Poesia que sai do papel

Nos versos e imagens de "Algo antigo", Arnaldo Antunes propõe uma experiência de contato com o valor do tempo, da memória e da palavra
Arnaldo Antunes, autor de “Algo antigo” Foto: Marcia Xavier
01/07/2021

“O silêncio foi a primeira coisa que existiu”, diz a música O silêncio, lançada por Arnaldo Antunes em 1996. Agora, 25 anos depois, a vida parece mesmo exigir que voltemos à origem de tudo para uma reflexão. Talvez porque estejamos, há tempos, imersos em uma crise formada por narrativas conflitantes, notícias inventadas e vozes ignoradas. A crise também está na linguagem, e um bom livro pode nos reconectar com a essência dela.

Algo antigo, do músico, poeta e artista visual paulistano, nos convida a uma experiência de contato com o valor do tempo, da memória e da palavra. São pouco mais de 200 páginas que incluem, além dos poemas, caligrafia e imagem — uma mistura frequente na produção de Antunes. A capa, com tipografia “retrô”, foi desenvolvida pelo próprio autor em parceria com a artista plástica Márcia Xavier.

No início da pandemia, a produção artística de Arnaldo Antunes entrou em pausa e precisou de algumas adaptações. A condição de isolamento, no entanto, estimulou a revisão dos poemas, cujo lançamento era planejado ainda para 2020. Novos textos foram incluídos. Outros, reorganizados. O artista diz acreditar que esse intervalo e as revisões melhoraram o produto final. “O livro me salvou”, contou na live de lançamento, em fevereiro deste ano.

A escritora e crítica literária Noemi Jaffe, que já havia trabalhado com Antunes na seleção e organização dos textos de Melhores poemas, em 2010, agora assina o texto da orelha de Algo Antigo. Nele, ela diz: “Se a poesia é a palavra que mais se aproxima das coisas, enquanto os outros discursos nos afastam cada vez mais delas, os poemas de Arnaldo se tornam as próprias coisas de que falam, num processo de alteridade radical”. Essa parece ser uma boa definição do que encontramos no livro.

um deus que conta
o seu segredo
um deus que apronta
mas tem medo
um deus que erra
e recomeça
merece reza

Algo antigo considera a palavra um caroço a ser cuspido. Vai se identificar com os poemas quem vive a solidão de várias maneiras, seja diante das telas dos smartphones nos empurrando segredos que não pedimos para saber — como indica o poema antigamente —, sentindo saudades, ou “isolado por um exército de desertos”, como diz isolado — um poema que, apesar de parecer recém-criado, foi produzido antes da pandemia.

O livro conversa com o tempo, com a morte — temas que marcam presença em outras obras do autor —, além da solidão, a falta de ar, a fome e até a terra plana. É uma guerra entre o hoje e o ontem: “os mesmos outros/ de sempre/ se preparam/ para atacar/ os novos mesmos/ de agora”. A poesia também parece querer sair do papel e nos convidar para uma atitude. O poema na porta pede uma escolha: “ou você entra ou você sai/ ou se concentra ou se distrai/ ou você sobe ou você cai/ ou observa ou abstrai”. E conclui: “não dá para ficar parado aí na porta”.

Apesar da firmeza com que olha para assuntos pulsantes da atualidade, Algo antigo também abre espaço para a leveza e para o lúdico. O conjunto, tanto na forma quanto no conteúdo, representa um pouco do exercício de liberdade possibilitado pela escrita. Esse “respiro” não significa, no entanto, que se saia menos impressionado da leitura.

assisto ao céu estrelado
através dos olhos fechados
pontos por todo lado
no forro do céu furados
detrás de teto e telhado
das pálpebras, cortinados
e do futuro esperado
aceito espelhos quebrados

A exemplo do trecho acima, a observação é um ponto-chave em Algo Antigo. Ela se revela e intriga não apenas nos poemas, mas nas imagens. Em uma das páginas, por exemplo, há uma fotografia do olho de Arnaldo Antunes, feita por Fernando Laszlo — também parceiro em trabalhos anteriores nas artes visuais —, em que vemos o buraco de uma fechadura no lugar da pupila. O poeta tem uma porta nos olhos.

Dedicação às letras
A trajetória de Arnaldo Antunes como escritor é tão extensa quanto a de músico, na qual tem um trabalho consolidado com os Titãs, posteriormente solo e também com os Tribalistas — além de trabalhos paralelos com parceiros como Edgar Scandurra, Taciana Barros e Antonio Pinto. Na história do artista, a poesia sempre dialogou com a canção. Impossível deixar de mencionar sua ligação com Alice Ruiz, de quem gravou o poema Socorro, além de Paulo Leminski.

O primeiro livro, OU E, foi publicado em 1983. Isso sem contar as pequenas obras anteriores impressas em xerox e o trabalho na edição da revista Almanak 80, com Beto Borges e Sergio Papi. De lá para cá, vieram cerca de 20 obras literárias, além das edições em outros países. Entre eles estão As coisas (1992), Palavra desordem (2002), Como é que chama o nome disso (2006) e n. d. a (2010). A última publicação antes de Algo Antigo, Agora aqui ninguém precisa de si (2015), venceu o Prêmio Jabuti na categoria Poesia.

Situar Antunes em um estilo, no que diz respeito à literatura, implica citar o experimentalismo e a materialidade. Algo antigo tem um poema dedicado a Augusto de Campos, poeta e tradutor paulista que completou 90 anos em fevereiro, e a referência não é à toa. A poesia de Arnaldo Antunes se inspira no concretismo brasileiro. Outros nomes como Haroldo de Campos e Décio Pignatari representam referências marcantes para o autor, evidentes na inclusão de aspectos gráfico-visuais junto às palavras ou no estudo de diferentes suportes para a poesia.

LEIA entrevista com Arnaldo Antunes.

Algo antigo
Arnaldo Antunes
Companhia das Letras
224 págs.
Arnaldo Antunes
Nasceu em 1960, em São Paulo (SP). Poeta, compositor, músico e artista visual, fez parte da banda Titãs até o início da década de 1990, tem inúmeros discos em carreira solo e recebeu um Grammy com o grupo Tribalistas. É autor de Agora aqui ninguém precisa de si (2015) e Como é que chama o nome disso (2006), entre outros livros. Parte da sua trajetória está registrada no documentário Com a palavra, Arnaldo Antunes (2018), digirido por Marcelo Machado.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho