O livro de estreia, para qualquer poeta, é sempre uma aposta. Com alguma imprudência, arrisca-se o lance ainda incógnito, cujo verdadeiro saldo só se revelará com o tempo. Se, em muitos casos, essa primeira jogada depois é renegada como um gesto imaturo, em tantos outros, o retorno ao livro inaugural pode se mostrar como uma surpreendente descoberta daquilo que já estava ali, em germe, aguardando o momento adequado de eclodir.
Com Geografia íntima do deserto e outras paisagens reunidas, Micheliny Verunschk parece trilhar a segunda via. Desde o título, o novo volume enfatiza a centralidade do livro de estreia, Geografia íntima do deserto (2003), como se toda a obra estivesse potencialmente contida naquele primeiro espaço e se expandisse, nas palavras da própria autora, numa “trajetória circular em um território espelhado”.
Organizados de modo constelar, sem seguir a ordem cronológica, os livros agora reunidos mantêm algo de sua autonomia formal e temática, ao mesmo tempo que se irmanam em novas subseções, o que estabelece afinidades específicas dentro do conjunto. Por outro lado, vale destacar a estratégia de Verunschk de incluir pelo menos um poema dos livros mais recentes ainda em circulação, Maravilhas banais (2017) e O movimento dos pássaros (2020), assinalando a coesão da obra para além das paisagens incorporadas no presente volume.
Em retrospectiva, é interessante observar que os poemas de 2003 possuem algumas das características mais valorizadas no debate poético do Brasil na virada do século: a construção em versos concisos, cujo corte realça células de sentido dentro da estrutura sintática, e a predominância da fanopeia, com uma imaginação visual voltada à exploração minuciosa dos objetos. Tais características aparecem, por exemplo, num poema como Domingo:
Os cavalinhos
do carrossel
giram
ruas apressadas,
multidão ereta.
Os doces cavalinhos
do carrossel giram,
têm olhos assimétricos
e giram.
Falos de madeira.
A duplicação da oração principal (“Os cavalinhos do carrossel giram”) reproduz textualmente o funcionamento do próprio brinquedo, combinando a repetição do mesmo trajeto, na organização sintática, com as flutuações de altura de cada um dos cavalinhos, na disposição dos versos. Diante dessa combinação, os sintagmas nominais parecem também se dinamizar, abrindo duas perspectivas distintas: o ponto de vista dos cavalinhos, que vislumbram as “ruas apressadas” e a “multidão ereta” em volta do carrossel; ou o ponto de vista de um observador externo, que imagina os cavalinhos como essa “multidão ereta” agitando-se sem sair do circuito.
De certo modo, os “olhos assimétricos” dos cavalinhos estão incorporados no movimento do poema, que gira indistintamente entre os dois pontos de vista até a frase nominal do último verso. E se, pela lógica da contiguidade, os “falos de madeira” seriam os próprios cavalinhos, a força imagética do restante do poema permite uma visão mais ambígua, fazendo reverberar, com nova carga de erotismo, a tal “multidão ereta”.
Reencantar o mundo
O erotismo, aliás, é um elemento recorrente na poética de Verunschk, trazendo ânimo a todos os seres e fenômenos: o violoncelo como uma “louca dama, nua e fera/ que deita e luta/ com o seu músico” (Duo), o vinho que é “pérola na concha da língua” (Rubaiat), a tarde que “emerge entre seio e lábio” (Variação e rito sobre uma tourada espanhola). Depreende-se disso um inegável desejo de reencantar o mundo, como se fosse possível se aproximar mais das coisas a partir do poder sugestivo das palavras. Isso ocorre, por exemplo, num dos segmentos de A cozinha de Buda (2017):
adoro como a palavra
mushroom
desmancha na boca.
na panela
os tomates
se entregam
ao azeite quente
com elegância
e dignidade
e percebo
a respiração
da cozinha
quente
como o hálito
de um
dragão.
na xícara
genmaicha
e o corpo
respirando junto.
A sonoridade da palavra em inglês (“MUSHroom”) espraia-se no verbo em português (“desMANCHa”), ecoando ainda no termo em japonês (“genMAICHa”), o que compõe uma saborosa integração plurilinguística. Tudo se dá num cenário cotidiano, animado pela comparação que transforma os vapores da “cozinha quente” no “hálito de um dragão”. E assim como os tomates, a própria voz do poema parece se entregar com “elegância e dignidade” a esse instante de singela epifania no qual corpo, mundo e linguagem encontram-se num improvável amálgama.
Em outros momentos do livro, essa articulação entre palavra e paladar adquire feições mais contrastivas, como nos poemas de B de bruxa (2014), nos quais a voz feminina destrincha e devora as figuras masculinas (“ah esse homem dá uma sopa./ irmã, primeiro tira-lhe a roupa”); de Vestidos vazios (2024), nos quais tudo se dissolve após o fim do relacionamento amoroso (“nesse pedaço/ de tua memória/ em que restam agora apenas/ as migalhas do pão que repartimos”); ou ainda de O observador e o nada (2003), nos quais o próprio eu é consumido pelos outros:
Penso.
O que será que a criança nos braços da mãe vê
[quando olha para mim?
O que há em mim que atrai os olhos de espelhos divertidos do inseto que me observa? Estertores, Avatar, Escurial, Sibilina, Leviatã, Hemorrágico, Valeriana.
Minha vida atravessada por palavras cujo significado não conheço, palavras como um verme branco cortando a polpa macia de frutas também brancas. (…).
No prefácio da primeira edição de Geografia íntima do deserto, João Alexandre Barbosa assinalou a influência de João Cabral de Melo Neto no livro de estreia de Micheliny Verunschk, indicando a retomada do deserto, “essa coisa escrita”, como imagem do próprio espaço da criação poética. No entanto, embora o mesmo crítico já destacasse a inserção da “intimidade, com todas as suas modulações hesitantes” como uma diferença substancial entre os poetas, seria possível explorar um pouco mais a relação de Verunschk com a poética cabralina.
Se o senso construtivo do autor de Psicologia da composição está presente, por exemplo, no “gato geométrico” feito de “palavra” do poema G, talvez valesse a pena assinalar a presença ainda maior de outra faceta de João Cabral: aquela famosa devoração do amor nas falas de Joaquim em Os três mal-amados, metabolizada por Verunschk em imagens onívoras como a “negra borboleta”, cuja mancha se alastra e devora a “parede branca”.
Assim, essa “geografia íntima do deserto” é, em si mesma, construção e devoração, internalizada na experiência subjetiva daquela que, tendo corpo, é afetada também pela linguagem:
Teu nome é meu deserto
e posso senti-lo
incrustrado em meu próprio território.
Como uma pérola
ou gesto no vazio.
Como o amargo azul
e tudo quanto há de ilusório.
Teu nome é meu deserto e ele é vasto.
Seus dentes tão agudos
seus sóis raivosos
e suas letras
(setas de ouro e prata
nos meus lábios)
são o meu terço de mistérios dolorosos.