A sombra da barbárie

No romance "Meu passado nazista", André de Leones discute a onipresença da estupidez e da maldade e suas nefastas consequências
André de Leones, autor de “Meu passado nazista” Foto: Joannis Moudatsos
01/06/2025

Meu passado nazista, de André de Leones, é um romance polifônico em que a filosofia, a política e a arte se misturam para dar sentido a uma narrativa a respeito da sombra do nazismo em uma família disfuncional do Centro-Oeste brasileiro. Nesta entrevista igualmente caudalosa, Leones cita uma série de autores e livros para explicar a gênese da longa narrativa. Segundo ele, o romance é fruto de um novo método de escrita que tem experimentado desde Eufrates, de 2018. “Passei a canibalizar histórias que rascunhei ou mesmo desenvolvi em outros momentos, e construir as narrativas maiores a partir delas, com frequência ‘casando’ projetos diferentes. Essas narrativas mais longas e repletas de camadas e variações são resultado desse novo processo de concepção e execução”, explica.

Apesar de ter dezenas de personagens e muitos “cenários”, a narrativa se concentra no trio de amigos Leandro, Cristian e Eleonora, que vivem no interior de Goiás. Lá, uma história obscura envolvendo o nazismo se materializa na persona de Konrad Helfferich, o avô de Leandro. Repleto de nuances, o livro se expande ao trafegar por diversos tempos históricos — da Segunda Guerra aos anos 1990 no Brasil — e incorporar um caráter “ensaístico” para falar sobre absolutamente tudo, de correntes filosóficas até o diálogo surdo da internet e o avanço da extrema direita no país.

A seguir Leones fala sobre redes sociais, seus métodos de escrita, a literatura contemporânea e artistas e livros que o inspiraram a produzir Meu passado nazista, considerado por muitos de seus leitores o melhor livro que escreveu nestes 20 anos de carreira.

Meu passado nazista é dedicado “aos meus suicidas”. Por que os seus suicidas merecem tal narrativa? Você concorda com a máxima de Albert Camus de que “só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio”?
Começando pelo fim, não creio que o único problema filosófico verdadeiramente sério seja o suicídio. É uma bela frase de efeito, claro. Mas, para começo de conversa, sugerir que outros problemas filosóficos não sejam “verdadeiramente sérios” é de uma leviandade estarrecedora. Em vez de perder tempo com Camus (cujo problema filosófico maior deveria ser: aceitar ou não aceitar caronas?), é preciso imaginar Sísifo lendo o Fédon, de Platão, e, em seguida, os aforismos 340 e 341 d’A gaia ciência, de Friedrich Nietzsche: em Sócrates, a divertidíssima preparação para a morte; em Nietzsche, a alegre (sim!) aceitação da vida e uma surra no pessimismo do “zombeteiro e enamorado monstro e caçador de ratos de Atenas”. Ademais, para o suicida e para o não suicida, a questão sobre se a vida vale ou não a pena já foi respondida, não é mesmo? E cada indivíduo tem seus motivos pessoais e não raro incomunicáveis para vivê-la ou não, de tal forma que tentar derivar norteadores filosóficos a partir de questões e decisões tão íntimas me parece uma empresa fútil e nada séria. Por tudo isso, e na medida em que eu necessariamente já respondi à questão (continuo vivo, não é mesmo?), prefiro me ocupar de outros problemas filosóficos, incluindo aí o “escândalo” expresso por Immanuel Kant em uma nota no prefácio B da Crítica da razão pura. Respondendo à primeira pergunta, convivi com pessoas que se mataram, e não sei se esses “meus” suicidas merecem ou, melhor dizendo, mereceriam a narrativa que escrevi. Eles estão obviamente mortos, sinto falta de alguns deles, e o romance é uma forma egoísta de mantê-los vivos literariamente e na minha memória. É o que posso fazer não por eles, mas por mim, que ainda estou aqui, e pelos leitores que se interessam pelo que escrevo. É uma coisa boa da literatura: a gente trabalha as fantasmagorias para lidar melhor com certos traumas e ausências. No caso específico de Meu passado nazista, esse trabalho marca presença sobretudo no primeiro terço do romance.

• Em várias passagens de Meu passado nazista há referências à bestialidade ao redor, numa espécie de escalada “da estupidez e do obscurantismo”. Você acredita que a humanidade — em especial no Brasil — tornou-se mais bestial nos últimos tempos? Ou é apenas uma impressão sobre algo que sempre esteve latente entre nós?
Creio que a bestialidade, a estupidez e o obscurantismo sempre estiveram presentes, e não latentes. Em cada grande ou pequeno passo da humanidade, há pelo menos uma cova coletiva aberta nas redondezas, à espera de cadáveres fresquinhos. Logo, eu diria que os índices de bestialidade permanecem constantes no decorrer da história, com alguns “saltos” eventuais, como os genocídios ocorridos na atual Namíbia, dos namas e hereros, e na Europa sob Hitler. Claro que não precisamos nos ater à primeira metade do século 20. Parte de Meu passado nazista se passa nos anos 1990, quando havia campos de prisioneiros e campos de estupros — forma particularmente cruel de limpeza étnica — nos Balcãs. E, no momento em que escrevo, pessoas estão sendo trucidadas em Gaza, no Iêmen, na Ucrânia, no Sudão e em qualquer periferia brasileira. Parafraseando Guimarães Rosa, quando nada acontece, há um extermínio que não estamos vendo.

• Há também muitas referências à selvageria das redes sociais. O mundo digital te atrai ou você prefere manter distância desta balbúrdia universal, onde “acontece de um celular fazer mais estragos do que uma pistola”?
Mantenho distância das redes sociais. Não mantenho perfis no Facebook, no Instagram e no ex-Twitter há tempos. Minha única presença virtual se dá pela minha página pessoal, onde me limito a repostar ou linkar resenhas e artigos que publico por aí, e por uma newsletter que também uso para divulgar o que escrevo. É claro que, em um mundo hiperconectado, isso cria alguns problemas e limita bastante o alcance do meu trabalho. Mas, por outro lado, o ganho em saúde mental é considerável. Quando tinha perfis nas redes, perdia muito tempo com discussões bizantinas e outras imbecilidades, como espectador ou participante. Não me lembro quando foi a última vez que cancelei alguém. Talvez no Natal de 2014, animado pelo espírito das festas. Hoje, longe da balbúrdia, leio mais e vivo, estudo e trabalho melhor. Também não me vejo em um estado de alerta constante, reagindo a todo e qualquer mísero acontecimento como se fosse a Queda da Bastilha. Aliás, é por isso que ainda gosto de comprar e ler jornais. Além de ser uma desculpa para sair de casa, circular pelo bairro e papear com pessoas (e não com arrobas), as notícias impressas perdem algo dessa urgência incontornável que a internet instaura, sem falar na ausência da gritaria virtual.

• Falando em redes sociais, você estreou na literatura, em 2006, num tempo quase analógico, sem tantas possibilidades de divulgação. Como você avalia esta facilidade de comunicação para os escritores, que em geral têm a fama de reclusos (o que comumente não passa de uma lenda)?
Conversava a respeito disso outro dia mesmo com o Thomas Pynchon, quando fomos ao show do System of a Down aqui em São Paulo. Mentira. Mas, em 2006, creio que os blogs eram uma ferramenta muito boa de divulgação e troca de ideias. Naquela época, eu já mantinha algum contato virtual com colegas que admiro até hoje, como Maira Parula, Adriana Lisboa e Bruna Beber, e também com alguns leitores. Então, não era um tempo tão analógico, embora não se compare com a hiperconectividade dos anos seguintes, com essa imediatez ensurdecedora que se tornou uma espécie de segunda realidade e, muito em breve, pode ser que se torne a única. Usando o cenário imaginado por Gilbert Harman e aprofundado por Hilary Putnam, não falta muito para que nos tornemos (ao menos figurativamente) cérebros em uma cuba. Eu, por questões de temperamento e por motivos já explicados, não consigo mais lidar com a superexposição típica das redes sociais. Mas sei que, para os colegas que navegam bem por essas águas, as possibilidades de divulgação são inúmeras. Eles circulam mais e melhor do que eu, fiéis à máxima berkeleyana: ser é ser percebido. Então, fica a critério de cada um. Todos devemos conhecer (e estabelecer) os nossos limites.

• Você publicou romances de fôlego recentemente — como Vento de queimada e Eufrates. Agora, Meu passado nazista segue a linha dos romances de voo longo. Como se dá a construção destas estruturas com muitas camadas, personagens e variantes na história?
Os três romances citados foram escritos de forma distinta de todos aqueles que os precederam. Antes, até Abaixo do paraíso, eu tinha uma ideia, pegava um caderno e escrevia a respeito, esboçava personagens e situações, rascunhava estruturas possíveis, ia descobrindo o romance a ser escrito e, uma vez que tivesse o projeto mais ou menos claro na cabeça (e no caderno), começava a escrevê-lo. Tudo isso ocorria de forma mais ou menos linear. A partir de Eufrates, o processo se tornou menos ou, em alguns casos, nada linear. Passei a canibalizar histórias que rascunhei ou mesmo desenvolvi em outros momentos, e a construir as narrativas maiores a partir delas, com frequência “casando” projetos diferentes. Essas narrativas mais longas e repletas de camadas e variações são resultado desse novo processo de concepção e execução. E variações me interessam muito e cada vez mais, seja como leitor, seja como escritor (e também como espectador de tênis). Variações de ritmo, de vozes, de abordagem, de estilo, como as que encontramos, por exemplo, em The recognitions, de William Gaddis, e Women and men, de Joseph McElroy. E o romance é algo extraordinário porque desde sempre comporta toda sorte de hibridizações. Acho que, no decorrer do tempo, autores como Sterne, Fielding, Gógol, Machado, Joyce, Szentkuthy e [Arno] Schmidt compreenderam esse caráter moldável, permissivo e “malcriado” do gênero. Estou várias prateleiras abaixo deles, mas gosto de pensar que compartilhamos da mesma estante, por assim dizer.

• Você é um leitor entusiasmado de Thomas Pynchon, um escritor bastante polifônico. Ele chega a ser uma influência na sua literatura?
Pynchon é importantíssimo para mim porque foi um dos primeiros a me oferecer aquele sopro libertador. Ele oscila entre a erudição e a cultura pop com uma desenvoltura incrível, e creio haver muito disso em Hoje está um dia morto, meu romance de estreia, e em Meu passado nazista. Não fosse por Pynchon, pela inspiração que me trouxeram as leituras de V. e O arco-íris da gravidade, eu não teria concluído Hoje está um dia morto. Naquela época, 2004 e 2005, foram esses dois livros, mais O som e a fúria, de William Faulkner, A sibila, de Agustina Bessa-Luís, Boa tarde às coisas aqui em baixo, de António Lobo Antunes, e Ulysses, de James Joyce, que me “destravaram” e apontaram vários caminhos possíveis. A partir de Pynchon, especificamente, cheguei a Gaddis, John Barth, Donald Barthelme e William H. Gass, autores que me trouxeram expressões diversas dessa liberdade para com a forma. The making of americans, de Gertrude Stein, também foi muito importante (embora eu o tenha lido anos depois, quando trabalhava em Terra de casas vazias), bem como as lições de contenção trazidas por Dalton Trevisan, um dos melhores contistas da história da literatura. Mesmo nos romances menos desbragados que escrevi, como Terra de casas vazias e Abaixo do paraíso, procuro me movimentar com a liberdade que me é possível alcançar dentro dos limites de cada projeto e das minhas próprias ferramentas.

• Meu passado nazista é um livro espirituoso, cheio de passagens engraçadas, irônicas e desbocadas. Para escrever este tipo de prosa, qual é o estado de espírito necessário? Seus livros refletem, de alguma maneira, o momento que está vivendo?
De fato, uma das coisas mais difíceis durante a escrita de Meu passado nazista foi sustentar aquela voz que conduz (e às vezes polui) a maior parte do romance. Escrever em primeira pessoa é extremamente difícil para mim, sobretudo em uma obra que não tem absolutamente nada de autoficcional. Trata-se de um exercício de me tornar aquele outro e levá-lo ou caminhar com ele até onde for possível. E, sim, no decorrer dos dois anos em que trabalhei no livro, meus esforços foram no sentido de manter aquele estado de espírito propalado desde as páginas iniciais. Para tanto, limitei as horas diárias de trabalho no texto (para não me cansar dele e perder a mão) e também li ou reli autores excelentes no uso da primeira pessoa, mesmo que fossem distintos do tom que procurei imprimir: o Petrônio de Satíricon, o Saul Bellow de As aventuras de Augie March e O legado de Humboldt, o Vladimir Nabokov de Lolita, o Martin Amis de Grana, o Thomas Bernhard de Extinção, a Charlotte Roche de Zonas úmidas, o Bohumil Hrabal de Uma solidão ruidosa, o Marcelo Mirisola de Bangalô e Hosana na sarjeta, a Gianinna Braschi de United States of Banana, o Adam Levin de The instructions, o Jonathan Littel de As benevolentes e o William H. Gass de The tunnel. Eis alguns dos romances que li e reli durante a escrita do romance, além, é claro, dos Cantos de Ezra Pound. Peço desculpas por mencionar tantos livros, mas uma das melhores coisas da literatura é compartilhar indicações de leitura. Foi assim que cheguei a alguns dos meus livros favoritos, graças às indicações de outrem, e os alvos de nossa predileção sempre dizem muito a respeito de nós mesmos e do nosso trabalho, não é mesmo? Sem dúvida, meus livros costumam refletir algo do momento e do lugar em que vivo, mas não em termos estritamente pessoais, pois, como disse, não faço autoficção ou coisa que o valha. Essas relações entre vida e escrita se dão em um contexto mais amplo, como uma abertura para o mundo, e não como um fechamento no eu. Logo, posso afirmar com toda a certeza que não teria escrito Meu passado nazista sem vivenciar a ascensão da extrema direita em anos recentes.

• Por outro lado, apesar do tom picaresco, o romance é permeado por assuntos sérios, como a influência do nazismo na atualidade e, no caso do Brasil, o avanço da extrema direita. Por que esses assuntos te interessam como ficcionista?
Sempre fui alguém muito interessado por história, e li bastante coisa sobre o nazismo e a Shoah no decorrer da vida, desde biografias de Adolf Hitler (por Ian Kershaw e Volker Ulrich), Josef Goebbels e Heinrich Himmler (por Peter Longerich) até obras fundamentais como Ascensão e queda do Terceiro Reich, de William L. Shirer, A destruição dos judeus europeus, de Raul Hilberg, e A Alemanha nazista e os judeus, de Saul Friedländer. Também aprecio muito a abordagem do filósofo alemão Eric Voegelin em Hitler e os alemães, inclusive em suas críticas às reflexões de Hannah Arendt em Origens do totalitarismo. Então, posso dizer que o tema sempre me interessou. Quando do avanço da extrema direita no Brasil, guardadas as mais que devidas proporções, foi inevitável traçar alguns paralelos entre o nosso presente e aquele passado, seja entre as figuras centrais e seus apoiadores (que Voegelin caracterizaria como “ralé”), seja com relação à emergência de uma realidade agressivamente delirante, com seus bodes expiatórios, demandas irracionais e alvos (ou vítimas) preferenciais. Além disso, tendo crescido no interior de Goiás, posso dizer que alguns dos absurdos vociferados pelos novos próceres da república eram e são bastante similares às boçalidades que ouvia com certa frequência por lá, sobretudo com relação a negros, mulheres e gays. Não vejo nazistas em toda parte, como o narrador do romance, mas convivi com pessoas que externavam rotineiramente noções e posicionamentos extremistas como se não fossem nada ou, pior, como se fossem piadas. O pai do colega de escola que fazia a saudação nazista ao chegar do trabalho e desculpava os hediondos crimes hitleristas não é um personagem que inventei. Logo, e desgraçadamente, nada que Bolsonaro diz e faz é novidade para mim, de tal forma que foi inevitável conceber uma narrativa que tivesse algo a ver com todas essas coisas, que explicitasse o arrastar contínuo e imperturbável do ideário mais abjeto.

• A pandemia de covid-19 também está presente em Meu passado nazista. Como você avalia aquela época que assombrou o Brasil, tanto pela possibilidade real da morte como pela forma como o governo de então lidou com a questão?
Os membros do governo anterior deveriam ser julgados pelas mortes que causaram diretamente durante a pandemia. As campanhas de desinformação, a postura desumana, o elogio da ignorância e a demora na compra de vacinas causaram centenas de milhares de mortes. Alguns deles estão sob julgamento, mas por questões outras e também graves, mas a tentativa de golpe não levou à morte de tantos brasileiros. Então, creio que tanto a pandemia quanto o pós-pandemia são trágicos e desastrosos. O Brasil seguiu em frente, assolado pelas mesmas divisões de antes, e é como se tudo o que aconteceu não passasse de uma fatalidade. Centenas de milhares de mortes eram perfeitamente evitáveis. É preciso se lembrar disso sempre, e jamais esquecer quem foram os responsáveis por tamanha calamidade.

• O futebol aparece em várias passagens de Meu passado nazista, sempre envolto em intensas discussões. Há uma declaração de um dos personagens que chama a atenção: “O Brasil é o túmulo do futebol”. Por que o futebol te atrai como assunto literário? E você concorda com o seu personagem, levando em conta o futebol brasileiro atual?
Gosto muito de futebol e deploro o estado a que chegou o futebol brasileiro. Carlo Ancelotti é um técnico extraordinário, mas a contratação dele pela CBF expõe coisas muito incômodas: que o futebol brasileiro ficou para trás, que o Brasil não forma mais técnicos de ponta, que os cartolas são incapazes de organizar uma liga, que o nosso calendário de competições é um dos piores que existem, e por aí afora. Em um certo sentido, ainda somos amadores, e no cenário atual o amadorismo não angaria títulos, respeito ou sequer relevância. Claro que ainda há exemplos pontuais de organização e sucesso, o que explica a supremacia recente de clubes brasileiros na Libertadores da América, por exemplo. Mas, em termos globais, estamos cada vez menores. Talvez recuperemos algo da grandeza pretérita graças a Ancelotti e a despeito da CBF, talvez conquistemos o hexacampeonato mundial (difícil, mas não impossível), mas, se for o caso, será uma glória circunscrita, que não apontará para uma profissionalização e uma reestruturação do nosso futebol. Sinto que estamos condenados ao amadorismo, à corrupção sistêmica e ao pachequismo, inclusive no âmbito da imprensa esportiva ou de parte dela, desinformada, preconceituosa e desmiolada.

Meu passado nazista chega quase duas décadas depois de seu livro de estreia, Hoje está um dia morto, lançado em 2006. Como você avalia a sua trajetória, tem sido como imaginava?
Creio que ela tem sido melhor do que eu imaginava, talvez porque sou um pessimista. Quando um amigo chamado Aldair Aires inscreveu Hoje está um dia morto no Prêmio Sesc de Literatura, eu vivia em Silvânia, no interior de Goiás, trabalhava como professor na rede pública e achava que, na melhor das hipóteses, publicaria meus livros com recursos próprios, em tiragens mínimas e editoras locais. O prêmio possibilitou que o livro fosse publicado por uma grande editora, a Record, e que eu fizesse uma turnê de lançamentos pelo Brasil. Em resumo, o meu trabalho foi agraciado com publicação, distribuição e visibilidade. Estou longe de ser um best-seller, mas, dezenove anos depois, a Record ainda acredita e investe nos meus esforços. Logo, não tenho mesmo do que reclamar.

• Silvânia, a cidade em que viveu no interior de Goiás, é um dos personagens de Meu passado nazista. Sua terra aparece frequentemente em suas histórias, mesmo você morando há anos em São Paulo. O que ainda te atrai nesse passado afetivo e geográfico?
Os nossos anos de formação sempre voltam para nos assombrar ou divertir (existem boas lembranças, afinal). No meu caso, é meio inevitável que eu retorne a certos cenários que conheci tão bem. Não conseguiria escrever uma história situada em um local que desconheço. Mas, no que diz respeito a Goiás, creio que Meu passado nazista esgotou esse filão. Vivo há quinze anos em São Paulo, e na década anterior à mudança para cá tive uma existência meio nômade, passei por Goiânia, Brasília, Jerusalém e outros lugares. A fim de abordar sem freios a cidadezinha em que fui criado, precisei me distanciar dela, em um movimento até certo ponto inconsciente. Eu senti essa urgência de sair de lá e fui embora, saí pelo mundo e eventualmente me fixei em São Paulo. Mas esse distanciamento cobra um preço, e há anos minha vida está alhures ou, melhor dizendo, está aqui. Em Eufrates, o cenário paulistano já se fez mais presente do que o centro-oestino. E boa parte de Meu passado nazista não se passa em Goiás. Logo, é bem possível que eu passeie por outras paisagens nos projetos futuros.

• Nos últimos anos, houve uma proliferação de festivais literários pelo país — em especial, impulsionados pela Flip — e também o surgimento de inúmeros cursos de escrita criativa. Você acredita que vivemos um ambiente mais propício à criação literária, ao surgimento de novos autores?
Creio que sim. Pelo que vejo, não obstante a crise recente do mercado editorial, tornou-se mais fácil ser publicado. O único problema é que há muitos que querem ser escritores, posar como tais, mas não parecem muito concentrados em escrever. Digo isso porque escrever envolve (ou é resultado) de muitas outras coisas: leitura, estudo, mais leitura, mais estudo, disciplina, clareza de propósitos, concentração, mais leitura e mais estudo. Gostaria que houvesse menos oficinas de escrita e mais oficinas de leitura. A leitura forma e informa o autor. A leitura presenteia o autor com uma genealogia à qual se filiar, ainda que forçada e/ou bastardamente. A leitura oferece parâmetros. E todo autor precisa, sim, ler os clássicos e compreendê-los em seus respectivos contextos. Isso dá trabalho, e nem sempre é prazeroso. Ler Henry Fielding, Jane Austen ou Machado de Assis é prazeroso. Ler Samuel Richardson nem sempre é, mas ele ajudou a constituir isso que a gente chama de romance moderno. Se o aspirante a escritor não conhece a fundo quem estabeleceu as regras do jogo, como ele poderá jogar e até mesmo, se e quando for o caso, quebrar essas regras? Dê uma olhada no capítulo 14 do Ulysses e observe como James Joyce emula e satiriza uma infinidade de estilos e autores. O autor precisa chegar a um ponto similar, tornar-se uma espécie de repositório do que veio antes e encontrar uma maneira de encaixar a própria voz na melodia. O resto é ruído.

• A morte é, sem dúvida, o grande tema da literatura universal. Aos 45 anos, como você encara a certeza do fim? A literatura seria a melhor maneira de encarar esta batalha perdida?
Encaro como sempre encarei: com tranquilidade. Sempre que penso a respeito, concluo que ocupo o meu tempo relativamente bem e tenho muita sorte por trabalhar em ou com algo que realmente aprecio. Claro que não gostaria de morrer (muito) repentinamente, deixando assuntos inacabados. Quero terminar esta resposta, por exemplo. Tenho horror à desorganização e minha esposa sabe onde guardo todos os meus documentos, apólices de seguros, senhas, cadernos e rascunhos. Em um certo sentido, valho mais morto do que vivo, o que não deixa de ser engraçado. Talvez por isso insista em viver, pois sou uma pessoa meio sacana. Acho que morrer bem é uma questão de organização: caso seja possível, você se esforça para que os entes queridos não tenham muito trabalho para se livrar da sua carcaça e resolver as eventuais pendências. Depois, com sorte, restarão as boas lembranças e, no meu caso, alguns livros dos quais me orgulho. Não peço mais do que isso. E, ao que tudo indica, cheguei vivo ao final da resposta. Veremos se terei a mesma sorte na próxima pergunta.

• A filosofia e a referência a filósofos estão muito presentes em sua obra, em especial em Meu passado nazista. De que maneira a filosofia contribui para a sua literatura?
Minha formação é em filosofia, o que explica essa recorrência de citações e discussões. Por outro lado, academicamente, estudo temas que não são facilmente “literalizáveis”, como o projeto de metafísica descritiva desenvolvido por P. F. Strawson, um pensador oxfordiano, analítico, no estupendo Indivíduos. Então, quando surge em meus romances, a filosofia é quase sempre um tópico de conversa, como no diálogo entre pai e filho a certa altura de Eufrates. Claro que a conversa revela algo dos personagens e do contexto em que vivem (das manifestações de 2013), além de encaminhar a narrativa em uma determinada direção, o que não me parece pouco. Em Meu passado nazista, a filosofia está ainda mais entranhada no romance por conta da figura de Martin Heidegger. O pensamento heideggeriano permanece como um dos mais influentes na contemporaneidade. Há noções e conceitos em obras de Giorgio Agamben (O aberto), Hans Ulrich Gumbrecht (Produção de presença), Massimo Cacciari (Labirinto filosófico), Byung-Chul Han (O coração de Heidegger) e Peter Sloterdjik (Regras para o parque humano) que, de uma forma ou de outra, devem as calças a Heidegger, mesmo quando assumem a forma de críticas contundentes — contrapor-se ainda é dialogar. Claro que, em meu romance, abordo elementos biográficos e conceituais que situam Heidegger nas fileiras nazistas, algo tão indesculpável quanto incontornável. Em vista de tudo isso, é preciso refazer a pergunta heideggeriana acerca do fim (enquanto finalidade e enquanto término) da filosofia, refletindo sobre seus limites e desvãos. Meu passado nazista não chega a tanto, mas ressalta as dificuldades inerentes à discussão de tais e tais coisas à beira do abismo, que é onde nos encontramos agora, seja pela emergência climática, seja pela onipresença da estupidez.

André de Leones

• Você acompanha a literatura brasileira contemporânea? O que mais te chama a atenção hoje em dia entre os tantos autores e livros publicados?
Acompanho a literatura brasileira contemporânea e faço isso até por dever profissional, pois sou um escritor brasileiro contemporâneo (preciso saber onde me situo, não?) e também colaboro como resenhista para algumas publicações. Existe uma pluralidade de vozes, autores egressos de todos os cantos do Brasil, o que é sempre bom. Por outro lado, há poucos ficcionistas relevantes (para o meu gosto) que escapam do chatíssimo filão autoficcional e oferecem algo inventivo. E, mesmo entre os que escapam, predomina uma prosa convencional, de tons meio jornalísticos ou “cronísticos” e, em seus piores exemplos, denunciatória e engajada. Como escreveu David Markson em Reader’s block, “política em uma obra literária é como um tiro de pistola no meio de um concerto”. Claro que ele se refere à instrumentalização da narrativa com fins políticos e ideológicos pré-estabelecidos, não à presença de motivos e discussões políticas. Não quero ser “doutrinado” por ninguém, à direita ou à esquerda, e não suporto livros moralizadores. Hoje, com alguma frequência, um romance é julgado pelo “tema”, não pela qualidade literária intrínseca, até porque muitos leitores parecem incapazes de identificar e debater os aspectos constitutivos de uma determinada obra. As supostas urgência, dignidade e “correção” do tema não pressupõem qualidade literária. Mas, felizmente, há quem ignore os esperneios e faça o que bem entende, sem tropeçar na ordem do dia. Cito alguns exemplos: Tadeu Sarmento, Veronica Stigger, Adriana Lisboa, Luis S. Krausz, Ana Paula Maia, Antônio Geraldo Figueiredo Ferreira, Maira Parula, Wesley Peres, André Sant’Anna, Ana Miranda, Edyr Augusto, Joca Reiners Terron, Patrícia Melo e Marçal Aquino.

• Você utiliza como epígrafe de Meu passado nazista uma interessante afirmação de Nostalgia, do romeno Mircea Cărtărescu: “Literatura é teratologia”. Obviamente, ao usá-la como epígrafe, você concorda com esta assertiva. Por quê?
Literariamente, a monstruosidade é sempre mais interessante do que a suposta normalidade, do que o supostamente comum, ordinário. E, além disso, o monstruoso não deixa de nos incluir em algum nível; o monstruoso diz algo que remete ou tem a ver com o que temos de obscuro ou mesmo intraduzível. Falando especificamente de Meu passado nazista, monstruosidades grandes e pequenas, extraordinárias e cotidianas, são cometidas, referidas e descritas no decorrer do livro. Daí a ideia desse romance como um exercício de teratologia, ainda que nem todas as anomalias e deformidades ali presentes sejam necessariamente congênitas — pelo contrário. A história e as histórias dentro da história são repletas de personagens que tomam decisões muito ruins, seja por fraqueza de caráter, seja por ignorância, seja por medo, seja por raiva, seja pela obtenção de um prazer momentâneo, seja por oportunismo. Aos olhos dos outros, em especial daqueles que em algum nível saem prejudicados aqui e ali, são indivíduos monstruosos. Claro que são todos e apenas humanos, mas, em algum momento, em maior ou menor grau, todos nós fomos monstruosos para com outrem.

• Se pudesse ter escrito algum dos clássicos da literatura universal, qual seria? Por quê?
A história do olho, de Georges Bataille. Porque é a melhor comédia romântica de todos os tempos. Falando sério, e parafraseando Sérgio Augusto de Andrade, acho Bataille genial porque ele fez algo muito mais audacioso do que transformar a pornografia em arte: ele transformou a arte em pornografia. Levando-se em conta a carolice atual, verificável em todos os lados da conversa, um livro que possui uma capacidade, digamos, ecumênica de chocar é necessariamente um livro saudável e digno de admiração. Também gostaria de ter escrito Satíricon, de Petrônio, pois gostaria de frequentar alguns daqueles ambientes e porque o livro é primoroso na forma como registra certos excessos. Como você pode ver, tenho certo apreço pelo decadentismo. Quem diria, não é mesmo?

• Como leitor de ficção, o que você mais busca em um livro?
As formas como a curiosidade e a inventividade do autor se fazem presentes. Hoje, há muitos autores irrespondivelmente voltados para dentro, ensimesmados, enforcados nas próprias vísceras e aparentemente despreocupados com relação às possibilidades formais do romance ou, o que é pior, ignorantes dessas possibilidades. Críticos e escritores de segunda categoria, como James Wood e Jonathan Franzen, passaram a impressão de que as gerações anteriores foram longe demais e exauriram alguns caminhos. Houve, primeiro, um retorno ao convencionalismo e, depois, a emergência das investidas autoficcionais. Mas o esgotamento parece estar nos olhos dos que carecem de curiosidade e imaginação. Autores contemporâneos como Michael Brodsky, Ali Smith, Antonio Moresco, Louis Armand, Elfriede Jelinek e Cesar Aira, além dos brasileiros que citei, demonstram que os caminhos, sejam lá quais forem, permanecem escancarados. É uma pena que alguns deles não obtenham o reconhecimento que merecem. O que vende é certa prosa engessada, desinformada (tenho a impressão de que muitos autores por aí leem pouco e leem mal) e desinteressante, que parece se satisfazer com alguma “correção” estilística e mirar outros tipos de “correção”. A autoficção, por exemplo, é um sintoma dos tempos em que vivemos, uma das muitas formas disponíveis de autoexposição, autojustificação e automistificação. Esta é uma era de testemunhas que não oferecem testemunhos do mundo, mas do próprio umbigo, escrevendo livrinhos chinfrins que parecem versões expandidas (mas não muito) dos “textões” que pululam nas redes sociais. Mas a boa literatura sobrevive por aí. Basta ter curiosidade e saber procurar.

Meu passado nazista
André de Leones
Record
362 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho