A conquista da viajante

Autora do primeiro livro escrito em árabe a vencer o The International Booker Prize, Jokha Alharthi acredita na potência transformadora da boa literatura
Jokha Alharthi, autora de “Damas da lua”
25/11/2020

Quando Jokha Alharthi subiu no palco do The International Booker Prize para receber o prêmio de melhor livro em 2019, usando um hijab prateado e festivo, se tornou um grande símbolo: marcou a primeira vez que um livro escrito em árabe foi laureado com o prêmio. E não só: seu livro foi a primeira obra do Omã a ser traduzida para o inglês — pelas mãos de Marilyn Booth, que em uma postura exemplar do Booker recebe o prêmio junto com a autora. Chegando ao microfone, Alharthi afirmou: “É uma grande honra receber o prêmio”. E é. Está na companhia de Philip Roth, Chinua Achebe e das vencedoras do Nobel de Literatura Olga Tokarczuk e Alice Munro.

Damas da lua, o livro que lhe rendeu o prêmio, é um relato polifônico da sociedade em mudança no Omã. A tradução para o português, assinada por Safa Jubran, foi publicada recentemente no Brasil pela Moinhos. Jokha Alharthi concedeu esta entrevista exclusiva ao Rascunho por e-mail, na qual conta sobre suas referências literárias, a experiência de vencer o prêmio e a importância da literatura para os dias atuais.

• Um ponto interessante em sua escrita é que você usa múltiplas perspectivas, oferecendo ao leitor aspectos diferentes sobre as mudanças sociais. Como chegou a esta estrutura?
Sempre gostei de romances polifônicos. Para um único acontecimento há diferentes interpretações segundo o ponto de vista. O romance polifônico funciona bem quando há muitos personagens, uma vez que nos abre um espaço maior para simpatizar com os personagens e compreendê-los, apesar de suas diferenças.

• As três irmãs — Mayya, Assmá e Khawla — nos dão perspectivas muito diferentes de ser mulher na sociedade omanense. Como a situação da mulher mudou com o tempo? E quais as diferenças mais expressivas entre a situação de homens e mulheres?
É muito difícil generalizar quando falamos das mulheres no Omã. As mulheres omanitas são muito diversas, de modo que não é possível falar delas como se fossem uma coisa só. Dentre elas estão: ativistas de direitos humanos, feministas, escritoras, artistas e acadêmicas, que se diferem umas das outras por suas ideias e modo de vestir, além de — geralmente — seu modo de ver a vida. Há, também, mulheres tradicionais que realizam papéis tradicionais na família e na sociedade, conservando fortemente as tradições. Não é muito comum as mulheres estudarem no Omã, e uma mudança radical só é possível pela educação. Ao longo da história, essa diversidade também esteve presente. Minha bisavó, por exemplo, era uma erudita cuja opinião era levada em consideração até pelos homens; há também a tia de meu pai, que é poeta. Há mulheres que são oficiais no exército, políticas e comerciantes; assim como existem aquelas que não saíram de casa, sonhando exclusivamente em casar e ter filhos.

• Você é a primeira autora árabe a vencer o The International Booker Prize. Qual é a importância de receber o prêmio?
Acredito que isso seja importante pelo fato de ser escritora e mulher, e por ser do Sultanato de Omã, cuja literatura dizem não ter grande circulação, mesmo no mundo árabe.

“É muito interessante observar que alguns leitores buscam semelhanças, ao passo que outros buscam diferenças.”

• Ao conceder-lhe o prêmio, os juízes descreveram Damas da lua como “uma visão ricamente imaginada, envolvente e poética”. Você concorda com esta definição?
Já disseram muita coisa sobre Damas da lua, e não consigo pensar se concordo ou discordo, pois, quando o romance sai da minha mão e do meu controle, ele inicia uma vida nova entre os leitores. Ainda assim, a definição apresentada pelos jurados do Booker não deixa de ser bonita e feliz.

• Damas da lua tem ganhado traduções para diversos idiomas. Como é a experiência de ter sua obra traduzida e lida em outros países?
Foi uma experiência muito rica e interessante. Estou feliz de que leitores diferentes de todas as partes do mundo possam ler pela primeira vez a literatura do Omã por meio do meu livro. Acompanho diferentes comentários escritos pelos leitores do romance, e observo variados pontos de vista e maneiras de olhar — enquanto seres humanos — para temas que nos importam e que tomam forma pela literatura. Em alguns países orientais, como a Índia, os leitores falavam que existiam semelhanças entre suas sociedades e a sociedade apresentada no romance. Já em alguns países ocidentais, como os Estados Unidos, os leitores falavam sobre as diferenças entre aquilo com que se acostumaram em suas vidas e um mundo diferente apresentado no romance. É muito interessante observar que alguns leitores buscam semelhanças, ao passo que outros buscam diferenças.

“A viagem é uma experiência essencial para minha formação.”

• A literatura escrita originalmente em árabe é pouco conhecida no Brasil. Quais são as referências e autores mais importantes em sua formação como leitora e escritora?
Sempre fui um grande fã da literatura árabe clássica. Ainda gosto de al-Jahiz (século 9) e Abu Hayyan al-Tawhidi (século 10). Para a literatura árabe contemporânea, é difícil listar todos os meus autores favoritos. Esses nomes são apenas exemplos: al-Tayeb Salih, Amir Taj al-Sir (Sudão), Raja Alim (Arábia Saudita), al-Tahir Yahya, Miral al-Tahawy (Egito), Yusuf Fadil (Marrocos), Malik Hadad (Argélia), Zahran al-Qasmi, Huda Hamad (Omã).

• Você tem doutorado pela Universidade de Edimburgo (Escócia) e é professora na Universidade Sultan Qaboos (Omã). De que maneira as culturas europeia e árabe se comunicam no momento em que você está escrevendo ficção?
Já morei oito meses na Califórnia e alguns anos em Edimburgo. Passei por outras cidades nos últimos tempos, como Tóquio, Seul, Berlim, Londres, Bangkok e Cairo, entre outras. A viagem é uma experiência essencial para minha formação. Os livros por si só não expandem nossos horizontes sem o auxílio da viagem e do encontro com pessoas novas. Já a experiência de estudar em Edimburgo foi muito rica para mim, ela foi uma janela importante para a vida e para os movimentos literários na Grã-Bretanha. Quanto à minha carreira de professora universitária no Omã, isso fez de mim uma ponte permanente com as novas gerações no país e me fez descobrir como elas pensam e veem a vida. Ambas as experiências se completam. No romance Naranja, que sairá em inglês em 2021, o leitor encontrará estes dois mundos juntos: um vilarejo no Omã e uma cidade na Europa.

“Para que nos alcancem todas as dádivas da literatura, é necessário que ela nos seja prazerosa.”

• Em Damas da lua há algumas citações à importância dos livros e ao prazer que podem proporcionar. Como leitora, o que você busca num livro de ficção?
Comecei a ler literatura ainda pequena. A literatura é sinônimo de fascínio para mim, muitas vezes fui enfeitiçada pela leitura, que também expandiu meus horizontes. Sem dúvida, a boa literatura nos ensina e enriquece nossa experiência humana, ela nos concede uma força única de simpatizar com o outro. Quanto mais cedo deixarmos a literatura entrar em nossas vidas, melhor. Para que nos alcancem todas as dádivas da literatura, é necessário que ela nos seja prazerosa. Sem prazer não aprendemos nada.

• A literatura é uma maneira de lutar contra o esquecimento coletivo?
Sim. Poderia ser.

• Como está sendo sua experiência durante a pandemia de Covid-19? O recolhimento trouxe mais benefícios ou prejuízos ao seu dia a dia?
Cancelei todas as viagens, conferências e noites de autógrafos em todas as partes do mundo que poderia ir. Senti que perdi a liberdade, mas me senti pior pelos que perderam muito mais que isso: pessoas queridas, emprego e saúde. O lado positivo foi que ganhei muito tempo para trabalhar no meu novo romance, já que quase não saio de casa.

• O que mais a assusta no mundo atual?
Misturar o que nos é essencial como seres humanos e o que é secundário e passageiro.

* Colaborou Rogério Pereira.

>>> Leia resenha de Damas da lua.

Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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