Miudezas poéticas

Entrevista com João Anzanello Carrascoza, autor de Caderno de um ausente
João Anzanello Carrascoza, autor de “Caderno de um ausente”
06/02/2015

Para quem traz na bagagem o florescer artístico de um poeta, e que acabou se descobrindo um notório prosador, não é de se estranhar que prosa e verso caminhem lado a lado na obra de João Anzanello Carrascoza.

Nascido em Cravinhos, interior de São Paulo, o escritor, formado em Publicidade e Propaganda, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, integra o time dos grandes prosadores da literatura brasileira contemporânea. Em 2014, publicou Caderno de um ausente (leia resenha na página 9), romance intimista sobre um homem de meia-idade em intenso diálogo com a filha recém-nascida.

A narrativa, confluída por elementos de tessitura poética e de fino trato com a linguagem, manifesta-se como uma espécie de preparação ante ao futuro e às inúmeras possibilidades reservadas à pequena Julia. Mas, além disso, também se trata da despedida deste pai, que tem consciência de que amanhã não estará mais presente para acompanhar a trajetória existencial da filha.

Na entrevista a seguir, Carrascoza fala sobre seu romance e os processos introspectivos ligados à literatura.

Como foi o processo de produção de Caderno de um ausente?
O Caderno parte da ideia de uma estória que se alonga pelo período de um ano na vida de um personagem cuja filha acaba de nascer. O livro é uma espécie de boas-vindas a ela, mas também uma arqueologia desse próprio personagem, uma vez que, como ele é pai, está revendo sua própria vida com o nascimento da filha. Obviamente, há a possibilidade de ele rever sua própria trajetória, revalorizar o seu instante e entender de novo sua própria vida. Minha matriz foi o Morte e vida Severina, que começa com a morte e ao final vemos Severino descobrindo e festejando uma vida. Porém, em meu livro acontece de forma contrária. Começo com uma vida chegando, mas já sobrepondo sobre essa vida a ideia da morte. De uma vida que recomeça através da morte.

Por que Caderno de um ausente?
Fui montando o texto desta forma, buscando deixar esse personagem falar determinados assuntos que fossem inquietantes. Então, ele não tem uma lógica, por isso se chama Caderno de um ausente, porque num caderno você anota coisas, às vezes, à revelia ou meio a esmo, há uma certa desordem, embora haja uma intenção. Você só expressa e materializa o que, de fato, te toca. Os capítulos do livro são curtos. Então eles vão seguindo essa lógica de que são pequenos fragmentos dessas sensações e estados de espírito. Há coisas que ele quer falar para a filha e também para si mesmo. A filha é a vida que chega, e ele, uma vida que se renova com a chegada de outra, embora também seja uma vida que prenuncia seu fim, a sua ausência.

Existe algum tipo de referência autobiográfica neste romance? O fato de o narrador se chamar João, ser um homem de meia-idade…
São alguns sinais de elementos isotópicos que podem dar a ideia de que tem a ver com a minha vida. Dediquei este livro a minha esposa Juliana. Inclusive, usei o nome dela na personagem que é a mãe no romance. Esses índices isotópicos já fazem parte da literatura, de uma forma geral. Mas não tive nenhuma intenção de utilizar a história da minha vida. Tem gente que leu e achou o livro tão forte que me perguntou sobre como anda a Beatriz, se estou bem viúvo. É claro que há elementos autobiográficos no sentido de você usar suas experiências, fatos… Posso utilizar traços de pessoas que conheço e amo. Mas não há uma linha totalmente autobiográfica. É autobiográfico como toda obra de alguma forma é, trazendo vivências transfiguradas de um determinado autor.

Comecei lendo de forma bem caótica. Lia tudo que encontrava nas bibliotecas das escolas e da minha cidade.

Pode nos contar sobre o seu trajeto inicial como escritor? Como se deu esse encontro com a literatura?
O ato da escritura surgiu junto com a leitura. Quando aprendi a ler, foi um deslumbramento. A possibilidade de me enveredar em outros universos. Comecei lendo vários livros da biblioteca do colégio de minha cidade, no interior de São Paulo, e ouvia muitas estórias de minha região. Pegava As mil e uma noites, o Simbá, o Robson Crusoé ou os poemas do Drummond, e me sentia em outro mundo. Comecei a escrever a partir da leitura. Uma vez que eu lia, queria escrever coisas parecidas ou diferentes, ou queria dar outro fim às coisas que lia. Comecei escrevendo inicialmente poesia, aí mais adiante enveredei para a prosa. Meu começo foi como poeta, mas não publiquei nada. Lá pelos vinte anos, comecei a escrever contos. Passei a participar de concursos de um conto só, e quando eles passaram a ser premiados, vi que eu era mais prosador do que poeta. Mas veja que nunca abandonei a poesia. Minha prosa tem uma abertura para o mundo lírico, não apenas para a estória em si. Minha narrativa tem a função de ser como o verso. Ela ecoa também feito verso. A poesia é a partilha de uma certa vivência, de um certo “eu”. E se consigo fazer isso, me encanta mais. Porém, pode ser uma característica do indivíduo, seu jeito de olhar a vida.

Quais são suas referências literárias? Os autores que realmente fizeram a sua cabeça e que, de certa forma, influenciaram em sua produção.
Comecei lendo de forma bem caótica. Lia tudo que encontrava nas bibliotecas das escolas e da minha cidade. Li muita literatura brasileira contemporânea. Era o “boom” do conto, na época. Então li muitos contos. Havia uma coleção da Ática de autores brasileiros, e li quase todos. Depois descobri a literatura latino-americana, que estava vivendo seu “boom” também, com o García Márquez; o Cortázar, que se tornou uma grande referência na minha trajetória; o Borges; Mario Vargas Llosa; Onetti. Então fui para os clássicos europeus, franceses, espanhóis e italianos. E também a literatura norte-americana. É claro que, quando você lê, há aqueles autores que praticamente trazem uma certa sensibilidade com a qual você partilha. Costumo chamar de famílias literárias. Não só como leitor, você lê as coisas que te tocam, mas acaba se incluindo como aqueles que produzem. Me senti muito filiado, filho dessa família que tem Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, William Faulkner, a criatividade desconcertante e aqueles jogos de forma como os do Cortázar.

Autores de linguagem…
Exatamente. Autores que têm um trabalho mais sofisticado, que não se preocupam exatamente em contar estórias e acabam criando um estilo muito próprio. As pessoas vão entendendo as raízes que você encontrou no seu caminho e que foram se assentando no solo de sua criatividade, de sua inspiração e continuam te alimentando. O que me interessa num ficcionista é a forma como ele trabalha a sua ficção. Como ele consegue fabular, construir o seu próprio mundo.

Como a publicidade entra em sua literatura, se é que entra?
A publicidade me ensinou muitas coisas: a precisão e a concisão na hora de fazer o texto. Você acaba aprendendo a tomar mais cuidado com a escolha lexical, com as redes semânticas. O que você escolhe para escrever, tudo tem que fazer sentido. Então, acho que isso depois acabou passando para o meu texto. Sou muito cuidadoso, vou e volto o tempo todo com o texto. E também ajudou a entender que você pode mudar o texto, e que ele não vem pronto. Fora a questão da disciplina. A narrativa publicitária se apoia numa narrativa realista. Você constrói estórias com certa verossimilhança, com a utilização de detalhes expressivos. E, obviamente, precisa saber contar estórias. O publicitário tem que saber contar estórias. E o trato com a literatura diária me ajudou também nesse sentido. Acho que essas águas se misturaram.

Quais são as maiores dificuldades durante o processo criativo?
É meio misterioso quando as estórias vêm. Mas quando elas começam a se formar, é preciso sensibilidade para saber se elas resistem. As estórias precisam ter um tempo de envelhecimento. Não tem aquela frase do Nelson Rodrigues: “jovens, envelheçam!”? As estórias precisam envelhecer ou o escritor envelhecer, para entender se elas estão prontas para o mundo. Porque é você que as dará à luz. E tem a questão do cotidiano. A sua própria vida atravessa a sua estória. Uma das maiores dificuldades para o escritor talvez seja a concentração. Hoje em dia, estamos o tempo todo recebendo assuntos e temas possíveis para trabalhar, e o escritor tem uma vida só. O importante é você seguir o seu caminho. O mundo está circulando e você precisa viajar, fazer um monte de coisas. O mundo está lá, mas é preciso estar conectado consigo quando se está escrevendo.

Retomando o Caderno de um ausente, você poderia falar sobre os espaçamentos utilizados no romance? Sobre esse processo de estruturação estética onde a diagramação do livro acaba, de certa forma, comunicando-se com a narrativa? Esses recursos gráficos também podem ser vistos no seu livro anterior (Aos 7 e aos 40), através da distinção de cores das páginas, e que se refletem na dualidade das vozes narrativas.
Acredito que a estória pedia um pouco disso. Quando comecei a escrever o Caderno, os espaços se definiam com as pausas do narrador, ao mesmo tempo em que se configuravam como as ausências. Não é um trabalho de vanguarda, mas o próprio texto pedia isso. Esses recursos não são a priori, o texto que te traz alguma ideia de como fazer. É claro que eu vim da publicidade. A gente vê o espaço da letra, a tipologia, a cor, tudo isso conta. Como você citou que também ocorre no meu outro romance, além da diagramação, as páginas são verdes, mas em duas cores: o verde-claro e o verde-escuro. No Caderno, a cor das folhas remete à cor da pele, porque é algo para tocar, é um livro que está à flor da pele. Acho que esses recursos dialogam com o que quero dizer.

Um trecho de um livro que faça parte de sua vida e de seu relacionamento com a literatura.
Uma frase do Tao te ching que me encaminha muito ao trabalho que faço na literatura, dessa coisa do menor: “Quem se dá muita importância, não tem importância nenhuma”. Em outras palavras, se você acha que certas coisas são muito significativas, elas são insignificantes. E eu trabalho um pouco com essa vida, com as coisas pequenas, a miudeza. O nosso instante que, por um momento, pode parecer nada, mas é o instante da nossa vida, é a nossa riqueza, e que a gente não sabe se continuará no dia seguinte. É você vivendo aquele instante e ser grato. Por isso escrevo sobre epifania, revelações. Às vezes, as coisas que não parecem nada, você se dá conta que é tudo o que tem. Uma outra frase de que gosto muito é do Platão: “O tempo é a eternidade em movimento”. É uma coisa que me pauta muito. O milagre de estarmos aqui me interessa muito na literatura.

>>> Leia resenha de Caderno de um ausente

Márwio Câmara

É  escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Solidão e outras companhias (Oito e Meio, 2017) e Escobar (Moinhos, 2021).

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