Tensão e equilíbrio

Resenha do livro "Uma leve simetria", de Rafael Ban Jacobsen
Rafael Ban Jacobsen, autor de “Uma leve simetria”
01/02/2010

Só existe transgressão onde há lei. Numa sociedade cada vez mais anômica (e anônima) as transgressões tendem a ocorrer cada vez mais apenas dentro de comunidades relativamente fechadas, com rígidos códigos de conduta, entre as quais se destacam, em suas múltiplas variantes, as religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e Islã. Entre os preceitos dessas religiões, há todo um espaço especial para as regulações do corpo, com uma série de interdições e anátemas. Daí o erotismo, que é a transgressão da sexualidade, quando ela extrapola as funções meramente reprodutivas nas quais os mandamentos tentam amarrá-la. Disse Georges Bataille: “O conhecimento do erotismo e da religião exige uma experiência pessoal, igual e contraditória, da proibição e da transgressão.” E se este erotismo é por acaso um homoerotismo, a transgressão é dupla, sobretudo quando ela se manifesta num contexto de rigor religioso. A abordagem literária desses temas, o do encontro/confronto entre fé e (homo)erotismo, está longe de ser nova, mas não são poucos os perigos que nela se encontram.

O gaúcho Rafael Ban Jacobsen, em seu mais recente romance, Uma leve simetria, não hesita diante desse desafio. O livro trata do amor de dois adolescentes (outra transgressão!): Daniel, o narrador-protagonista, e Pedro, dois membros de uma pequena comunidade judaica numa metrópole não nominada. Daniel é um judeu devoto, freqüentador assíduo das Escrituras e da sinagoga. Pedro, como o seu nome cristão dá a entender, não partilha o mesmo entusiasmo, para desgosto de sua mãe, uma das lideranças da comunidade. Fugindo aos estereótipos, a história dessa paixão é narrada com uma delicadeza, uma finesse hoje rara na literatura brasileira, onde “transgressão” muitas vezes é confundida com escatologia e brutalismo. Ao contrário, Uma leve simetria é escrito numa linguagem sóbria, equilibrada, não raro poética, mas sem cair nesse gênero pantanoso que é a “prosa poética”. Vejamos um exemplo colhido entre tantos:

Consumi as horas restantes até o amanhecer em passos noctâmbulos pelas ruas fatigadas do gueto. […] A claridade surgiu em rajadas imprecisas, amaciando a rigidez do ébano celeste até, por fim, desmanchá-lo em manhã.

Rafael logra escapar às armadilhas desse empreendimento, fugindo de transformá-lo num libelo ou num panfleto. Afinal, não se faz boa literatura com boas intenções, já dizia Gide. Além disso, seus personagens não são tipos, mas pessoas complexas, “redondas”. Por exemplo: ao final do “caso”, vemos Daniel à frente do conselho da sinagoga. Isto é, ele não se torna nem um “convertido”, pois não renega jamais o seu passado e sua condição, nem um “excomungado”, pois continua engajado em sua comunidade, um dado que pertence tanto à sua constituição identitária quanto à sua história com Pedro. Desse modo, o autor se esquiva de duas saídas demasiado óbvias e fáceis.

Além disso, intercalado no romance, uma outra história é contada, ou melhor, recontada: a história da intensa amizade entre o jovem Davi e Jonatã. Esta história bíblica, cheia de subentendidos, é recriada também com delicadeza e primor, servindo de espelho e contraponto ao drama vivido por Daniel e Pedro.

Todavia, se o entorno temático é judaico, ou melhor, mergulhado na atmosfera étnico-religiosa do judaísmo contemporâneo, com seus ritos, sues costumes e seu jargão (inclusive no final há um glossário), a estrutura da fabulação é grega, isto é, exata e rigorosa como uma tragédia helênica. Podemos inclusive afirmar que a história, dionisíaca, vem contrabalançada não só por uma linguagem elegante, mas por uma estrutura apolínea. E nesta simetria, neste tenso equilíbrio entre interdição e pathos, vertigem e rigor, Uma leve simetria se revela como um ponto alto em nossa recente ficção narrativa.

Uma leve simetria
Rafael Ban Jacobsen
Não Editora
224 págs.
Otto Leopoldo Winck

nasceu no Rio de Janeiro (RJ), radicado em Curitiba (PR). Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFPR, foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, em 2006, com o romance Jaboc. Autor do ensaio Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza (2017), do livro de poemas Cosmogonias (2018) e do romance Que fim levaram todas as flores (2019). Neste ano, lançou Périplo, um poema-livro.

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