ao mesmo tempo.”
Outro tipo possível de opressão marca o romance Jamais o fogo nunca, que ganhou versão em português em 2017: a causada pela memória, esta que parece poder ser reinventada de acordo com intenções do presente.
Em uma narrativa claustrofóbica, ambientada somente em um cômodo, uma mulher — que vive com o companheiro — lembra de atos políticos libertários do passado, tentando fazer um balanço do que foi ou não conquistado.
“Nada nos incomoda e podemos, com uma atitude verdadeiramente aficionada, refazer certos acontecimentos”, diz a narradora. “Mas devemos ser cuidadosos, omitir, censurar, para assim garantir a nossa sobrevivência. Temos que manter clandestinos os nosso próprios atos, ainda diante de nós mesmos.”
No texto de orelha de Jamais o fogo nunca, Ana Cecilia Olmos, especialista em literatura e cultura hispano-americana do século 20, joga luz sobre a construção de personagens realizada pela chilena: “Como em outros romances de Eltit, a voz feminina, o corpo da mulher e as instabilidades da memória trabalham em favor de um desmantelamento crítico dos dispositivos sociais que, para além do seu signo político, insistem em normalizar qualquer dissonância vital”.
Mesmo que utilize vozes de mulheres para dar corpo às narrativas, Diamela não é fã de rótulos. “Fala-se em ‘literatura feminina’ e esse termo é exclusivo, é uma categoria subsidiária, porque ‘literatura’ (de homens) está em outro lugar”, reflete. “Acho que a literatura deve ser desbiologizada e que o autor seja um dado biográfico, não uma categoria literária.”
• Para alguém que viveu a ditadura de Pinochet, a violenta realidade narrada em Forças especiais — na qual militares tomaram as ruas — seria o pior dos pesadelos? O que é preciso fazer para a história não se repetir?
Na verdade, em Forças especiais abordei o presente dos setores mais excluídos e mais relegados pelos poderes centrais, submetidos ao cerco e vigilância policial. Mas é claro que é uma ficção, uma forma de encenar o abandono social. Um golpe seria o pior pesadelo. Não sei o que poderia ser feito. Mas as histórias, já sabemos, se repetem.
• A narradora de Forças especiais se prostitui em uma lan house. Por que a escolha desse local?
Interessou-me unir pobreza e tecnologia, o presente da pobreza passa e se estrutura tecnologicamente. O cyber é o lugar que apareceu na escrita, foi pertinente para mim, justamente porque mistura virtualidade e sexualidade.
• Menções à internet são constantes em Forças especiais, que se passa em uma realidade opressora. Esta ferramenta está mais para uma forma de controle social ou pode ser utilizada para que as pessoas tenham maior liberdade?
Ambos os aspectos. Tecnologia é comunicação globalizada, é vigilância e é consumo para promover o consumo. Tudo ao mesmo tempo.
• O título de Jamais o fogo nunca vem de um verso do peruano César Vallejo (1892-1938). Qual sua relação com a poesia?
A poesia tem esse poder de gerar grandes espaços a partir de uma síntese extrema. Leio poesia e isso me fascina.
“Não ouso dizer que há um benefício para a literatura quando se desencadeiam pandemias ou ditaduras, mas se pode textualizar e tornar visíveis a angústia e a destruição.”
• Quais autores e autoras da América Latina mais inspiraram suas obras?
Juan Rulfo foi essencial como leitura.
• A narrativa de Jamais o fogo nunca, com atenção aos pequenos movimentos e sons, potencializa a sensação claustrofóbica oferecida pela história, que se passa em um quarto. Como chegou a essa estrutura?
Apareceu e, claro, foi uma coisa complexa manter a narrativa basicamente em uma única peça. Mas ativar a memória dos personagens foi fundamental. Foi um pouco claustrofóbico, mas, na verdade, escrever é um risco.
• No texto de orelha de Forças especiais, o romance é definido como “triste” e “escuro”. No prólogo de Jamais o fogo nunca, Julián Fuks considera o livro “visceral” e “íntimo”. São palavras que definem bem sua intenção ao produzir essas obras?
Sim, parecem-me muito pertinentes.
• O processo de escrever ensaios e literatura de ficção, mesmo quando tratam de temas semelhantes, é muito diferente? Podem ser gêneros que se complementam?
Trabalhei em ensaios literários, não acadêmicos, e isso me dá uma grande liberdade. Trata-se de formular uma cena discursiva fundamentada e coerente. A ficção é muito mais complexa, no meu caso, porque aborda e compromete espaços de vida e atuação que se tornam inteiramente independentes da minha vontade — se libertam, atuam. Um espaço que se ordena por si mesmo.
• A senhora fez parte do Colectivo de Acciones de Arte antes de estrear na literatura com o romance Lumpérica, em 1983. Qual foi a importância do movimento na sua formação como escritora?
Foi muito importante. Eu já estava escrevendo meu primeiro romance (demorei mais ou menos sete anos para concluí-lo) e trabalhar coletivamente, e em união interdisciplinar, foi emocionante. Me importo muito com as comunidades.
• O movimento do qual participou fez esforços contra a ditadura de Pinochet. A arte, e mais especificamente a literatura, tem o poder de mudar o mundo?
Acho que não é possível. Se a literatura tivesse esse poder, habitaríamos outros mundos. Mas a literatura tem o poder de mudar a si mesma, de expandir suas próprias fronteiras. E, junto com o conjunto de forças sociais, colabora na busca pela emancipação.
• Tem acompanhado o momento político atual dos países da América Latina? Diria que o Brasil sofre alguma ameaça real com o mandato de Jair Bolsonaro?
Sim. Felizmente, Bolsonaro está concluindo seu mandato. Sua posição predatória em relação à Amazônia provoca terror e seu papel de chefe de Estado diante da doença e morte de seu povo tem sido insensível, inclemente e incompreensível.
• As desgraças da humanidade, como ditaduras e pandemias, são benéficas à escrita — por pior que isso soe? Em outras palavras, boa literatura e tragédia andam de mãos dadas?
A tragédia está no limiar da literatura ocidental, os gregos uniram poder e drama. O destino trágico percorreu sua superfície. Não ouso dizer que há um benefício para a literatura quando se desencadeiam pandemias ou ditaduras, mas se pode textualizar e tornar visíveis a angústia e a destruição. A aparente calma social, no entanto, também produz textos igualmente dramáticos.
“Há uma emancipação da mulher em todas as áreas, mas ela ainda ocupa um lugar subsidiário em todas as esferas da vida.”
• A senhora foi professora visitante em universidades renomadas. Se precisasse escolher o segmento mais relevante para o desenvolvimento do ser humano, ficaria com a literatura de ficção ou a academia?
A verdade é que sempre trabalhei com alunos ao longo da minha vida. E aprendi muito, me interesso pela comunidade, é fundamental para mim. Mas nunca tive uma “carreira acadêmica”, isso não me interessava porque precisava de tempo para escrever ficção. Essa escrita, a ficção, parece-me uma forma de privilégio. Trata-se de trabalho e prazer.
• Seu trabalho está traduzido em países da América Latina e Europa. Percebe alguma diferença na recepção da sua literatura nesses lugares que são, de várias maneiras, tão distantes?
Não sei. Na verdade, são os livros que viajam e seguem um caminho. Permaneço onde estou. Isso é muito interessante.
• Fala-se em um novo boom da literatura latino-americana — protagonizado, desta vez, por mulheres. Como vê esse momento? A produção feminina é mais valorizada hoje em dia?
Há uma emancipação da mulher em todas as áreas, mas ela ainda ocupa um lugar subsidiário em todas as esferas da vida. O mercado e o sistema geram máscaras e aparências. Fala-se em “literatura feminina” e esse termo é exclusivo, é uma categoria subsidiária, porque “literatura” (de homens) está em outro lugar. Acho que a literatura deve ser desbiologizada e que o autor seja um dado biográfico, não uma categoria literária.