Sentado à sua mesa de trabalho, Liev Tolstói faz questão de ter a atenta companhia da jovem esposa Sônia como primeira leitora e revisora de seus escritos. Aos 35 anos, e pai recente de um menino, o ex-combatente russo conclui ser o momento de se dedicar a um projeto de longo prazo. O tema não poderia ser outro que sua antiga obsessão pela Revolta Dezembrista de 1825, quando um grupo de oficiais e nobres revolucionários, influenciados pelo Iluminismo francês, desencadearam um movimento contra o tzar Nicolau I. Mas logo se dá conta de que, para chegar aos dezembristas, é necessário ir ao ano de 1812, quando a invasão napoleônica foi rechaçada em solo russo. Ou melhor, precisa retroceder ainda mais, a 1805, na derrota das forças austro-russas para as tropas de Napoleão Bonaparte na chamada batalha de Austerlitz.
Tolstói, assim, recorre a uma soma de pessoas, entre parentes e conhecidos, incluindo proeminentes historiadores, para cooperar com seu trabalho de pesquisa. Ao tomar ciência da investigação do marido, Sônia comenta que seu pai pode ser uma proveitosa fonte de informação, pois teve a infância marcada pelos conflitos de 1812. Andrei Berhs faz um relato detalhado de sua vivência, além de narrar diversas histórias de uma Moscou sacudida pela guerra da Rússia contra as tropas napoleônicas. O sogro também lhe providencia recortes de jornais e correspondências da época, montando um acervo ainda abastecido com os registros históricos que o escritor obtinha em viagens a bibliotecas e prédios governamentais. Desse modo, passados seis anos (período em que aumentou a família com mais quatro filhos), Tolstói finaliza Guerra e paz, uma das mais extensas e desafiadoras obras de literatura já escritas. O épico, composto em seis volumes que superam mil páginas, apresenta um amplo painel da sociedade russa do século 19, construído a partir de personagens reais e fictícios que experienciam o sangrento confronto entre o tzar Alexandre I e o exército de Napoleão.
Publicado originalmente de forma seriada numa revista, o monumento literário alcançou enorme popularidade na mesma medida que gerou controvérsia. Ainda que ninguém duvidasse que Tolstói produzira algo extraordinário, leitores mais velhos sentiram-se afrontados, acusando o autor de ter distorcido a história do país. Como observa a biógrafa Rosamund Bartlett:
Em Guerra e paz, Tolstói tinha manipulado eventos e pessoas para que se adequassem à visão particular da história que ele desejava propor.
Resgate dos fatos
Guerra – I, de Beatriz Bracher, se utiliza da mesma metodologia de pesquisa, contudo se diferencia do colosso russo ao se comprometer rigorosamente com o resgate dos fatos. É claro que se pode abrir um parêntese filosófico de que todo relato, em seu ato de retratar, contamina a verdade, mas, em seu primeiro volume da trilogia sobre a Guerra do Paraguai, Bracher conserva os registros históricos e os testemunhos dos personagens de qualquer incidência ficcional. Se há um protagonista, é a guerra, uma entidade que verbaliza os acontecimentos por meio das vozes de quem esteve no campo de batalha.
A autora parece se colocar num vácuo do tempo, onde escuta e coleta esses fragmentos para depois encadeá-los e enredá-los na montagem de um fascinante puzzle, no qual revive o passado no presente do indicativo. Tudo é muito vivo e vibrante, estabelecendo uma cadeia de transmissão oral da experiência dos combatentes, ressoada de trechos de livros, diários, jornais, relatórios oficiais, mapas e cartas, de modo a proceder a assimilação do vivido de um dos episódios mais marcantes e transformadores para o panorama político-social da América do Sul.
Essa primeira parte diz respeito à ofensiva paraguaia e à reação aliada, ocorridas entre novembro de 1864 e março de 1866, introduções de um conflito que durou cinco anos. E aqui talvez caiba uma breve contextualização didática: tomado pelo afã de expandir o território paraguaio e obter o direito de navegação e comercialização na bacia do Prata, o ditador Solano López ordena que seu exército ataque as fronteiras de Brasil, Uruguai e Argentina, que reagem formando a chamada Tríplice Aliança. Entre ofensivas e contraofensivas, estima-se que o conflito resultou em aproximadamente 500 mil mortos, dizimando 60% da população do Paraguai. No Brasil, a guerra acelerou a abolição dos escravos, a queda da monarquia e a bancarrota dos cofres públicos.
Feito esse esclarecimento enciclopédico, o lance de sagacidade do romance de Bracher é humanizar o que as gerações futuras codificaram em verbete. As intervenções da autora são mínimas, apenas em notas para ambientar o leitor. De maneira cronológica, os dias se sucedem por meio de pontos de vistas distintos que se proliferam, arregimentando situações e eventos que se complementam na escala do íntimo e do mundano. Naturalmente que, ao contrário de uma narrativa ficcionalizada, os vãos são mais nítidos, mas estão nesses hiatos os ecos, o desespero da finitude que parece prevalecer em cada palavra.
O primeiro registro, feito por Augusto Leverger, presidente da Província de Mato Grosso, dá conta do sequestro de um navio brasileiro e da prisão de todos os tripulantes em 12 de novembro de 1864. Escreve:
Há quase um ano, o Governo do Paraguay, com manifesta violação dos direitos das gentes, apoderou-se do Marquês de Olinda (nome da navegação) que, sem desconfiança e depois de passar na cidade de Assunção, onde se demoraria como era de costume, vinha seguindo para o porto de Corumbá com cargas de subido valor pertencentes ao Estado e a particularidades.
Nota-se, em mais uma decisão acertada de não deturpar a integridade dos testemunhos, a manutenção da grafia da época. Logo em seguida, surge um personagem fundamental para esses movimentos iniciais da guerra. O tenente-coronel Jorge Maia será voz imperativa nos relatos que traçam o percurso das tropas paraguaias em duas frentes, atacando o Forte Coimbra, Albuquerque, Corumbá, as colônias de Dourados e Miranda, Nioaque, Vila de Miranda e Coxim. Outro militar de fala relevante é o segundo-tenente da Comissão de Engenheiros, Alfredo Taunay. De seus depoimentos, consta um olhar para os efeitos individuais do conflito, mostrando o impacto em microexistências dentro do sorvedouro bélico, a exemplo do esforço do Frei Mariano na luta contra o massacre de aldeias indígenas.
O piedoso frade sentia-se fraco e acabrunhado ante tanta desgraça, e as lágrimas lhe corriam, noite e dia, ao lembrar-se de quanto os seus índios — a quem chama de filhos — estariam sofrendo, esparsos pelos montes ou, sem dúvida, caídos em poder do inimigo.
Crueldades inarráveis
A citação às mulheres descortina uma parte constituída da sociedade relegada ao servilismo ou condenada a sofrimentos físicos e psicológicos. Bem longe das personagens centrais de romances como Paraizo-Paraguay, de Marcelo Labes, e A guerra invisível, de Ana Maria Lopes, a realidade enumera vítimas de crueldades inarráveis (“As infelizes mulheres que não puderam embarcar e não puderam resistir à fome nos matos para onde haviam fugido, e voltaram para a vila, sofreram horrores que a pena se recusa a escrever e a moral manda calar”) e da dor da incerteza de filhos e maridos despachados para os fronts de batalha (“pobre mãe! em tão pouco tempo que junto a ela estive contou-me tantas cousas! e me pediu que não deixasse de voltar; mas eu entendi que não devia tal fazer para não lhe ferir mais o coração com minha despedida”). Em que consta a mobilização nacional, o segmento referente ao alistamento mergulha no fundo emocional de combatentes temerosos, desqualificados em sua maioria, cientes de que lhes esperavam mais a morte que a sobrevivência. Homens comuns, de várias idades, profissões, que se voluntariavam ou eram literalmente caçados feito bichos para o recrutamento forçado. No Rio de Janeiro, pelas anotações do tenente José Campello, o embarque dos vapores foi recepcionado pelo próprio imperador D. Pedro II.
Muitos, porém, sequer chegaram a seus destinos, abatidos não por tiros de canhão ou combates corpo a corpo, mas por severas moléstias que se propagavam a fio e expunham a precariedade sanitária. O major Cristiano Pletz descreve a epidemia de varíola que contaminou os tripulantes durante a viagem até o Uruguai, deixando “os hospitais de Montevidéu repletos de variolosos” e o cemitério da cidade rasgado em covas para “numerosos patriotas brasileiros”. Diante da falta de medicamentos, o segundo-cirurgião João Severiano da Fonseca chega ao extremo de se embrenhar pela mata e colher plantas para tratar os doentes e feridos. O frio passa a ser outro agente de desgraça para os recrutas não habituados com os rigores do inverno nas regiões platinas. O tenente-coronel Albuquerque Bello, lotado na cidade uruguaia de Paissandu, relata, com apreensão, as mortes sucessivas causadas pelas temperaturas negativas.
O tempo vai mau, e o frio aumentou-se; as praças entram em escala para o hospital, já tendo morrido algumas. (…) Tenho perdido muitas praças no hospital.
Por outro lado, a quilômetros de distância, Alfredo Taunay se descola do conflito para dirigir a atenção aos dotes (ou a falta deles) das mulheres paulistas.
Noto alguns rostos bonitos, de belas cores e ótimas peles, mas infelizmente contrasta com essas prendas o desleixo pelos dentes.
E aqui os fragmentos se alternam numa dinâmica que não reconhece fronteiras, avançando por todos territórios possíveis da guerra, de uma cidade a outra, na substituição constante de quem conta, de modo a plasmar um mosaico movediço que atesta a energia de uma obra de múltiplas faces.
Curiosidades cômicas
Há espaço, inclusive, para curiosidades cômicas em tempos sombrios. Em 21 de novembro de 1866, o Diário de S. Paulo publicou:
Aos nossos assinantes. Pedimos desculpa aos senhores cujas mãos houvesse falta da entrega do nosso jornal. Os nossos entregadores foram também presos, e quem os substitui não tem ainda prática alguma.
Albuquerque Bello narra, com troça, a manhã em que descobriu ter dormido com uma jararaca, enquanto Taunay, num acampamento em Coxim, redige um comprometido tratado sobre seu passatempo favorito: a observação da rotina do inseto formica leo. Mas a vazão do tempo não custa a pontificar que se trata do mais sangrento conflito armado ocorrido na América do Sul. O ataque paraguaio às cidades gaúchas de Botuí, São Borja, Uruguaiana e Jataí mostra um desequilíbrio de forças que resulta em todo tipo de barbaridade contra mulheres, crianças, velhos e doentes. A ânsia por sangue dos invasores era tão desmedida, que até os animais domésticos eram degolados. Aqueles que conseguiam fugir mais à frente sofriam de fome, frio e nudez. No depoimento do médico José Pereira Guimarães, o atendimento a um militar traz descrições dignas de um conto de horror.
O resultado foi que a ferida da amputação, que não podia de modo algum gangrenar, por ser de um vermelho vivo, ficou completamente negra! À noite sobreveio o delírio, e uma forte pleuropneumonia, que, apesar dos meus cuidados, e dos do dr. Antunes, fizeram o doente sucumbir no dia 14 às 8h da noite.
A parte final referencia o alinhamento das tropas brasileiras acampadas no Uruguai rumo ao território argentino, onde congregam forças às margens do rio Paraná para iniciar a invasão do território paraguaio. Os testemunhos passam a combinar registros de fatos correntes a anotações de caráter fugidio, incluindo desenhos do segundo-tenente Taunay sobre a fauna e a flora. Há uma beleza comovente em muitas cartas enviadas para esposas, mães e filhos, explicitando um rasgo anímico provocado pela saudade. A guerra se aproxima apenas do segundo ano, mas, para muitos, como escreve o tenente Miguel Freixo, parecem estar presos num mesmo dia, uma eterna “quarta-feira de trevas”. Em 31 de março de 1866, Albuquerque Bello relata ter passado uma noite de muitos sonhos, com a mulher, com o ditador Solano López pondo fim à guerra, mas a manhã chega e logo arruma as malas para marchar, para se lançar num futuro ainda desconhecido para ele, para o leitor.
Rosamund Bartlett, em sua definitiva biografia sobre Tolstói, conta que o escritor russo mudou inúmeras vezes as concepções preliminares de Guerra e paz, pois, nas palavras do próprio autor, “tinha vergonha de escrever sobre nossa vitória na luta contra a França napoleônica sem escrever sobre nossos fracassos e nossas desgraças”. Em Guerra – I, Beatriz Bracher faz o caminho inverso, expondo as consequências brutais das ofensivas inimigas em solo brasileiro para dar continuidade à história nos próximos volumes que serão publicados no final de 2025 e início de 2026. Resta então esperar para saber quem será o vencedor, se, de fato, haverá algum.