A graça nos tempos sombrios

Norte-americana Sigrid Nunez fala de seu romance mais recente, comenta os caminhos atuais da literatura e diz o que mudou após vencer o National Book Award
Ilustração: Sigrid Nunez por Fabio Abreu
01/05/2022

Tradução: Vivian Schlesinger

Há um bom tempo, e especialmente depois dos momentos mais críticos da pandemia, parece que não existem grandes motivos para achar graça das coisas — seja no Brasil, país historicamente lesado por tudo quanto é lado, ou nos Estados Unidos, onde nasceu e vive a experiente romancista e professora de escrita Sigrid Nunez.

Para a entrevistada desta edição do Rascunho, no entanto, é “importante lembrar o grande papel do humor em todos os aspectos da nossa vida”. Essa reflexão se estende à maneira que Sigrid encontrou para dar certa leveza ao seu romance mais recente, O que você está enfrentando.

Em uma narrativa que tem “tanto a ver com doença, morte e tristeza”, nas palavras da autora, os momentos cômicos são obrigatórios. Esse recurso impediu — numa história que traz desde um discurso de abertura apocalíptico, ministrado por um acadêmico muito certo das coisas, e se desenvolve por meio da relação entre a narradora e uma amiga com câncer terminal — que o livro se tornasse “implacavelmente pesado e sombrio”. Não que ela já não tivesse entrado em lugares sombrios anteriormente.

No romance O amigo, vencedor do National Book Award 2018, Sigrid escreveu sobre suicídio — “o maior dos mistérios”, conforme explica, já que o ser humano é o único capaz desse ato, o “menos natural que poderia haver”. Além disso, conheceu pessoas próximas que tiraram a própria vida e relata que, nos Estados Unidos, o suicídio vem aumentando nas últimas décadas.

Por mais que a professora de escrita pareça ter predileção por assuntos espinhosos, ela não vê essa mesma espécie de coragem de assumir riscos em seus alunos. “Em vez disso, colocam cada vez mais fé em ficar alinhados, aderir ao que eles veem como ‘as regras’”, explica. “Querem sucesso, mas também querem segurança.”

E para não deixar de aproveitar os mais de 25 anos de experiência da ficcionista, que estreou em 1995 com A feather on the breath of God, o Rascunho pediu que Sigrid deixasse algumas palavras a quem está começando nesse meio repleto de ódio, rivalidade e ciúme, conforme constatou John Updike e com o que, com tristeza, ela concorda.

“Um conselho que sempre dou a escritores iniciantes é que leiam o máximo possível. É assim que se aprende a escrever, não fazendo cursos ou participando de encontros literários, mas lendo outros autores”, diz. Ela completa, ainda, sugerindo que é preciso ter cuidado ao escolher as obras e que a motivação para escrever não deve estar ligada com a ideia de publicar ou fazer sucesso.

• O que você está enfrentando apresenta diversas histórias, análises diferentes da realidade e cenas do cotidiano. Como funciona, para você, o equilíbrio entre a observação do mundo e o trabalho imaginativo na hora de escrever?
Não tenho consciência de fazer algum esforço específico para equilibrar as duas coisas. É parte de como eu vivo e trabalho todo dia. Quanto maior o poder de observação de um escritor, melhor escritor será. Quando escrevo é natural me basear naquilo que observo na vida ao meu redor, assim como em minhas próprias memórias e experiências pessoais. Ao mesmo tempo, escrevo porque quero usar minha imaginação, para ser criativa e inventar histórias, para escrever sobre coisas que nunca aconteceram. Meu papel é encontrar um caminho para construir a narrativa de modo a conter todos esses elementos.

• Os discursos apocalípticos, como o ministrado por um palestrante na abertura de O que você está enfrentando, te assustam? Dos anos 1990, quando lançou seu primeiro livro, até a publicação do trabalho mais recente, eles aumentaram?
Sim, fico assustada pelo que o palestrante tem a dizer sobre o destino da Terra e da humanidade. Me assusto porque ele está correto sobre as ameaças que estamos encarando. E apesar de todas as palavras de advertência e evidências científicas que recebemos por décadas, agora — desde bem antes dos anos 1990 — continuamos em negação. Em vez de minorar a ameaça, temos permitido que se tornem mais e mais terríveis. Então, a essa altura é difícil não concluir que a humanidade simplesmente não tem a vontade coletiva para impedir a catástrofe futura.

• Qual a relevância da literatura em um cenário como o de hoje, em que a guerra nuclear é novamente uma ameaça próxima e a pandemia atormentou o ser humano?
A literatura é sempre relevante porque lida com seres humanos e a experiência humana. No entanto, não acredito que a literatura possa mudar o mundo. O que romancistas podem fazer é explorar e iluminar o que está acontecendo no mundo em um dado momento histórico. O que eles não podem fazer é criar um mundo mais justo, ético ou moral, apesar de esses serem assuntos frequentemente abordados nas obras de ficção. Também acredito que, por maior que seja o desespero, as pessoas vão continuar a escrever. Penso nas famosas palavras de Brecht: “Em tempos sombrios/ haverá canto?/ Sim, também haverá canto./ Sobre os tempos sombrios”.

• Seu romance de 2010, Salvation City, trata de uma pandemia de gripe. Chegou a revisitar esse trabalho após o coronavírus? O que te levou a escrever sobre isso naquela época?
Me enfurecia ouvir gente como Donald Trump repetir várias e várias vezes que ninguém poderia ter previsto a pandemia de covid-19. Por anos especialistas em saúde pública haviam alertado que outra pandemia da escala da Grande Gripe de 1918 não era uma questão de se, mas de quando. Comecei a prestar atenção ao trabalho do dr. Anthony Fauci nos anos 1980, durante a crise da Aids. Li A grande gripe, de John M. Barry, quando foi lançado, em 2004. Eu sabia que a possibilidade de ocorrer uma pandemia catastrófica em algum momento na minha vida era tudo, menos improvável. Mas Salvation City não começou com a ideia de uma pandemia; começou com uma ideia para um personagem. Após ter escrito cinco romances com protagonistas femininas, queria criar uma história sobre um personagem masculino — um menino. Eu me dava conta que, durante a gripe de 1918, um grande número de crianças ficaram órfãs — a autora Mary McCarthy foi uma delas. A mãe de outro grande autor americano, William Maxwell, também foi uma vítima daquela gripe. Com dez anos na época, Maxwell nunca se recuperou da perda, e sua dor incessante está no coração de toda sua obra. Tentei imaginar como seria para meu protagonista, um garoto de treze anos chamado Cole, passar por essa provação. E assim nasceu Salvation City.

“Você deve escrever o que quer escrever, e não o que acha que outros querem que você escreva.”

• Casamento, ter ou não filhos e o envelhecimento da mulher são temas que aparecem em O que você está enfrentando. Há mais espaço, hoje, para discutir essas questões? A literatura pode ser uma ferramenta para contornar tabus?
Há um longo registro das tentativas da literatura não só contornar os tabus como quebrá-los, e claro, há muitos assuntos hoje amplamente abordados na literatura sobre os quais nenhum autor poderia escrever e sair ileso no passado. Em romances vitorianos, por exemplo, as pessoas parecem ter filhos sem jamais ter feito sexo. Apesar de o casamento ter sido sempre um grande assunto para a literatura, até pouco tempo a maternidade não o era. Também é verdade que uma heroína com uma opinião negativa sobre casamento e maternidade não seria aceitável para a maioria dos leitores. Isso mudou. Nos Estados Unidos, livros sobre questões da mulher e que focam em personagens que nem sempre se enquadram na heroína feminina tradicional, simpática, agradável, têm sido publicados em grande número. Desnecessário dizer que a audiência para esses livros é quase exclusivamente feminina. Mas na comunidade literária esse trabalho é agora tratado com uma seriedade e respeito que não recebiam antes. Envelhecer é uma das maiores experiências da vida, então como poderia deixar de ser interessante, digno de se pensar e escrever? E por eu ser mulher, naturalmente a maneira em que envelhecer afeta a mulher e como nossa sociedade trata a mulher depois que ela ultrapassa certa idade me interessam particularmente. Há muito sobre envelhecimento que não pode ser considerado animador. Mas, como assunto para ficção, é muito rico. De fato, esta tem sido uma grande descoberta para mim na maturidade: envelhecer pode ser muitas coisas, mas entediante é que não é.

• Apesar de passar por temas pesados, O que você está enfrentando tem trechos engraçados. Como vê o papel do humor na ficção?
Acho importante sempre lembrar o grande papel do humor em todos os aspectos da nossa vida. Quando leio um romance que não inclui humor me parece que algo essencial ficou de fora. Mesmo experiências trágicas geralmente contêm alguns elementos cômicos. Pense em todas as piadas excelentes que viralizaram durante a pandemia e o lockdown. E um livro como O que você está enfrentando, que tem tanto a ver com doença, morte e tristeza, obrigatoriamente precisaria de momentos de leveza para impedir que se tornasse implacavelmente pesado e sombrio.

• Em um trecho do romance, há uma brincadeira sobre não haver mais tempo para se ler livros tão grandes como Graça infinita, do David Foster Wallace. Acha que há alguma verdade nisso? As redes sociais, por exemplo, podem ser inimigas da literatura?
Eu mesma não tenho dificuldade em encontrar tempo para ler livros grandes, mas com o passar dos anos tenho achado cada vez mais difícil pedir a meus alunos que leiam livros que não sejam curtos. A maioria deles resiste até mesmo contra uma quantidade moderada de leitura para um curso. E apesar de as redes sociais serem uma parte enorme do problema, isso não começou com elas. Mesmo antes da existência da internet notei que os alunos chegavam à universidade cada vez menos interessados em literatura e suas habilidades na leitura e escrita eram cada vez mais fracas.

• Vencer o National Book Award de 2018 com O amigo adicionou algum tipo de tensão a mais na hora de escrever? O que o prêmio representou para você?
Fiquei extremamente grata pelo reconhecimento. Honestamente não pensei que o receberia, porque nenhum dos meus livros anteriores foi sequer finalista de algum prêmio importante. Talvez, se tivesse ganhado o prêmio mais cedo na carreira, ele teria um efeito maior sobre mim, mas nada na maneira que escrevo ou penso a escrita mudou como consequência de vencer em 2018. Além de vendas muito maiores nos Estados Unidos, a maior diferença foi no número de edições estrangeiras do meu trabalho que surgiram desde então.

• O espanhol Javier Cercas disse, em entrevista ao Rascunho, que o sucesso pode destruir um escritor. Como vê essa afirmação?
Certamente já vi isso acontecer a alguns escritores. E você sabe o que se diz sobre o Prêmio Nobel ser o “beijo da morte”, porque há vários escritores que nunca mais escreveram tão bem como escreviam após recebê-lo. Mas não podemos esquecer que muito da melhor literatura do mundo foi escrita por pessoas que tiveram sucesso. Talvez não seja uma questão de sucesso, e sim de fama. Há uma passagem em Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rilke, no qual ele lista todas as maneiras com que as pessoas tentam e torturam o “solitário” — que para ele, claramente, refere-se ao escritor — para destruí-lo. No fim, ele escreve, as pessoas tentam mais uma coisa: a fama. “E com esse barulho, quase todo mundo já levantou a cabeça e se distraiu.”

“Não acredito que a literatura possa mudar o mundo. O que romancistas podem fazer é explorar e iluminar o que está acontecendo no mundo em um dado momento histórico.”

• Emprestando uma pergunta que surge em O amigo: é verdade que o mundo literário é um lugar de ódio, em que rivalidade e ciúme estão sempre em jogo?
Essa é, na verdade, uma citação de uma entrevista de rádio com o autor John Updike. O entrevistador fez essa pergunta e ele respondeu, sim, é verdade. Não deveria ser assim, disse Updike, porque a literatura não deveria ser uma competição. Ele compara a situação a um bote que está afundando porque muita gente está tentando subir, e cada um pensa que empurrar o outro fará o bote subir um pouco mais do seu lado. Há muita inveja e inimizade, disse Updike. E, que tristeza, também descobri que isso é verdade.

• O amigo discute suicídio. Como foi mergulhar em um tema como esse? Diria que há alguma espécie de fixação dos escritores por esse tema?
Não acho que escritores tenham mais fixação em suicídio do que outras pessoas. É só que sabemos como eles pensam porque escrevem sobre isso. Penso muito sobre o que disse Camus, que há apenas uma questão filosófica séria: cometer suicídio ou não. Em outras palavras, se a vida vale viver ou não. Mas também vejo suicídio como o maior mistério. Autoassassinato é o ato menos natural que poderia haver — e, claro, nós humanos somos o único animal que o comete. Conheço algumas pessoas que tiraram sua própria vida, e uma das razões que comecei a escrever O amigo foi que me chamou a atenção que entre meus amigos e conhecidos havia vários que, mesmo não estando frente a um perigo iminente, estavam convencidos de que em algum momento no futuro eles iriam se matar. Nos Estados Unidos, aproximadamente nas duas últimas décadas, a taxa de suicídio aumentou em cerca de 30%. Infelizmente, as pressões extraordinárias do presente tendem a aumentar esse número.

• Pensar a literatura academicamente pode, de alguma forma, atrapalhar a criação? Com tantos cursos e recursos à disposição, ainda há espaço para o escritor “rebelde”?
Acho, sim, que em alguns casos as oficinas de escrita e manuais de como escrever bem podem confundir e inibir uma mente literária original e particularizada. O escritor iniciante começa a acreditar que existe um método habitualmente confiável que ele precisa dominar para escrever como um profissional, e não é assim, de forma alguma, que nasce um escritor interessante. Mas o que mais atrapalha escritores atualmente é o medo muito real de serem atacados publicamente, de serem humilhados, banidos, e silenciados para sempre por terem expressado uma opinião diferente de outros e que, portanto, seja não só inaceitável mas castigável. Meus alunos de escrita sempre falam em mostrar sua melhor face, como se diz, querendo escrever de tal forma a receber a aprovação, ou no mínimo evitar a reprovação. Mas como diz Rachel Cusk, querer que gostem do que você escreve corrompe sua escrita. Meus alunos atualmente têm medo de assumir quaisquer riscos. Em vez disso, colocam cada vez mais fé em ficar alinhados, aderir ao que eles veem como “as regras”. Querem sucesso, mas também querem segurança. Tenho que dizer que são tempos muito desafiadores para qualquer tipo de escritor dissidente.

• Há algum tipo de lição que aprendeu com seus alunos de escrita ao longo dos anos, em diferentes instituições de prestígio? O mestre pode ser influenciado pelo aprendiz?
Com certeza. Passo muito tempo lendo atentamente os manuscritos dos alunos, tentando ver o que o autor pretendia para determinar o que funciona e o que não funciona, e por que algo funciona ou não. Esse tipo de atenção é necessariamente útil para afiar minhas próprias habilidades como escritora.

“A humanidade simplesmente não tem a vontade coletiva para impedir a catástrofe futura.”

• Após publicar oito romances, ainda há dificuldades na hora de começar a criar uma nova história?
Sim, sempre as mesmas dificuldades. Sei o que sinto e sei o que quero dizer, mas como é difícil encontrar as palavras certas, criar frases belas e precisas. E ainda há a questão de encontrar a forma certa, a melhor forma possível para a história que se quer contar. Se você não acerta isso desde o começo, pode se deparar com um combate imenso.

• O que diria para quem está começando na literatura, considerando seus mais de 25 anos de experiência?
Um conselho que sempre dou a escritores iniciantes é que leiam o máximo possível. É assim que se aprende a escrever, não fazendo cursos ou participando de encontros literários, mas lendo outros autores. E deve-se tomar muito cuidado com o que se lê, porque, ao final, como disse Annie Dillard, o que você lê é o que você vai escrever — da mesma forma que o que você aprende é o que você saberá. Ainda diria que você deve escrever o que quer escrever, e não o que acha que outros querem que você escreva. E, finalmente, se você vai escrever, deveria certificar-se de que entre suas razões haja uma que nada tem a ver com publicar ou com sucesso literário. Em outras palavras, além de todas as outras considerações, escrever tem de te dar algo de valor pela simples prática. Todo escritor deveria contemplar a seguinte citação do Bhagavid Gita (das escrituras sagradas hindu): “Você tem o direito de trabalhar, mas apenas em nome do trabalho. Você não tem o direito aos frutos do trabalho. Desejo pelos frutos do trabalho nunca deve ser seu motivo para trabalhar”.

O que você está enfrentando
Sigrid Nunez
Trad.: Carla Fortino
Instante
176 págs.
O amigo
Sigrid Nunez
Trad.: Carla Fortino
Instante
216 págs.
João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

Rascunho