Todas as máscaras num único rosto

Poemas de "Asma", de Adelaide Ivánova, explicitam um projeto decolonial contra opressões de toda espécie
Adelaide Ivánova, autora de “Asma” Foto: Lukas Lademann
01/04/2025

São muitas as personas, ou entidades, que Adelaide Ivánova convoca para comporem a voz de Asma. E todas as máscaras encarnam a narradora Vashti Setebestas, a primeira esposa de Assuero (Xerxes I), rei da Pérsia. Vashti, ou Vasti, é a personagem principal da novela judaica, escrita no século 4, o Livro de Ester. A narrativa, que se encontra no Antigo testamento da Bíblia, relata que Xerxes I teria ordenado que Vashti se exibisse com sua coroa real, e supostamente nua, diante de seus amigos em uma grande celebração no palácio de Susã. Ela se recusa, é destituída do cargo de rainha e banida para sempre do reino. Desde esse tempo, tendo como ponto de partida uma escritura sagrada, a autora de Asma inicia sua peregrinação e sua iconoclastia, passando por tragédias gregas, recortes de jornais do início do século 20 que noticiam e comentam a vinda de nordestinos para o que se entende o “centro” do país, relatos de viajantes, dicionários medicinais do século 19 e revoltas, guerras e revoluções contra as opressões impostas pela colonização.

A linguagem é escatológica, cheia de blasfêmia e ironia. Para Donna Haraway, “a blasfêmia nos protege da maioria moral interna, ao mesmo tempo que insiste na necessidade da comunidade” e a ironia revela contradições que não se resolvem em totalidades, mas sim mantendo juntas as coisas incompatíveis, que são necessárias e verdadeiras. É por meio desses recursos poéticos, e com a seriedade de aplicar à sua poesia muitos estudos e pesquisas sobre a colonização dos corpos e das culturas, sobretudo a nordestina, que a autora empreende a jornada de degredo com Vashti, Las Ursas e outras máscaras contra as unidades pregadas em nome da dominação e as justificativas para o patriarcado, o colonialismo, o humanismo, o positivismo, o cientificismo e outros embustes que enformam o cânone ocidental.

Degredo também era destino
das condenadas por vagabundagem
a vasta população de mendigas
e desempregadas
das artesãs afundadas em dívidas
das dissidentes políticas
das maconheiras
das bichas sapatãs e outras degeneradas
além é claro
das abortistas
e das desbocadas

Está implícito (ou mesmo explícito) um projeto decolonial nos poemas de Asma. Entenda-se aqui a decolonialidade como a compreensão que ainda impera — embora alguns pensem que, historicamente, já passamos pelo fim do colonialismo — uma constituição geopolítica e geo-histórica nos moldes ocidentais europeus, baseada na divisão do trabalho em centros e periferias e a hierarquização étnico-racial das populações. Na trilogia formada pela modernidade ocidental eurocêntrica, o capitalismo mundial e o colonialismo, segundo Henrique Dussel, a América seria então um produto que serve à construção do sistema-mundo produzido pela Europa (entenda-se todos os grandes impérios do ocidente) como sua periferia desde 1942, com a ascensão mundial do capitalismo e do colonialismo.

Seis partes
Asma está dividido em seis partes. No Livro 1, os poemas são apresentados como o roteiro de um inquérito, e constam do júri da inquisição alguns personagens das tragédias e dos mitos gregos, como Menelau, Atena, o Coro e o Corifeu. Mas há também personagens contemporâneos, como Amy Winehouse e o advogado de André Aranha, que foi protagonista de uma repugnante história recente de estupro e impunidade em Santa Catarina. A ré Vashti Setebestas responde às perquirições, não sem ironia e humor, questionando as leis vigentes e denunciando como, por meio da palavra escrita, em depreciação literária e cultural, todos os humanistas, reformadores protestantes e contrarreformadores católicos contribuíram para o vilipêndio e o projeto de retirar das “acusadas” sua autonomia e poder social. Em muitos dos poemas, a ré repete em versos a pergunta: “É por isso, senhores,/ que eu estou aqui?”.

O Livro 2 traz não por acaso as iniciais da Ku Klux Klan no título. Os poemas dessa segunda parte fazem alusões a Frank O’hara, Ferreira Gullar e Graciliano Ramos, paródias de cantigas, valsinhas e até um rap escrito dentro de uma prisão. As vozes do cárcere aludem a um livro que fala do massacre dos índios Sioux, da América do Norte e demais povos do México, América Central e América do Sul, que resultou no extermínio de 95% da população total dos povos originários depois da passagem de Colombo. A denúncia da encarcerada é contra o olhar binário sobre a raça, que impede a população branca de se associar à ancestralidade indígena, além de todo o resto de um imaginário social elaborado pelas nomenclaturas raciais ou laborais da colonização.

A peregrinação de Vashti continua no Livro 3, com sua história sendo escrita e narrada, em papiros e cordéis. Nessa parte do livro, a autora apresenta um bestiário. Os poemas são intitulados com nomes de bichos, como vaca, boi, piranha, cabra e La ursa, uma referência à tradicional brincadeira carnavalesca pernambucana na qual as folionas saem nas ruas com máscaras de ursos e pedem dinheiro, “quem não der é pirangueiro”. E dessa vez, Vashti é La ursa, “espalhafatosa bicha à fantasia”, que perambula a vida inteira, “da Pérsia Antiga até o Bairro Novo/ em nome da divisão das riquezas!”.

Epitáfio Pessoa, o Livro 4, narra como a cuidadora e curandeira Vashti trata, as suas e de outras, as doenças e demais moléstias causadas pela pobreza e maus tratos laborais, como asma ocupacional, candidíase, sarna, maculo, transtorno de estresse pós-traumático, medo, solidão e vergonha. Mais uma vez, aparece a pesquisadora Adelaide Ivánova, que traz recortes de jornais do início do século 20 para escancarar não apenas o cientificismo raso que determina os discursos da imprensa contra “a legião de nordestinos incapazes, aleijados e doentes”, como a precariedade dos corpos diante de todo tipo de opressão e abismos sociais. O poema Asma traz uma releitura/paródia da Canção do exílio, de Gonçalves Dias, reivindicando a reforma agrária na terra que tinha macaúbas onde hoje cantam pássaros extintos e ameaçados. Na releitura de um poema de Epitácio Pessoa, 11º presidente do Brasil e primeiro magistrado brasileiro a exercer a jurisdição no Tribunal Permanente de Justiça Internacional de Haia, lemos a denúncia da pedofilia na última estrofe do poema em formato de cruz.

Contra a opressão
O Livro 5 tem como inspiração o Diccionario de medicina popular do Dr. Chernoviz, publicado em 1890. E relembra alguns dos mais importantes eventos de que foram protagonistas os/as nordestinos/as contra o poder da opressão. Esse Livro inicia com o poema em redondilha maior 1501, As moçoró, que reconta a história da primeira exploração oficial do Brasil e da revolta conflagrada pelas mulheres moçoró do Rio Grande do Norte. Finaliza com o poema 1875, Motim das mulheres, sobre o motim em Mossoró liderado por mais de 300 mulheres que protestavam contra a obrigatoriedade do alistamento militar. No site oficial da autora, é possível ter acesso à considerável lista de referências bibliográficas pesquisada para a escrita desses levantes das mulheres do povo, dos povos indígenas e de líderes como Mandu das Abelhas e a “preta velha”, cujo nome foi esquecido e não mereceu “nem maiúsculas, ao que parece”.

Por fim, o Livro 6 — Asma, que dá nome também à publicação desses poemas de Adelaide Ivánova, a travessia de Vashti continua na companhia de retirantes, deportados/as e degredados/as. Recortes da Gazeta do Norte, de Minas Gerais, abrem alguns poemas que poderiam virar uma novela, como a história de Seu Leônidas “um agricultor nordestino aposentado/ endividado no banco mais rico da América Latina/ a versão legalizada de agiotagem”. No poema A jornada das migas, aparece o verso “quanto mais trabalhador entisica, mais proprietário engorda”, retirado de um ditado popular do livro Vento nordeste, do escritor nordestino Permínio Asfora, primeiro brasileiro de origem palestina a publicar um romance, e autor da primeira novela no Brasil com um protagonista palestino. Além de ser uma das principais referências para Asma, segundo declarações da autora, que trabalha num projeto de resgate de memória da obra de Permínio. Essa última parte do livro também apresenta um poema intitulado Asma, quando a poeta responde finalmente por “que [está] constantemente aqui/ e constantemente indo embora/ ao mesmo tempo/ o tempo todo”. A poeta escreve o corpo a partir da ancestralidade das mulheres que, como ela própria, antes de ser abusada por tudo e por todos, morou no corpo de sua mãe e conclui que sua asma é a cruz que carrega sua classe e seu gênero. O último poema expõe a violência, o escárnio, a doença e a hipocrisia que causaram a asma anunciada nas barrigas violadas. E demonstra explicitamente que as histórias esquecidas precisarão sempre ser recontadas e reclamadas.

Asma
Adelaide Ivánova
Nós
200 págs.
Adelaide Ivánova
Nasceu no Recife (PE), em 1982. Trabalha com poesia, fotografia, performance, tradução, formação política e edição. Em 2018, ganhou o Prêmio Rio de Literatura com seu segundo livro de poesia, o martelo. Em janeiro de 2025, Asma venceu o prêmio APCA. Seus poemas e ensaios foram traduzidos para o alemão, o espanhol, o grego, o italiano, entre outros idiomas. Atualmente, vive em Berlim (Alemanha).
Luciana Tiscoski

É jornalista e escritora. Mestre e doutora em Literatura pela UFSC. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca (Florianópolis) participa dos livros Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). É autora da coletânea de contos Área de broca (Nave, 2021)

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