Enquanto o tempo sou eu

Entrevista com o crítico James Wood, autor de "A coisa mais próxima da vida"
James Wood, autor de “A coisa mais próxima da vida’
30/12/2017

Tradução: Vivian Schlesinger

“Se eu morrer, morre comigo/ um certo modo de ver” — trecho do poema Desfile, do livro A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade. Otto Lara Resende, em crônica famosa que cita esses mesmos versos, disse que “o poeta é só isto: um certo modo de ver”. E o crítico literário, não seria também fundamentalmente isto, um certo modo de ler? O inglês de 52 anos, radicado desde os anos 90 nos Estados Unidos, James Wood conta nesta entrevista que pode ser mais ou menos isso, sim, um modo de ler os livros e a vida enquanto o tempo não cumpre seu poderoso e inalcançável julgamento. Parece poderoso demais alguém que faz o papel do tempo, enquanto o próprio tempo não se faz. A conversa acabou esbarrando nesse tema, o tempo, algumas vezes, de formas diferentes. A preocupação de Wood, por exemplo, em sua definição de engajamento na literatura, é que os escritores criem sobre temas contemporâneos relevantes — cita e elogia os que andam fazendo isso: somos este tempo aqui, não outro. Assim como em seus ensaios, suas respostas são repletas de citações, que tornam a entrevista uma espécie de aula, dessas aulas que a gente até discorda do professor aqui e ali, mas volta pra casa sentindo que valeu. Apesar do recurso das citações, o “modo de ver” de James Wood não soa a repetição, mas a valiosa soma. No Brasil, a Editora Sesi-SP publicou dois de seus livros nesse 2017: Como funciona a ficção e A coisa mais próxima da vida.

• Sobre sua experiência como leitor de ficção: como difere a sua leitura aos vinte anos de idade da atual?
Quando volto a algo que li pela última vez na juventude, é como se voltasse ao país em que nasci, depois de muitos anos vivendo em outras terras. Há o amor antigo, a profunda familiaridade, a paixão juvenil, e nada mudou; ao mesmo tempo, tudo mudou! Vejo meu velho país com novos olhos, mais sábios, e posso comparar minha terra de origem a todos os outros lugares onde estive. Assim é com os livros. Estou mais sábio, sei mais, e minha capacidade de comparar — que no fundo é tudo que um crítico dispõe — é igualmente maior.

• Qual é o julgamento mais poderoso de uma obra literária, o crítico ou o tempo?
Você conhece a maravilhosa frase de Kafka: “Há infinita esperança — mas não para nós”. O julgamento mais poderoso de uma obra literária é certamente o tempo; mas não saberemos, durante nossas vidas, como o tempo a julgou. É sempre a próxima geração que irá descobrir se o julgamento mais poderoso foi o crítico ou o tempo. Então, para adaptar Kafka, “há o julgamento do tempo, mas não para nós”. É esse espaço, essa ausência do tempo que o crítico ocupa, para fazer o trabalho de julgamento do tempo enquanto estamos vivos.

• “Literatura engajada” é um termo que ainda tem propósito nos nossos tempos?
Sim, por que não? Mas depende da sua definição de “engajada”. O termo não precisa restringir-se a compromisso político. Com certeza, a novela de Tolstói (um de meus livros favoritos) A morte de Ivan Ilitch é uma obra de literatura engajada: é como uma parábola ou as escrituras. Ela existe para nos ensinar uma lição sobre como viver, e como morrer. Como devemos viver?, pergunta Tolstói, e responde, dogmático: “É assim que se deve viver”. Ele não fica encabulado de nos ensinar. Recentemente li um maravilhoso romance da autora alemã Jenny Erpenbeck, chamado Gehen, Ging, Gegangen (literalmente Ir, Foi, Ido, ainda sem tradução ao português). É sobre refugiados africanos recém-chegados na Alemanha, e baseado em uma série de entrevistas que Erpenbeck fez com 13 refugiados africanos (de países como Níger, Gana e Líbia) a quem ela cita e reconhece nominalmente nos agradecimentos. O romance de Erpenbeck é como a novela de Tolstói, na questão de não se furtar a nos dizer como devemos viver: devemos nos abrir ao Outro. Assim como Rilke, ela diz que devemos mudar as nossas vidas. Pense como o mundo é diverso e conturbado, e como apenas pequena parte dele (comparativamente) foi descrita na ficção contemporânea. Quantos romances, na tradição literária europeia e latino-americana, já se atracaram, de fato, com o Islã radical como um tema? Quantas tentativas de retratos ficcionais verdadeiramente convincentes de terroristas jihadistas foram feitas? Ou mesmo, quantos bons romances (fora o de Erpenbeck) foram escritos sobre as migrações em massa que estão ocorrendo da África para a Europa? Existe a possibilidade aqui para o escritor trazer as notícias (o que o romance sempre fez) e investigar sobre como deveríamos viver (o que o romance também sempre fez). Essa seria minha definição de literatura engajada ou comprometida.

Quando volto a algo que li pela última vez na juventude, é como se voltasse ao país em que nasci, depois de muitos anos vivendo em outras terras.

• Com que frequência você lê poesia? Se você tem esse hábito, que poetas você mais lê?
Passei minha adolescência lendo muito mais poesia do que prosa, era e é meu primeiro amor. É por isso que gosto tanto de frases, por isso gosto de me deter sobre palavras e estilo. Estou sempre tentando ouvir a música de um romance, o que Barthes chamou de “farfalhar do estilo”. Mas Virginia Woolf, sabiamente, diz que romancistas não escrevem apenas frases, escrevem parágrafos e capítulos. Existe algo chamado forma ficcional, e a música da forma ficcional precisa de um romance inteiro para se fazer ouvir. É por isso que tento não transformar a frase em fetiche — ela é apenas uma das muitas unidades do romance. Se você é criado dentro da tradição literária inglesa como eu fui (nasci no Reino Unido, e passei meus primeiros trinta anos lá), o grande precursor de tudo (como Cervantes na tradição espanhola, ou Pushkin na russa) é Shakespeare. Antes da chegada do romance inglês, há Shakespeare, poeta e dramaturgo; Shakespeare é o poeta cujas palavras você escuta no palco e lê na escola, e é a poesia de Shakespeare que ainda amo. Rei Lear e Macbeth são pedra angular para mim. Também leio Emily Dickinson e Osip Mandelstam.

• Os grandes personagens da literatura (como Don Quixote, Cândido) já foram criados ou estão apenas escondidos?
Gosto da premissa desta pergunta — se eu a entendi corretamente! Há um livro maravilhoso do crítico americano Harold Bloom, Shakespeare: a invenção do humano (Objetiva, 2000), onde ele argumenta, essencialmente, que Shakespeare criou boa parte do que acreditamos significar ser humano. (Eu certamente juntaria Cervantes a esta lista, e Dostoievski, também). Talvez esta seja uma ideia um tanto romântica ou clássica do artista-criador, mas eu gosto dela! Knut Hamsun afirma, em seu romance Mysteries (literalmente, Mistérios, ainda sem tradução ao português), que Shakespeare inventou a consciência… Uma das razões que tornam emocionante o ato de ensinar literatura é que você vê jovens descobrindo, pela primeira vez, um autor nomear sentimentos que eles conhecem instintivamente, mas que eles próprios ainda não foram capazes de nominar tão bem. Quando meus alunos leem pela primeira vez Notas do subsolo ou o romance de Hamsun, Fome, é como se uma bomba acabasse de explodir. Eles não sabiam até então que a literatura podia fazer isto, estavam vivendo como o “Homem do Subsolo”, de Dostoievski, tinham pensamentos rebeldes de “Homem do Subsolo” (todos os adolescentes são “Pessoas do Subsolo”, de qualquer forma!), mas somente ao ler Dostoievski é que percebem o que eram, na verdade, esses pensamentos. O ensaísta americano Emerson diz, de maneira belíssima, que os grandes autores nos mostram “nossos próprios pensamentos rejeitados; eles retornam a nós com uma certa majestade distanciada”. Então talvez o mais preciso seria dizer que os grandes autores nomeiam, ou revelam, de forma brilhante, algo que já existe no comportamento humano. (No caso de Dostoievski e de Nietzsche, ressentimento; no caso de Shakespeare, consciência; no caso de Cervantes, fantasia.)

• Coetzee é idolatrado aqui no Brasil — afinal de contas, ele recebeu um Prêmio Nobel. Mas você tem algumas reservas sobre sua literatura. Quais são elas?
Ele é com certeza um escritor espantoso, mas não me emociona tanto quanto alguns outros autores. Há uma certa frieza no estilo. E eu adoro humor, enquanto Coetzee praticamente não tem senso de humor — essa é a grande diferença entre seu grande modelo, Beckett, e sua própria escrita.

• Em sua entrevista à Folha de S. Paulo, há algumas semanas, você referiu-se ao desejo de ser editor. Como seria isso?
Eu gosto da tradição, popular na era modernista, de cerca de 1900 a 1940, de autores publicarem seu próprio trabalho, ou conseguirem que seus amigos o publicassem por eles. Há algo atraente em um texto radical, que só pode ser apreciado por poucas pessoas, sendo publicado em números limitados. Virginia Woolf e seu marido fundaram uma pequena editora chamada Hogarth Press, e a usaram para publicar lindas edições dos romances de Woolf, assim como livros que eles gostavam e que ninguém mais queria publicar. Hoje, quando publicar é algo tão comercial e está se tornando, cada vez mais, um monopólio controlado por poucas corporações globais gigantescas, há algo emocionante na ideia de simplesmente fazê-lo você mesmo. Como ficar em casa em vez de ir a um [hotel] Hilton…

• A população mundial aumenta muito rapidamente — já somos mais do que 7,5 bilhões de pessoas. Você acha que o número de leitores de literatura aumenta proporcionalmente? Se não, por que não?
Acho que as notícias são mistas. Por um lado, para uns poucos afortunados (romancistas mais do que poetas, vencedores de prêmios mais do que os que não vencem), há um novo mercado global. Então se você é alguém como Coetzee ou Toni Morrison ou Kazuo Ishiguro (todos eles bons escritores), você pode vender muitos exemplares e alcançar milhares, talvez milhões de leitores. Ao menos, essas pessoas compram esses livros e sentem que é importante tê-los na sua mesinha de cabeceira. Por outro lado, o número de leitores da literatura séria provavelmente está diminuindo. O romance está perdendo qualquer centralidade que um dia possa ter tido na cultura. Todos — não só os jovens — estão mais dispersivos; a tela substituiu a janela; o tweet substituiu o texto. Por quinhentos anos o mundo do livro — e a ideia do mundo como livro — estava no centro da existência civilizada. Mas claramente isso desapareceu. O mundo do computador — e o mundo como computador — é agora predominante. Pensamos no conhecimento, na mente, como computadorizados; não pensamos em páginas do texto, mas em unidades de algoritmo. Há enormes benefícios, e enormes custos. No decorrer dos próximos cinquenta anos veremos exatamente quais são os custos, no sentido literário.

• O que você conhece da literatura brasileira que tenha de algum modo chamado sua atenção?
Sempre adorei a obra de Machado de Assis, desde que alguém me disse que eu poderia encontrar uma versão brasileira do conto de Tchekhov Enfermaria nº 6 (em inglês, o livro de Machado é conhecido como O psiquiatra, mas em português me parece que o título é Memórias Póstumas de Brás Cubas). Machado é um autor maravilhoso — adoro a narração não confiável de Dom Casmurro. Também admiro o trabalho de Clarice Lispector, especialmente seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.

• Qual é sua opinião sobre o Prêmio Nobel de Literatura? E sobre prêmios literários em geral? Como seria um prêmio ideal para literatura?
Em geral, não gosto de prêmios literários. Saul Bellow — que recebeu muitos prêmios literários americanos, e claro, também o Nobel — costumava ironizar: “Imagine se o que disséssemos sobre Tolstói fosse: ‘Ele recebeu todos os prêmios!’” (Tolstói, notoriamente, não recebeu o Prêmio Nobel). Você pode fazer essa brincadeira com muitos grandes escritores: “Cervantes: ele recebeu todos os prêmios”. “Shakespeare: ele recebeu todos os prêmios.” Bellow queria dizer, na verdade, que até 1920, mais ou menos, escritores não pensavam em prêmios (com exceção, talvez, dos autores de tragédias gregas, dois mil anos atrás) e que escritores sérios não deveriam se importar com prêmios. Eles são um fenômeno moderno, e em certo sentido, pós-moderno. (De novo, com exceção à tragédia grega da antiguidade.) E acima de tudo, os prêmios agora são um braço do capitalismo — eles existem para promover o patrocinador comercial (o melhor exemplo disto é o Man Booker Prize, que existe para promover o nome de Man, um fundo de investimentos), e existem para criar um “agito” capitalista. E são muito eficientes na criação do “agito”: o Man Booker Prize gosta de se vangloriar, em seu website, de dobrar ou triplicar a venda dos (livros dos) premiados. O que não gosto nos prêmios é que se tornaram uma forma de crítica: são as listas de finalistas que selecionam o que as pessoas leem, e elas é que fazem as carreiras literárias. No Reino Unido há pessoas que só leem seis romances por ano: os seis finalistas do Man Booker Prize. É loucura. Em termos literários, os prêmios não significam nada.

Os prêmios agora são um braço do capitalismo — eles existem para promover o patrocinador comercial (o melhor exemplo disto é o Man Booker Prize, que existe para promover o nome de Man, um fundo de investimentos)

• Onde você considera que é possível encontrar jornalismo sobre literatura? E como confiar que será feito da maneira correta? Você acredita que promoção é o que mais se vê, em vez de jornalismo?
Nesse assunto estou mais otimista do que pessimista. É verdade que imprensa sobre livros está diminuindo. Recebi minha educação, como adolescente, lendo resenhas nos jornais ingleses, e elas eram escritas em alto nível. Atualmente as resenhas são mais curtas, menos especializadas, e muitas vezes se assemelham à promoção. Mas há muito trabalho interessante online. Não posso mentir que leio tudo na internet, mas há certos blogs literários que sigo, e certos autores. O Los Angeles Review of Books, por exemplo, é todo online, e seus colaboradores recebem quase nada de remuneração. Mas por ser online, os colaboradores têm espaço para escrever ensaios do tamanho que quiserem — 5.000, 6.000 palavras. Escrevem por paixão, interesse, amor. Isso é estimulante.

• A experiência de escrever um romance (The Book Against God, sem tradução no Brasil) mudou a maneira de ler e analisar outros romances?
Menos do que se imaginaria. Claro, foi útil para demonstrar para mim como é difícil escrever um romance decente! Mas eu já sabia disso! O que aprendi: a forma é muito importante. Achei fácil escrever as frases (no fim das contas, passo minha vida escrevendo frases); mas achei a forma ficcional muito difícil, mesmo. Lembro-me, um dia, faltando pouco para terminar de escrever meu romance, eu estava ajoelhado no chão do meu dormitório onde havia distribuído a maior parte dos capítulos. Percebi que fora o primeiro e o último capítulos, eu poderia ordenar os capítulos em qualquer ordem que quisesse. E isso não foi uma coisa boa! Parecia um fracasso da lógica narrativa, da necessidade narrativa. Aí entendi que um grande romancista como Tolstói é grande em parte porque tinha excelente senso espacial da forma, e conseguia manter essa ideia espacial da forma do livro na cabeça. Ele podia enxergar o formato do livro, como um arquiteto pode enxergar um prédio que ainda é apenas um esboço. Eu não.

• Segundo William Wadsworth — diretor da Escola de Arte na Universidade de Columbia — há nos Estados Unidos mais de 300 cursos de escrita criativa (diferentes níveis) entre graduação e pós-graduação. O que você acha deste cenário?
É um tanto aterrorizante, não?

>>> Leia resenha de A coisa mais próxima da vida

André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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