“No silêncio do deserto, ouço as batidas do meu próprio coração”, diz uma criança do povo tuaregue, sugerindo outra forma de relação com o corpo da Terra. “Lemos na paisagem as mensagens da Mãe Terra” — mais uma criança, agora do povo bribri, aponta diferentes formas de leitura, por meio da interação com a natureza. “Para falar com a floresta, nós cantamos”, é a vez de escutar uma criança mbuti, para quem a voz da mata é o sustento do seu povo.
As frases citadas vêm do ambicioso e corajoso Origem, da franco-uruguaia Nat Cardozo. A autora reuniu narrativas e cosmologias de 22 povos, em um livro ilustrado feito a partir de ampla pesquisa e de trabalhos de colaboração com diferentes agentes. Cardozo não esteve de forma presencial com essas tradições, mas usou os benefícios da extensa circulação de informação do nosso tempo para criar seus textos ficcionais. Quem narra são vozes de crianças, em uma primeira pessoa que se apresenta ora no singular, ora no plural, dentro de um mesmo texto, já apontando as diferentes formas de tratar o coletivo e o individual vividas por povos que têm um contato mais integral com a natureza.
Além dos anos de pesquisa, o texto teve a supervisão de uma equipe de antropólogas, e edição literária da renomada escritora Maria José Ferrada. O formato grande do livro chama a atenção, as ilustrações misturam as paisagens locais com o rosto de crianças a nos olhar sempre de frente e com profundidade. O texto, extenso, traz certo ar enciclopédico e informativo, apesar da subjetividade ali encetada, que a princípio o encaixaria nos termos da ficção. No entanto, essa hesitação de categorias não surpreende. Afinal, além do hibridismo de linguagens ser quase a ordem na literatura para as infâncias, o processo de trazer histórias vindas de epistemologias e modos de transmissão não ocidentalizados para esse objeto tão estimado na cultura escrita — o livro — não poderia acontecer sem certa oscilação do que esperamos que seja literatura e sua produção.
De forma gradual
Uma criança do povo bijagó que conhecemos em Origem nos lembra: “O mundo é um mistério que se descobre aos poucos”. Por isso, apesar da recorrente pressa contemporânea, acredito que as tramas desse encontro inusitado vão ser desvendadas de forma gradual e com mais práticas de experimentação que de prescrição. A infância, por exemplo — afinal, nossa origem comum — já tem em sua literatura certa diversidade de linguagens e propostas. Temos autores como Daniel Munduruku, que tão antes viu uma porta de entrada pela infância que as mitologias, saberes e ludicidades do seu povo teriam para ampliar sua circulação. Encontramos propostas experimentais, como o expressivo Oikoá e seus poemas multilíngues e ilustrados, uma publicação notável da editora ÔZé. Há ainda experiências com autoria infantil, no cativante Amazônia das crianças, projeto em que o fotógrafo Araquém Alcântara viajou por meses em diferentes pontos da floresta, escutando diretamente histórias de crianças indígenas, ribeirinhas, extrativistas, quilombolas, urbanas e beiradeiras, com toda diversidade e contemporaneidade da floresta hoje.
Todos esses projetos dialogam com Origem ao trazerem provocações ao conceito de autoria e ao colocarem a pesquisa no centro da criação editorial. Em todo livro há coletividade, em todo processo criativo há pesquisa, mas no mercado tradicional isso muitas vezes fica difícil de vislumbrar. A exaltação da autoria individual disfarça o caráter coletivo de todo livro, e o mito da genialidade esconde o enorme esforço feito por quem escreve.
Que novos lugares o livro pode encontrar por meio desse desafio de contar mitos, práticas e saberes de povos originários junto à palavra escrita? No caso de Nat Cardoso, um de seus critérios foi escolher povos que vivessem mais isolados, que tivessem uma experiência mais íntima e pura com o ambiente natural. Talvez por isso alguns trechos nos soem idealizados e até impossíveis, como na frase “Não existe espaço para a ideia de riqueza, assim como não existe amanhã além do hoje”, falada por uma criança moken.
Sem ditar modos de fazer, mas sentindo os efeitos dessa escolha, penso que as vidas escolhidas para serem mostradas em Origem por um lado reforçam uma distância, mas por outro acordam em nós algum sonho adormecido. Parece irreal, mas ainda existe.
A imagem no final do livro de uma criança camuflada com o cinza das fábricas, das cidades e da civilização é um enorme choque. Tão impactante para a pessoa que vinha de uma leitura mais leve e inspirada, que talvez seja desnecessário o texto didatizante que a acompanha. Hoje uma das grandes perguntas feitas na educação é como encontrar e ensinar uma nova relação com a natureza. Muitas expectativas são colocadas na literatura e no caráter definitivo e de verdade que os livros ainda carregam. Não quero aqui tentar encontrar respostas e soluções, apenas pressinto que os caminhos da razão já foram explorados em demasia. Que o livro, junto a essas maneiras ancestrais de viver que farejamos com esperança, seja um espaço de conversar, sentir, brincar, silenciar, ressoar. Não impor, não impor mais uma vez.
Antes de finalizar este texto, eu seguro Origem, e de trás para frente deixo passar as páginas, ao modo de um flipbook. Apenas reparo, miro o rosto-paisagem, o corpo-natureza, dessas crianças, os olhos que se mantêm, apesar do exterior que se diferencia. O papel grosso faz um barulho, as páginas passam rápidas, dão um clique na retina. Numa leitura intuída, deixo que digam sua língua sem palavras, que esquecemos, que ainda desconhecemos. Nesse instante, o livro se torna muito mais.