As descobertas de Omã

"Damas da lua", de Jokha Alharthi, perpassa pelo menos três gerações e mostra as mudanças culturais em curso no país árabe
Jokha Alharthi, autora de “Damas da lua”
23/11/2020

Mayya estava sentava à máquina de costura e, enquanto trabalhava, pensava em um menino do qual gostava. “Muitas vezes tinha a impressão de que morreria de tanto desejar vê-lo”, nos conta o narrador. A cena poderia se passar basicamente em qualquer lugar, e é fácil ter simpatia pela moça apaixonada. Mas logo a narrativa muda de tom — a mãe de Mayya aparece e lhe diz que o filho do comerciante pediu sua mão em casamento (claro que o filho do comerciante não é o moço que ocupava seus pensamentos). A situação toda é vista imediatamente pela moça como um castigo de Deus por ter se interessado por um rapaz.

É assim que começa Damas da lua, de Jokha Alharthi: um casamento arranjado, ao qual a noiva mal tem o direito de consentimento, e o medo de um castigo de Deus depois de um mero pensamento.

Trata-se de uma obra sobre muitas coisas. Ao adotar diferentes perspectivas, mostra como, mesmo em uma sociedade tradicional como a do Omã, os pensamentos divergem e as pessoas veem o mundo de maneiras diferentes. Mas antes de entrar mais no livro, um pequeno parênteses.

Omã
1. A verdade é que você não deve saber muito sobre o Omã. Não se preocupe, eu também não sabia. (Ou melhor: antes eu não sabia praticamente nada, agora eu sei alguma coisa.) Seguem alguns pontos importantes. (Ou melhor: estou te ajudando e dei uma resumida rápida na Wikipédia para você.)

2. O Omã está na Península Arábica — olhando o mapa, fica “entre” a África e o Oriente Médio.

3. No país, a escravidão durou até a década de 1970. Isso, do século 20.

4. Eles foram uma potência econômica no século 17. Mas então veio o período imperialista e eles ficaram sob influência do Reino Unido.

5. Atualmente são uma monarquia absoluta, e tiveram o mesmo rei entre 1970 e 2020: O Sultão Qaboos bin Said Al Said foi o sétimo monarca com o reinado mais longo do mundo. Seu primo assumiu o trono com sua morte recente.

6. Apesar de ter reservas de petróleo, o país tem diversificado sua economia. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento considera o Omã como uma das nações que mais se desenvolveram nos últimos 40 anos.

Perspectivas múltiplas
Como deu para perceber, a sociedade do país tem se transformado nos últimos 40 anos. Este é, para mim, o principal foco da narrativa de Alharthi — mostrar como uma sociedade fechada e tradicional está se abrindo, como comportamentos antes impensáveis já começam a fazer parte da vida de uma geração.

Para conseguir narrar essa transformação, a autora cria uma saga familiar que passa por três gerações (sem contar os flashbacks e relatos da vida de antepassados, o que aumentaria um pouco mais esse número). Além disso, os capítulos são narrados por perspectivas diferentes, o que nos mostra a abrangência de pensamentos e experiências contidas em uma mesma família.

Um exemplo: Mayya, que era apenas uma adolescente no começo da narrativa, se casa com o filho do comerciante. Juntos, têm três filhos. O casamento arranjado não lhe traz felicidade e ela é bastante indiferente com o marido. Ainda assim, sente que isso é o que lhe cabe nessa sociedade, e não considera qualquer tipo de mudança.

Por outro lado, temos London, primeira filha de Mayya (com um nome que já anuncia uma mudança de valores). Pois London se casa por amor enquanto ainda é aluna universitária (duas grandes mudanças). Mas não só: London também se separa quando se depara com o fracasso da sua relação com o marido (que tem valores mais tradicionais do que ela esperava). Há uma mudança enorme no espaço de uma geração, com várias posturas que seriam impensáveis para sua mãe.

Entre todas as perspectivas que passam pelo livro estão a de Mayya, de suas irmãs Marwán e Assmá, e de outras mulheres do pequeno vilarejo onde vivem e onde se passa a maior parte da história, mostrando o quão entrelaçada é a vida dessas pessoas. Elas falam umas das outras; as sogras se metem no relacionamento de seus filhos e suas noras, e todos se sentem aptos a criticar a vida dos outros.

Apenas uma das personagens é explorada em narrativa de primeira pessoa: o filho do comerciante, Abdallah. Esses trechos se dividem em dois tempos diferentes, sua infância e sua vida adulta, centrada em seus devaneios enquanto viaja de avião. Pensa sobre toda sua família, desde seu pai e sua amante, à separação do núcleo familiar. Dentro do avião, aquele não-lugar entre dois pontos de uma vida, Abdallah remói e reflete sobre sua vida, suas escolhas e a sociedade como um todo.

O livro tem grandes méritos — nos transportar e nos apresentar a uma sociedade que provavelmente é estranha para a maioria de nós. E mostra toda a complexidade dessa coletividade em mudança, as diferentes perspectivas e as contradições internas que marcam as relações familiares.

>>> Leia a entrevista de Jokha Alharthi.

Damas da lua
Jokha Alharthi
Trad.: Safa Jubran
Moinhos
240 págs.
Jokha Alharthi
Nasceu no Omã, em 1978. Escritora e acadêmica, é doutora em Literatura Árabe Clássica pela Universidade de Edimburgo e professora no departamento de árabe da Universidade de Qaboos. Na sua carreira de escritora já publicou três livros de contos, três livros infantis e três romances. Damas da lua é o primeiro livro da autora a ser traduzido no Brasil.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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