Viciosos amores

Contos de Guy de Maupassant extraem material literário de motivos aparentemente banais
Guy de Maupassant, autor de “Uma aventura parisiense e outros contos de amor”
30/01/2015

A morte de Guy de Maupassant em 1893, cerca de um mês antes de seu aniversário de 43 anos, ensejou para a história da literatura a construção de uma efígie singular — tanto pela notória excentricidade de seu comportamento quanto (o que inevitavelmente não deixaria de ser ressaltado por muitos dos que se debruçaram sobre a sua obra) pelo modo como a estranheza de seus hábitos e sua peculiar trajetória biográfica parecem refletir aspectos particulares de sua produção literária.

Nascido em 5 de agosto de 1850, o autor de Uma aventura parisiense tinha por pais Gustave de Maupassant, homem cuja volubilidade não o fazia muito diferente de muitos de seus contemporâneos, e Laure Le Poittevin, mulher singular em diversos aspectos — tanto por sua personalidade, independente o bastante para separar-se legalmente do marido em meados do século 19, quanto por sua cultura literária: para além de ter um apreço especial por Shakespeare e pelos clássicos, era irmã de Alfred Le Poittevin, amigo de Gustave Flaubert, algo relevante para a carreira do filho e futuro escritor. No mais, o destino entre as letras logo se transformaria em vaticínio, tanto pelo pendor a arrancar da vida a literatura — como o estudante que versejara sobre o ambiente claustrofóbico que encontrou no seminário de Yvetot, como o militar que levaria para os contos a guerra franco-prussiana — quanto por seus peculiares contatos com já reconhecidos escritores contemporâneos.

Um dos episódios mais notáveis seria o encontro de Maupassant com Algernon Charles Swinburne, poeta cujo excêntrico aspecto não deixaria de fasciná-lo: chegaria a escrever um artigo, publicado em 1882, em que relembraria suas impressões diante daquele homem cujo corpo, segundo lhe parecera, não apresentava torso ou ombros, e que parecia sempre trêmulo por espasmos nervosos. Por ocasião do incidente em Étretat que se tornaria lendário — enquanto nadava, o poeta inglês fora arrastado pelas ondas, precisando da ajuda de pescadores para salvar-se —, Swinburne encontraria, ao lado de seu amigo George Powell, o jovem Maupassant, que ajudaria a resgatá-lo e jamais esqueceria o acontecimento. Já o encontro com Flaubert ocorreria graças à mediação materna, e forneceria ao então aspirante a escritor um valioso mentor literário. No autor de Salammbô, Maupassant encontraria não apenas o leitor crítico de seus primeiros escritos, mas alguém capaz de favorecer contatos com figuras como Alphonse Daudet, Joris-Karl Huysmans e Émile Zola, que o acompanhariam em seu processo de formação.

A aproximação com a estética naturalista se enfraqueceria conforme Maupassant desenvolvesse a sua obra na direção que o tornaria mais conhecido: a exploração cada vez mais intensa de temas fantásticos e sobrenaturais. Aí está, a propósito, o que ensejaria a já referida aproximação entre vida e obra: não poucos enxergariam a convergência entre um homem cada vez mais solitário, mesmo misantropo, sob os efeitos da sífilis à qual sucumbiria, e o autor cujas obras assumiam um aspecto macabro e alucinatório. Todavia, nada é assim tão simples; já no prefácio a Pierre et Jean, afinal, encontramos a intenção autoral de superar a esfera dos acontecimentos triviais e desvendar um sentido profundo subjacente ao cotidiano.

Caprichos e obsessões
Volume publicado pela Companhia das Letras no selo Penguin, como parte da Coleção Grandes Amores, Uma aventura parisiense e outros contos de amor traz uma seleção de contos de Maupassant, em tradução do escritor Amilcar Bettega. Não obstante, qualquer um que percorrer as páginas do livro em busca de grandiosas narrativas amorosas ou de episódios como aqueles que ao senso comum apraz alcunhar “românticos” terá certamente uma decepção. Não é esse, afinal, o universo de Guy de Maupassant, autor cujo estro melhor se presta ao manejo de assuntos mais comezinhos; e precisamente em sua capacidade de extrair material literário de motivos aparentemente banais está o que viria a consagrá-lo como um dos grandes autores do Oitocentos.

As mulheres e os homens cujas vidas se cruzam nas narrativas de Maupassant são tipicamente arrastados por seus próprios caprichos e obsessões, e é desses fortuitos encontros que emergem os episódios amorosos de que tratam seus contos. Uma aventura parisiense trata de uma mulher provinciana que, em meio a uma vida dedicada ao marido e aos filhos, resolve um dia satisfazer o desejo de conhecer Paris; uma vez na metrópole, não perderá a oportunidade de utilizar o menor pretexto para passar uma noite com Jean Varin, celebridade do mundo literário, entregando-se ao “vício” — apenas para voltar à casa, recolher-se ao seu quarto e irromper em soluços. Em A cabeleira, lemos sobre um homem que, percorrendo antiquários, compra um móvel que oculta uma cabeleira de mulher em uma gaveta secreta; encontrando-a, descobre-se tomado por uma paixão obsessiva — que o levará a tornar-se amante de uma mulher morta e, convertido em um “louco obsceno”, a ser encarcerado. Um ardil, conto que abre o volume, começa descrevendo o diálogo entre um velho médico e uma jovem paciente, para quem é inaceitável que uma mulher traia o seu marido — o que serve de pretexto para que o médico conte o episódio de Berthe Lelièvre, que certa vez o evocara para ajudá-la a lidar com o corpo do amante que falecera em seu leito, enquanto o marido estava no grêmio; quando a moça pergunta ao doutor porque lhe contara a história, ele lhe garante que ela algum dia precisaria de seus préstimos.

Como se poderia esperar, as mulheres figuradas por Maupassant se revelam especialmente volúveis e propensas ao vício; eis algo que as vozes de personagens masculinos, quando não a voz autoral, sempre estão prontas a ressaltar. Este é o questionamento que abre Uma aventura parisiense: “Existe sentimento mais agudo do que a curiosidade na mulher?”. O texto prossegue:

Falo de mulheres verdadeiramente mulheres, dotadas desse espírito de fundo triplo que à superfície parece racional e frio, mas cujos três compartimentos secretos são cheios: um de inquietude feminina sempre agitada; outro de uma astúcia travestida de boa-fé, dessa astúcia dos devotos, sofística e perigosa; e o último, enfim, de canalhice encantadora, de delicada falcatrua, de deliciosa perfídia, de todos esses perversos atributos que levam ao suicídio os amantes imbecilmente crédulos, mas que exultam os outros.

Mulheres “são ao mesmo tempo sinceras e falsas, porque está em sua natureza ser os dois ao extremo e não ser nenhum nem outro”, diz um dos personagens de O modelo. Muitos decerto considerarão irrelevante esse reparo, assegurando que Maupassant se compraz em explorar igualmente os mais sórdidos aspectos de homens e mulheres — como se, no que tange às últimas, tudo isso não envolvesse topoi misóginos cuja dimensão política era constitutiva da sociedade patriarcal na qual viveu o escritor; e que permanecem em estereótipos que ainda nos são familiares.

Uma aventura parisiense e outros contos de amor
Guy de Maupassant
Trad.: Amilcar Bettega
Penguin / Companhia das Letras
128 págs.
Guy de Maupassant
Nasceu na França em 1850. Na década de 1870, conviveu em Paris com Gustave Flaubert, Émile Zola e com os grandes escritores realistas e naturalistas da época. Notabilizou-se como autor de romances e de mais de 300 narrativas curtas, sendo considerado um mestre desse gênero. Morreu em um manicômio, aos 42 anos, vitimado pela sífilis.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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