Por Rabelais e Fidel

"Literatura e animalidade" examina os meandros da nossa rica e imprescindível relação com os animais
Maria Esther Maciel, autora de “Literatura e animalidade”
27/01/2018

Você vai pagar quarenta reais por esse prato para o seu gato? Trinta e cinco reais para dar banho no cachorro? O quê, tem mais? Duzentos reais a consulta do veterinário? Já pensou o quanto esse dinheiro ajudaria uma dessas crianças que pedem esmola no semáforo, já pensou?

Não, sensível leitor, as linhas acima não foram retiradas de nenhum texto ficcional, foram direcionadas a mim, a minha mulher. Mas trata-se de jargão, de uso comum na seara dos medíocres, esses que estão sempre atiçando a fogueira patética dos conflitos. Cuidar de animais, para esses boçais, implica desprezar o ser humano necessitado. São essas mesmas mentes opacas que erguem o muro implacável que separa humanidade-ser sensível e animais-seres insensíveis. Triste, mas infelizmente, realidade. O homem precisa confrontar, seja o que for, sem disputa o valor é quase nulo. Caso você goste de animais, conviva com eles e os trate com a dignidade merecida, para os estúpidos a mensagem é a seguinte: ele/ela não gosta de gente. Então fica estabelecido que a luta entre o homem e o animal tem seu vencedor inconteste. O homem é parte e juiz. Mas a realidade está bem retratada dessa forma? Então, responda, justo leitor, quem precisa mais de quem? Eu não sou tolo ao ponto de afirmar que meu gato necessite de mim, mas tenho a certeza da importância dele em meus dias. E assim em meio às atrocidades que o homem comete contra os animais, várias vezes me indaguei a cerca do que existe de humano num animal e o que existe de animal num ser humano. Vale ressaltar que ambas investigações não examinam atitudes e comportamentos que poderíamos classificar de cruéis. Acredito que tal classificação seja inerente ao homem. A este apenas. Mas para que “serve” um animal, um bicho de estimação? Fiquemos nesse universo. E para que “serve” a literatura? Todo tipo de literatura, vamos expandir esse universo. Pensemos a partir do utilitarismo. Por definição, e nos restringiremos às questões individuais. Nomeamos utilidade a propensão de algo a conduzir ao bem-estar, ao bem, à beleza, à felicidade, etc. Ou seja, o oposto do egoísmo, onde a regra é pensar em si.

Pois bem, grosso modo, o ser humano, suas atitudes levam o “outro”, humano ou não, ao bem-estar, à felicidade? Pergunto e respondo. Óbvio que não. Sem imputar ao outro o ônus dos próprios fracassos, o humano é medido pela quantidade de bens materiais e acúmulo de frustrações no que diz respeito às relações pessoais e índice precário de sentimento humanista. Refiro-me ao humanismo marxista, o homem como parte da natureza, diferente, no entanto, por uma característica: a consciência. E consciência está intimamente relacionada a termos como eu, existência, pessoa, também quer dizer conhecimento. Como a consciência ocorre na prática? Bem, se a consciência é refém do complexo de valores de cada um de nós, e vivemos época em que os valores mais simplórios, como o ter e o aparentar, são predominantes, a consciência opera em igual frequência. Logo, uma questão se impõe: nossa época ou a MINHA época? A questão ganha importância em dias nos quais o individualismo cada vez mais se faz notar, o EU é determinante. Como não bastasse individualismo, adicionou-se egoísmo. Enquanto para Emmanuel Levinas a guerra implica o fim da alteridade, em nossos dias o individualismo cumpre esse papel. Nesse estado de coisas, ao outro será concedida alguma distinção tão somente quando artífice daquele que por vezes o remunera no cumprimento de alguma tarefa. O outro praticamente é apagado, embora cidadão destes tempos cruéis, não me conformo e busco o reconhecimento do outro, a valorização ética do ser humano.

Conforme Derrida:

Há muito tempo, há tanto tempo, então, desde sempre e pelo tempo que resta a vir, nós estaríamos em via de nos entregar à promessa desse animal em falta de si-mesmo.
Há muito tempo, pois.
Há muito tempo, pode-se dizer que o animal nos olha?
Que animal? O outro. 

A linguagem
Literatura e animalidade, embora o limite que o título imponha, ultrapassa essa fronteira e vai muito além, o leitor encontrará em suas páginas um estudo sobre a alteridade e para tratar desse assunto, entendo como matéria indispensável o sentir. Mas o que vem a ser o sentir? É algo indizível o sentir. Algo que me coloca como sujeito e objeto auto, o que faz aprender comigo mesmo, fazer o si mesmo, transformar o si mesmo. Aquilo que me permite me examinar, visto que há uma cegueira primordial sobre nós mesmos. E aqui algo que, diz a regra, nos separa dos animais e aproveito para discordar. A linguagem. Correto, os animais não utilizam a linguagem humana, o que não implica ausência de linguagem. Está comprovada a existência de várias linguagens no mundo animal, cantos, gritos, expressões faciais, troca de pelagem, etc.

Pois bem, voltemos ao sentir, melhor, ao sentir-pensar. Se no ser humano a linguagem se confunde com o próprio pensar, e o animal faz uso da linguagem, logo, ele pensa? Quem sou eu para responder! Mas se linguagem não é o pensar, ela é aquilo que transborda do pensar e se confunde com o pensar, logo… A resposta é sua, atento leitor.

É importante que percebamos a inseparabilidade do sentir e pensar, isso coloca em xeque toda nossa racionalidade e ao mesmo tempo nos devolve uma condição que desde criança vivenciamos.

O animal tem relação com nossa infância, mas não tem relação com o tempo, a companhia de um animal é garantia da permanente infância, não da inconsequência, mas do respeito, do espanto, do amor que esse tempo enseja. O animal sou eu e também aquilo que gostaria e não consigo ser.

Em Literatura e animalidade, Maria Esther Maciel examina por nós os meandros dessa rica e imprescindível relação. Faz uso de Kafka, Borges, J. M. Coetzee, Guimarães Rosa, entre outros. Autores que abordaram a alteridade na pele dos animais, o que eles representam para nós. A ciência, como lhe é próprio, separa muito bem. Cada um em seu escaninho, humano e suas subjetividades, aqui; animais e sua ausência de subjetividade, ali. A literatura, no entanto, é cenário onde tais escaninhos inexistem. E aqui vale citar Derrida mais uma vez, no momento em que estando nu se percebe surpreendido pelo olhar de seu gato.

Frequentemente me pergunto, para ver quem sou eu — e quem sou eu no momento em que surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal, por exemplo os olhos de um gato, tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo. Por que essa dificuldade? Tenho dificuldade de reprimir um movimento de pudor. Dificuldade de calar em mim um protesto contra a indecência. Contra o mal-estar que pode haver em encontrar-se nu, o sexo exposto, nu diante de um gato que nos observa sem se mexer, apenas para ver.

Maria Esther busca na ficção elementos que lhe permitem abordar como profunda conhecedora do assunto, a presença dos animais na literatura. A relação humanidade/animalidade nem sempre de puro afeto, mas também repleta de contradições e violências. Importante: uma forma de animalidade é a humana.

Impossível não lembrar Céline que ao fugir de seu apartamento em Montmartre levou consigo sua mulher, Lucette Almanzor, e o gato Bébert. Destaco ainda em Rabelais, mais precisamente em Gargantua, o heroísmo compartilhado entre o gigante que empresta nome ao livro e sua égua. Fugir e levar consigo apenas o essencial. Aquilo que leva ao SENTIR, criar um herói e dividir o protagonismo com um animal, é de se pensar. SENTIR e PENSAR. Encerro confessando a dificuldade em escrever este texto, pois em 17 de novembro perdi a companhia de meu gato Rabelais. Uma relação curta, mas que me transformou e ainda me permite várias autoinvestigações. Dia 27, porém, comecei a amizade com o gatinho Fidel, jovem e disposto, sua companhia me permitiu chegar até aqui. Fidel recebeu o nome por razões óbvias, sim, ele mesmo, o cubano que colocava a literatura acima da política como fator de transformação.

Literatura e animalidade
Maria Esther Maciel
Civilização Brasileira
174 págs.
Maria Esther Maciel
É professora titular de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UFMG. É também escritora e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Sua primeira obra de ficção, O livro de Zenóbia, foi finalista do prêmio Portugal Telecom em 2005. Com O livro dos nomes, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio Portugal Telecom e do Prêmio Jabuti em 2009. Maria Esther Maciel foi também organizadora do livro Pensar/Escrever o animal: Ensaios de zoopoética e biopolítica.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho