Para as meninas

Um pai discute com as filhas a evolução das crenças e da fé na história da humanidade
Ilustração: Theo Szczepanski.
30/05/2015

A partir da sétima série, passei à leitura de outro tipo de livro. O livro que fazia olhar para dentro do homem. Recordação da Casa dos mortos, do Dostoievski, de uma coleção antiga editada pela José Olympio, o homem a tudo se adapta, foi um deles. Cito-o porque esse conceito de sobrevivência a qualquer preço, nas piores condições, é uma das características que fez o ser humano sobreviver por tantos séculos, tantos milênios, e torná-lo o senhor da terra — houvesse uma hecatombe nuclear, dizem que as baratas, as formigas e os ratos sobreviveriam. Tenho certeza de que o homem também, porque ele é uma espécie de rato, de barata, de formiga. Não, não é sua principal característica. A principal é sua ferocidade. Somos um animal feroz, o mais feroz que há. Dominamos o mundo porque somos ferozes, não porque somos inteligentes.

Foi para domar essa ferocidade que inventamos a arte. A Bela que é a perdição da Fera. Também a religião. Também o Estado, para que sejam forças capazes de conter a força dos indivíduos mais fortes. Para proteger o coletivo do indivíduo. Ou de hordas de indivíduos. Ou nós mesmos de nossa loucura, de nossa raiva. E para proteger o indivíduo, seja forte ou fraco, do coletivo. Claro, também para proteger e preservar os de dentro dos de fora. Um grande remédio para essa ferocidade, a sabedoria popular já sabe qual é: o trabalho. E tudo isso junto, trabalho, arte, estado, religião, regido pelas leis morais, é aquilo que chamamos de civilização. O ótimo O senhor das moscas, de William Golding, traz um retrato preciso dessa ferocidade e de como a civilização existe para domá-la. Em uma das cenas, um garoto chamado Roger joga pedras em outro, errando de propósito o alvo. Diz o narrador, que o que protegia o pequeno das pedras era uma redoma de civilização — os pais, a escola, a igreja, que ainda estavam na cabeça de Roger. Quando Roger se desliga de seu mundo anterior, aquele que havia sido construído na Inglaterra, torna-se o mais cruel dos meninos perdidos naquela ilha. Uma ressalva, ficassem lá por muitos anos, quando os meninos menores crescessem, Roger certamente seria morto quando fraquejasse. Dos elementos citados, as maiores invenções para domar essa ferocidade foram a invenção de deuses e a consolidação das virtudes, sem as quais talvez já tivéssemos sido extintos.

Estima-se que os dinossauros habitaram a Terra por cerca de 175 milhões de anos e que estejam extintos há 65 milhões. A teoria sobre a causa da extinção mais aceita é o impacto de um corpo celeste. Como consequência, uma gigantesca nuvem de cinzas, também gerada por vulcões, teria envolvido a Terra por milhões de anos, impedindo que a luz do sol por aqui chegasse. Houve uma extinção em massa, plantas e animais.

As consequências
Variações do homem, como prováveis ancestrais, têm um milhão de anos. Diz que o homo sapiens, que somos nós, tem 150 mil anos. Que ele chegou na Europa, vindo da África, faz uns 40 mil anos, mesma época em que parece ter desenvolvido sua linguagem simbólica. Lá, ele extinguiu o neanderthal, que era outro hominídeo, como extinguiria o mamute, na América, quando lá chegasse, como vem extinguindo espécie atrás de espécie. Agora, que legado, quais são as consequências desses milhares e milhares de anos pré-civilização?

Fomos uma tribo de dezenas de pessoas, ou centenas, vai ver poucos milhares. Feito uma manada. Vivemos por séculos a fio, por milênios. Por um tempo muito maior do que aquele descrito nos livros de história. Nascemos, nos alimentamos, nos reproduzimos, morremos. E convivemos. Diz que superstição é um comportamento reforçado ao acaso. Eu esqueço a camisa desabotoada e meu time ganha, eu sento na mesma cadeira que um dia me deu dez numa prova. Bato na madeira três vezes para isolar um pensamento ruim, ponho sal grosso atrás da porta ou planto uma arruda na frente de casa para espantar mau olhado, superstições que vêm através dos tempos e cujas origens se perderam. As leis morais devem ter tido o mesmo mecanismo de origem. Humanos nascidos com problemas genéticos resultado de relações incestuosas, durante séculos, milênios, tornou o incesto um crime moral e moldou nosso comportamento — os filhos deixam a casa dos pais, o macho sai para caçar e deixa as crias aos cuidados da mãe, o macho, no contato com as crias, produz menos testosterona, o macho, quando as crias estão em idade de ser mãe, tem menos hormônios, menos desejo, o macho expulsa as crias para o mundo, entre outros tantos. E quanto tempo terá demorado para que fossem inventados os deuses e uma proibição divina qualquer? Por quê? Para a sobrevivência da espécie. Penso que os deuses foram criados por nós para isso, para nos salvar de nós mesmos.

Talvez os dois crimes morais mais fortes e enraizados nos seres humanos sejam o incesto e a quebra de confiança, a traição — nas histórias, o traidor é sempre a pior figura, e, via de regra, acaba mal, sendo desprezado até por aquele em benefício de quem cometeu a traição. Não é à toa, nas histórias que se contam na religião cristã, que Jesus foi entregue por um traidor. A espécie se extingue se esses crimes morais forem regra, não exceção. Creio que essas duas leis, das quais se originam estes crimes, fazem parte do tripé que nos moldou. O terceiro vértice, e talvez o mais importante nas relações humanas, é aquilo que se já disse neste texto, a sua ferocidade. Ou a força de um subjugar o outro. Ou essa raiva que nos impulsiona. Não, não esqueci do fator fundamental, da base disso tudo, que é a nossa consciência da morte. Nossa vida, nossa espécie, foram moldadas por nosso conhecimento, que veio antes de qualquer outro conhecimento, de que ela é mais poderosa que nós.

Um animal
O homem é um bicho. Parece algo tão banal de se dizer, mas não é. Uma vez fui almoçar com um editor de revistas culturais. Ao final do nosso encontro, quando disse a ele que o homem era um animal, ele relutou. Talvez tenha pensado na nossa consciência, talvez tenha pensado na nossa produção, nas realizações humanas, nos 7 ou 8 mil anos de história, no fato de nós nos pensarmos. Olhou para o lado, para cima, fez um meneio de cabeça, e saiu-se com essa Mais ou menos, mas é um animal diferente, e não dava mesmo para continuarmos a conversa, que era hora de trabalhar. Para enriquecer nosso colóquio, podia tê-lo lembrado de Fabiano, do Vidas secas. Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta, aí Fabiano cai em si, com medo que as crianças o tivessem escutado. Corrige-se, Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Será que Fabiano, sem instrução, naquele sertão duro, é mais bicho que eu, em cujo cérebro, desde pequeno, foi entrando séculos de conhecimento e civilização? Isso é o que os europeus diziam dos africanos e dos índios americanos. É o que donas de casa de classe média falavam de suas empregadas analfabetas, recém-chegadas do Nordeste, há vinte anos. Então, somos bicho até um ponto e algo diferente depois desse ponto? E que ponto é esse?

A generosidade também pode ter nascido nesse convívio pré-histórico. Se você não divide, não coopera com o grupo, é morto. Se você não tem compaixão, não terão compaixão de você. É morto. Então as virtudes apareceram para proteger o indivíduo, garantir-lhe a sobrevivência. Inimigos devem ter tudo a ver com o surgimento da moral. Nosso jeito de ser, nossa moral, nossas virtudes, devem ter sido forjadas na guerra, no conflito, contra a natureza, contra o vizinho de casa, de tribo, contra o mais forte. Ferocidade.

E sem muitos preâmbulos, chego aos Dez mandamentos e também ao capitão de um galeão.

Instinto de sobrevivência
Nos barcos da época do descobrimento do Brasil, o capitão era o senhor de sua embarcação e todos o temiam. Imaginem um bando de homens quase selvagens presos ao mar, por meses, sujeitos a toda a sorte de doenças, tempestades, escassez de água e de ventos. Eram homens com pouca civilização dentro deles, o mais feroz domando as ferocidades. É a força protegendo da própria força. Creio que está em nós sermos comandados e comandar, e que isso é uma regra instintiva de sobrevivência.

O poder, uma nova análise social, do Bertrand Russel, um livro de que meu pai gosta, li bons trechos, se não inteiro, entusiasmado, utilizando-o, inclusive, para fazer um trabalho de faculdade sobre líderes e liderados. Comandantes e comandados, nosso impulso para ser um ou outro. O que um enxerga no outro. Era para uma das matérias de Administração geral, algo relacionado à administração de recursos humanos, motivação, essas coisas, para a FGV. Voltando ao nosso capitão, do nosso barco, cheio de homens que perdem seu já pouco sentido de civilização. Poderíamos chamá-lo de Moisés. Chamá-lo de Deus. Não fosse como é descrito no Velho Testamento, um deus bravo, enérgico, inclemente com os inimigos e com aqueles que o desobedeciam, não teriam sobrevivido na travessia daquele mar de areia.

No árido Oriente Médio, a natureza é adversária, o homem então deve ser duro, forte, para sobreviver a ela. O semita era assim. Os Dez mandamentos, ou os Dez ditos, fazem parte da Torá e são consequência de uma época, herdeiros de uma cultura — na internet, um site põe lado a lado a Torá e o Código de Hamurabi, mostrando como esse último teve forte influência no primeiro. Lembremo-nos também da exuberância do Egito antigo, as férteis várzeas do Nilo, seus deuses e seu Faraó. O povo de Abraão era escravo lá. Moisés os libertou, atravessaram uma terra hostil travando batalhas e chegaram a Israel — as histórias da Bíblia são histórias, lembrem da epígrafe de João Ubaldo, em Viva o povo, são o que importa. Os Dez mandamentos surgiram nesse contexto. Assim como o cristianismo deu um sentido às vidas párias, em Roma, o deus do judaísmo deu rumo para aquele povo. Reparem, ambos escravos. Enfim, meu lado FGV. Deus, depois Jesus, foram o produto de que todos precisavam. Assim como foi o surgimento de Maomé, talvez o homem religioso mais importante em vida que já existiu, no século 7, e que uniu os povos árabes, que viriam a dominar parte importante do mundo.

O chefe
Os dez mandamentos. No primeiro, deus, o líder, o chefe, se apresenta, deixando claro que fora Ele a libertá-los do Egito. Ele, então, é o chefe, e é logo um chefe onisciente. E por que precisamos de um chefe? Existem várias explicações para isso, vários questionamentos possíveis, mas vou ficar com um só. É porque, como os cavalos, vivemos em bando e seguimos um líder. A espécie descobriu que seria mais eficaz com um líder e aí esse saber feito ferro em brasa marcou a carne dos nossos genes e virou um instinto. Talvez porque o indivíduo dessa espécie feroz descobriu que se for contra um líder forte é morto. Talvez exista alguma razão psicológica, como a vontade de ter um pai, ser protegido, ser mais fácil que alguém faça escolhas por nós. Talvez tenhamos descoberto que se cada um remar para um lado diferente a canoa fica em círculos. Está em nós, impresso em nós, é mais que cultural. Inventamos os deuses não apenas para que sejam os responsáveis pela nossa conduta moral, mas também para obedecê-los. Talvez seja essa uma explicação para nossa história de escravidão — em culturas diferentes, que não se tocaram a escravidão estava lá — seres domesticáveis que somos.

Penso que os Dez mandamentos são, também, um manual de etiqueta, normas de sobrevivência da espécie — acho mesmo que a Bíblia é isso, um código de sobrevivência formalizado. Para aquele homem diferente, aquele homem que adquiriu a linguagem simbólica 40 mil anos antes, para aquele homem cujo cérebro foi ficando cada vez mais potente. Para aquele homem pensante. Para aquele homem que já se pensava. O segundo e o terceiro mandamentos parecem reforçar o primeiro, o chefe. Para povo escravo, talvez tenha sido a maneira de juntá-los, fazer todos remar para o mesmo lado. O quarto mandamento introduz a folga semanal. O quinto é respeitar pai e mãe. O sexto, não matar. Depois não ao adultério, não furtarás, não caluniarás, não cobiçarás — outra vez proteção ao indivíduo, mais que a coletividade. Se você trabalha no mesmo ritmo, sem parar, sempre, você acaba tendo, no mínimo, um problema sério de saúde. Férias, o dia de descanso, não são para o lazer, mas para as desobrigações. Um período para o não dever. Se você desrespeita pai e mãe, é banido, perde a casa do pai, e, imagino, nas sociedades mais primitivas, é morto. E isso vale para as demais leis. Dizer a verdade protege você — Zaratrusta, faz 3 mil anos, dizia isso. Épocas diferentes precisavam de respostas de sobrevivência diferentes. Não era possível mais respostas antigas a perguntas novas. Dom Cláudio Hummes declarou isso, dias antes da escolha do papa Bento 16. E respostas novas, para mundos novos, são essenciais, seja para a sociedade que for, das mais sofisticadas, às mais simples. Faz algum tempo li que em uma região da África uma tribo tem por tradição que a recém-viúva receba em seu leito o irmão do falecido, um mês após o enterro. Antes, isso podia significar um ritual de prosseguimento da vida. Vamos parar de chorar e olhar para frente — quem olhar para trás vira estátua de sal, já dizia outra cultura. Hoje, está matando a tribo, porque ou o irmão do falecido, ou a viúva, tem Aids. Ao continuar com a resposta antiga, desaparecerão.

Os Mandamentos são leis que protegem sobretudo os fracos. A lei Olho por olho, dente por dente, presente no código de Hamurabi, dá o tom duro do Velho testamento. Aí aparece uma questão, talvez a questão mais importante desse escrito. Por que apareceu Jesus que veio com outra forma de pensar, uma forma que conquistou o mundo?

O peso de Roma
Vamos nos lembrar que não eram os egípcios, de quem unidos, o povo de Moisés conseguiu escapar e sobreviver. Não eram os babilônios ou os selêucidas, invasores que um messias guerreiro daria conta de expulsar. O mundo de então conhecia algo inédito que o modificaria para sempre. O mundo conhecia Roma — faço a ressalva que se Alexandre não tivesse morrido tão moço, talvez pudesse ter antecipado o que o Império Romano viria a ser. A Roma que dobrou egípcios, gregos, hebreus, trucidou germânicos e gauleses, chegou até o Atlântico e pôs de joelhos todos aqueles que atravessaram seu caminho. Aquele código de sobrevivência da espécie já não serviria. Seguissem-no, seriam exterminados. Você só fere o que pode matar, isso é uma lei instintiva, que sabemos sem que tenham nos ensinado, sem precisarmos ouvir na fala de algum personagem sábio de um filme de ação ruim. E não, não se podia matar Roma.

Gostei muito do livro Aníbal, um desafio aos romanos, de Ernle Bradford. Aníbal foi um baita guerreiro. Diz que, por séculos, os adultos ainda punham medo nas crianças romanas invocando-o. Virara lenda. Venceu batalhas importantes, como a batalha de Canas, em que massacrou os inimigos. Ao final é derrotado, morre no exílio, mata-se, já velho, quando se vê cercado por soldados de Roma. O principal motivo de ter perdido a guerra é que os romanos haviam inventado a República. Que se transformaria, mais de um século e meio depois, no Império Romano. Claro que teve outras razões, como o fato do exército romano ter uma capacidade formidável de aprender com a guerra e ser de uma disciplina e de uma ferocidade bárbaras. Em um dos trechos do livro, o autor conta que o cônsul Marcelo fora morto. Aníbal fez com que fosse cremado o corpo com as devidas honras e as cinzas encaminhadas ao filho. Ele havia respeitado Marcelo como oponente enquanto estava vivo e prestou-lhe, depois de morto, como sempre foi de seu costume para com oponentes abatidos, os sinais de respeito a um homem digno de honra. Quando Asdrúbal, irmão de Aníbal e também ótimo e experiente general, foi morto em combate, sua cabeça foi lançada no acampamento cartaginense. Quando o objeto foi entregue a Aníbal em sua tenda, ele olhou e disse: “Vejo aí o destino de Cartago.”(tradução Paulo Klinkerfuss). Isso foi em 207 a.C. Isso era Roma. A Roma que dominou o Egito, a Grécia, a Grã Bretanha, que jogou sal nas cinzas de Cartago. Que não deixava sobreviventes. Que matava todos os escravos de uma casa se o dono tivesse sido morto por um deles. A Roma truculenta que definiu a moral cristã e, depois, o cristianismo.

Creio mesmo — partindo do pressuposto de que essas pessoas existiram — que Jesus, Zaratrusta ou Zoroastro, Moisés, Sidarta, Maomé, e tantos outros, todos homens revolucionários, foram produtos do seu tempo e das condições históricas. Todos eles criaram regras morais que, me parecem, já existiam, ainda que num espaço intangível. Os grandes mestres da literatura fizeram isso, definiram e retratam um mundo original, que já existia ou viria a existir. Kakfa fez isso em A metamorfose e em O processo, Melville em Bartleby. Rubem Fonseca, em seus contos, faz quase quarenta anos, definiu o Brasil de hoje. Perceberam de maneira intuitiva que a espécie precisava de outras leis para sobreviver, no primeiro caso, e que o mundo estava diferente, sem ninguém se dar conta, no segundo. Pessoas que tiveram a percepção de que a ética e a moral, que são as leis da sobrevivência da espécie, precisavam ser mudadas. A atitude individual também é fundamental. Houve outras condições extremas que não produziram o ato individual, tão importante, e que, por vezes, é deixado em segundo plano. Um exemplo recente. O Mulá Omar, líder religioso do Talebã, que governou o Afeganistão. Foi um líder que o acaso escolheu, e teve aceitação quase que imediata naquela população sofrida e tribal. Nunca havia participado da vida política de seu povo. Em comum com um líder religioso, a exceção de Maomé, o fato de ser imaterial, raríssimas pessoas o viram. Quanto tempo até virar um santo, profeta de outra corrente religiosa, autor de milagres? Lembro-me de ter lido sua história na Folha de S. Paulo, na época dos atentados do 11 de setembro de 2001. Entro nos arquivos do jornal, digito algumas palavras chave, e pronto, está aqui. A autora é Jane Macartney, um texto da Reuters que o jornal traduziu e publicou. Não consigo deixar de me surpreender com isso.

Macartney conta em seu artigo que Omar lutara como guerrilheiro na vitória contra a URSS, uma guerra que deixou o país devastado e ele sem um olho. Em 1994, furioso com a notícia do rapto de duas adolescentes por um comandante mujahidine, Omar, seguido por algumas dezenas de estudantes de islamismo — Taleban significa estudantes, a autora do artigo esclarece —, libertou-as, conseguindo também armas e munições. Aí começa sua trajetória. Quase ao acaso. Toma cidade atrás de cidade, com apoio popular, torna-se o chefe do Afeganistão. Sim, existiam as condições históricas para o aparecimento de um líder com suas características, mas não fosse sua ação individual, que começou com um rapto de moças, tudo seria diferente. No artigo, diz que quem o conheceu descrevia-o como uma figura parecida com a dos primeiros cristãos, barba comprida, vestes simples, um asceta, sem o globo do olho direito. Descrito como os Essênios, uma das correntes do judaísmo da época de Jesus. Foi derrotado pelo Império, assim como Jesus. Que também apareceu quase por acaso. Falemos dele.

Um desconhecido
Jesus, talvez o mais imaterial dos homens citados há pouco. Os livros que contam sua vida, os Evangelhos (ou As boas novas), foram escritos décadas depois de sua morte, histórias que vinham segundo as tradições orais de diversas regiões por pessoas que não o conheceram, ao menos não dão evidências disso. O Evangelho de São Marcos é considerado o mais antigo, datam-no em algo perto de 70 d.C., ano em que Jerusalém foi destruída, ou pela primeira vez destruída. Sobre isso, acho por bem citar a fonte:

Marcos é convencionalmente datado de cerca de 70 D.C., Mateus e Lucas um pouco depois, se a prioridade de Marcos for aceita; João é, por convenção, ainda mais tardio. Tudo isso não passa de conjectura e depende em ampla medida de evidência interna. O consenso foi questionado em “Reading the New Testament”, de J. A. T. Robinson, que defende datas muito anteriores — 45-60 para Marcos, 40-60 para Mateus, 57-60 para Lucas, 40-65 para João, 57-62 para Atos. Os argumentos são muito complexos e não devem nos preocupar aqui, exceto talvez na medida em que sugiram um hiato temporal mais curto entre as tradições oral e escrita do que o geralmente aceito (Em Guia literário da Bíblia, Org. Robert Alter e Frank Kermode, Editora Unesp, pág. 412 — trad. Raul Fiker).

Se considerarmos o ano de 70, o texto de São Marcos é também posterior às perseguições promovidas por Nero. Nero, que sucedeu Cláudio, Calígula e Tibério, os quatro a formar um quarteto de doer. Cristãos jogados aos leões e outras feras treinadas para gostar de carne de gente, dilacerá-las para delírio dos espectadores sedentos de violência, cristãos presos a postes, encharcados com alcatrão, nos quais se ateava fogo, tochas humanas que se contorciam para iluminar os festejos romanos. Mal sabia ele, e como ia saber em cima de tão pouca idade e de tanta demência, que a bravura, coragem, resignação com que os cristãos enfrentaram aquelas barbaridades talvez tenham sido tão importantes para solidificação da religião quanto o trabalho de Paulo. Essa bravura, coragem, resignação era simplesmente fé, e a fé se contrapõe ao medo, é quase seu contrário. Não houvesse Nero, que culpou os cristãos — descritos num programa do History Channel como uns esquisitões que acreditavam num sujeito que fora crucificado a mando de um oficial romano — pelo grande incêndio que destruiu uma parte da cidade, é possível que o cristianismo tivesse tido outros contornos. Os cristãos venceram por fim, e Roma, por séculos, foi apresentada com o pior e mais imoral dos mundos.

Na filosofia
O último Evangelho, de João, difere dos outros três relatos, que o antecederam na linha temporal. Esse é o hiato citado por Frank Karmode, dois parágrafos atrás. Não se pode afirmar que tudo o que Jesus diz, contado nos Evangelhos, fosse inédito. Algumas coisas, como a importância de ser virtuoso, já estavam em Sócrates, e até mesmo em Zaratrusta, que vivera 1.000 anos antes. Não apenas isso, se excetuarmos a religiosidade de seus ditos e os dogmas sobre os quais a religião cristã se firmou — santíssima trindade, vida eterna, etc. —, encontraremos nos gregos filosofias de vida coincidentes com a visão de mundo de Jesus. Sua resignação, seu voto de pobreza, seu apoliticismo estão nos estoicos. E os milagres? Ora, milagres acontecem todos os dias.

Apanho na estante Os manuscritos do Mar Morto, do Edmond Wilson. Em meados do século passado, foram encontrados numas cavernas à beira do Mar Morto uns pergaminhos que datam I a.C., aproximadamente. Entre outros temas, tratam dos essênios, uma das vertentes do judaísmo, à época. Eram ascetas, viviam da maneira que Jesus nos é apresentado, especula-se até que fosse um deles. Suas vestes se assemelham às que usavam, e sua maneira de viver tinha o mesmo desprendimento e simplicidade dos primeiros cristãos. Pode-se dizer, então, que existiam já as condições de pensamento que o levaram a ser como foi. Nos textos, quando se referem ao mal, acredita-se que estejam se referindo a Roma. Uma nova moral nascia, não tanto por sua iniciativa, mas pela de Paulo, que a espalhou pela exuberância da capital do Império. Lá, encontrou consumidores para seu produto, os excluídos dos deuses lares romanos. A faísca que acende o mato seco e que põe a floresta em chamas. Se no antigo testamento a salvação é pela espada, o novo traz o amor. Porque a espada já não serve, o inimigo é Roma. Havia outra hipótese que não a de dar a outra face? A de encontrar no amor, a salvação? A história provou que não. Sem alternativas, melhor trocar a espada pela cortesia, o inimigo é forte demais para ser sobrepujado. Além de tudo ganha-se um pai, um paraíso, onde todos os homens são iguais. Ao dar a outra face, o recado é: atenha-se à vida. Essa chave da moral cristã está descrita no Sermão da Montanha (Mateus 5 a 7). Bem aventurados os mansos (ou humildes), porque herdarão a terra. No texto, nesse trecho, Jesus retoma os dez mandamentos, e, segundo ele mesmo, os aperfeiçoa. Lá que aparece o Pai nosso. 

Where prayer has been valid. And prayer is more
Than an order of words the conscious occupation
Of the praying mind, or the sound of the voice praying.
(T. S. Eliot em Little Gidding)

Antes de tecer considerações sobre o Pai nosso, uma questão devo enfrentar sobre a sequência de palavras que deve ser a mais repetida na história da humanidade, uma sequência que se mantém há gerações a perder de vista. Talvez a mais poderosa herança cultural de todas, e de todos os tempos. Como dizem os versos acima, as orações são mais que as palavras. O efeito que a oração tinha em latim para o rezador, que não sabia latim, não deve ser muito diferente do efeito das rezas na língua mãe. Mas eu queria aqui ficar na sequência de palavras, mesmo. E aí a questão. O que eu posso dizer do Pai nosso que já não tenha sido dito ou pensado nestes séculos todos? Será, então, que não será apenas um exercício do óbvio? Mais que um risco, é uma certeza que incorro ou em erro, ou em um em repetir de uma mesma tese já gasta. O que se espera de um ensaio é que ele traga frescor a assuntos conhecidos, que seja um recorte pessoal do autor, testemunha de uma época, e que ele corra riscos. Neste mundo controlado, em que as aventuras são todas planejadas para quase zerar o risco, o ensaio também sucumbiu a isso. E o ensaio é uma aventura do espírito. Vou correr o risco pois é ele que dá o norte deste escrito. Como homem do meu tempo, é um risco calculado. Isto posto, continuo.

O Pai nosso, e também o belo Sermão da Montanha, são uma ode ao fracasso. Ele é compatível com o mundo de hoje, sob influência do Império Americano? Por que o maior legado dos Estados Unidos é sobretudo moral. Mais do que a formidável democracia americana iniciada há mais de dois séculos, é a cultura do vencedor, do homem comum vencedor.

E será que o Pai nosso ainda nos serve nesses tempos de abundância e de sucesso? O forte, hoje, é o indivíduo. Sou eu. É você. A Roma de hoje, os EUA, têm como um de pilares a ação individual, de todos, então não é um obstáculo — basta ver o número de imigrantes que fizeram fortuna no país. E com a tecnologia, o indivíduo tem um poder nunca antes imaginado na história. Basta imaginar o que podemos fazer diante dessa ferramenta que é o computador, uma alavanca impressionante para nossas ações. Um homem é uma empresa. Poucos homens derrubam as torres gêmeas.

Outro significado
Podem haver muitas leituras da oração, a mais corrente é que ela ensina alguém a ter paz consigo mesmo. Perdoar, satisfazer-se com o pão de cada dia, não cair na tentação, são modos de ficarmos em paz. Porém o que busco aqui é outro significado, um mais exterior, que creio também existir, por isso que digo que o Pai nosso parece servir apenas para alguém que não poderá vencer — se existe vitória possível é outra história. Primeiro tem o chefe, depois Pão nosso de cada dia dai-nos hoje, hoje, não amanhã, nem depois de amanhã. Sobrevivi hoje, já é uma vitória. Como nos Alcoólicos Anônimos. Perdoai uns aos outros, não seria outra vez a influência do mais forte, do império romano? Ou você mata, ou você perdoa, não há alternativas. E perdoar, além da já dita paz interna, é garantir-se. Fora que aquele que devota a vida a uma vingança é o prejudicado, não o sujeito objeto da vingança, ainda que bem-sucedida. Se bem que devotar a vida a uma vingança é dar um sentido a ela, é não é disso que estamos atrás? Depois, para que fiquemos firmes ante a tentação. Tentação pode significar muitas coisas. O desejo da conquista, na guerra ou no amor. Ou simplesmente o desejo, essa outra coisa que nos definiu e sobre a qual não me aprofundo, leiam Freud, ou outros desses sujeitos que pensaram o funcionamento do homem. Sublimar o desejo é não cair na tentação, é a manutenção da convivência. Tentação pode significar inovações. Ceder aos impulsos. Ousar. Rebelar-se. Tudo aquilo que era perigoso, à época. Acaba com livrai-nos de todo mal. Porque todo mal é tudo aquilo que faz a espécie acabar. Para os conquistados, para os escravos, o mal era Roma.

A Roma que no século 4 se tornaria cristã, ou melhor, o estado romano adotaria a religião, mudando, inclusive, seu símbolo. Era o peixe, tornou-se a cruz. A cruz, com um homem em sofrimento é, de fato, um símbolo muito mais apelativo, emocional, vende mais. Talvez essa mudança de símbolo, a incorporação da religião pelo establishment, seja o fim de um primeiro ciclo religioso, dos cristão Paulinos, ou seguidores da doutrina de São Paulo, cristãos herdeiros dos essênios. Voto de pobreza, pureza na alma, vencidos. Ascetas, como fora Jesus. O segundo ciclo começa com os Apostólicos Católicos Romanos, Papas, Estado, cruz, santos.

Sobre tentações, me vem à cabeça o filme A última tentação de Cristo, do diretor Martin Scorcese, baseado no livro de Nikos Kazantzákis, que traz o demônio em forma de uma menina. A tentação para Jesus, a maior de todas e à qual ele sucumbiria, teria sido a de levar uma vida normal. Casar, ter filhos, uma função de carpinteiro, essas coisas. Em O fio da navalha, W. Somerset Maugham apresenta uma outra visão. A certa altura, num diálogo entre o narrador, que seria o próprio Maugham, e Isabel, ele invoca a figura de Jesus. Diz que depois de todas tentações, o diabo se achega e sussurra-lhe a tentação de sacrificar-se pela humanidade, Eu só queria dizer que a abnegação é uma paixão tão avassaladora que, a seu lado, até mesmo a luxúria e a fome pareceram insignificantes. Impele a vítima à destruição, na mais alta afirmação de sua personalidade. O objeto não tem importância; pode ser ou não merecedor do sacrifício. Nenhum vinho é tão intoxicante, nenhum amor é tão destruidor, nenhum vício é tão subjugante. Quando um homem se sacrifica, ele é maior que deus. Pois como poderia deus, infinito e onipotente, sacrificar-se? Quando muito pode sacrificar seu filho unigênito (tradução de Lígia Junqueira Smith). Reflexões formidáveis, de escritores. Além da palavra, da técnica, da história, o que move os escritores é o olhar de estranhamento com que enxergam o mundo. E o mundo Ocidental foi definido pela religião cristã. E pelos escritores.

Domar a ferocidade
Na filosofia da USP, no único ano em que frequentei o curso, estudamos Rosseau. O indefectível bom selvagem. Simplificando, o homem seria bom, o meio que o corrompe. O que penso é o contrário, é o meio que faz o homem ser bom porque sendo bom ele sobrevive. Faça o bem, tenha caráter, seja uma pessoa íntegra, virtuosa, e assim você é um verdadeiro homem, e você é feliz, diriam os gregos. Faça o bem, seja bondoso, Jesus diz, e assim você recebe o céu. Faça o bem, tenha bom caráter, seja virtuoso, e assim você sobrevive. Não será esta, filhas, a máxima da espécie humana, independentemente das crenças por ela inventadas para obedecer? Para domar a ferocidade que a define. Para que possamos viver em grupo. Essa questão é o resumo do que agora escrevo.

O homem pensa-se e deixa a credulidade pela ciência, ou pela comprovação dos fatos. Cientistas, pensadores práticos e especialistas, tão preponderantes nesse mundo cada vez mais São Tomé, e que, paradoxalmente, vai se tornando cada vez mais místico. Vai virando um São Tomé das Letras. Galileu, Newton, e, principalmente, Darwin. Depois viria Freud e Einstein. Darwin veio com a seleção natural. Foi dele o primeiro grande golpe desferido em deus. Ele dizer que o homem, que já tinha perdido o lugar central no universo, era mero descendente dos macacos. Veio dizer os seres vivos são sobreviventes. Que desenvolvem mutações que os extinguem ou que os selecionam. A mariposa preta. E quando o ambiente mudou, ela, a mais frágil, virou a mais forte. Darwin deu outro sentido à compreensão do homem sobre si mesmo. Se Freud mirava o indivíduo e seus motores internos, Darwin mexeu com a forma da espécie se compreender. Um furacão na sociedade humana. O calendário que usamos é antes de Cristo e depois de Cristo. Fosse para escolher um calendário moderno, penso que seria antes de Darwin e depois de Darwin. Um foi um homem místico, outro, um cientista. Três séculos até Roma se tornar cristã, deixar de fazer de cristãos comida de leões, ou tochas vivas, algo que os mesmos cristãos fariam mil anos depois, na Inquisição. Darwin morreu em 1882, mal passou um século.

Vida, trata-se de vida. Darwin era botânico. Acredito em Darwin. Sou um homem do meu tempo. Herdeiro dos pensamentos pré-gregos, do antigo testamento, do homem grego e de sua visão de mundo, da força de Roma, dos valores cristãos, dos pensadores cristãos e a instituição do livre arbítrio, dos mouros que estiveram séculos na península Ibérica, dos meus pais, de meu avô mineiro, meu avô libanês, minhas avós filhas de italianos, da maior revolução que já se viu no mundo que foi a invenção de Gutenberg, herdeiro do asfalto, das vacinas, do carro, da privada, do voto, de tantos homens que morreram em guerras, tantos homens que escreveram tantos livros e pensaram tantos pensamentos e construíram tantas pontes e domaram a natureza e inventaram a TV a cabo e ar-condicionado e o trem que chega à estação às 15h03 e parte às 15h09, e se atrasar eu reclamo, e se eu perder o trem, azar meu. A ciência me guia, ainda que exista aí um tanto de religiosidade. Porque o mistério que está por trás de um chip de computador, de uma transmissão via satélite vinda lá de uma cidadezinha do Japão, de pegar o celular e falar com vocês em outro país, para mim, é tão grande quando o mistério abstrato das religiões. Algo mais que humano. Supra-humano.

Procuro num arquivo em que por vezes escrevo alguns acontecimentos do cotidiano, arquivo que me ajuda a pegar no tranco quando não consigo escrever. Digito a palavra sensação e vejo se me leva aonde quero ir — por que foi isso que aconteceu, uma sensação, forte, física mesmo, que imagino ter registrado —, lugar este que sou eu, um outro eu, um eu de outro dia, e através dos dedos daquele eu, num tempo que já passou. Puxa quantas sensações eu tive. Achei o que procurava. 3 de fevereiro de 1995:

Uma outra questão vem ocupando meu tempo, desde antes das férias. Um dia, de repente, me veio a sensação de que toda a raça humana é uma só coisa. Me lembrei da epigrafe do Por quem os sinos dobram e, primeira vez, entendi de fato. Será que os precursores das religiões, ou de algumas delas, tiveram essa mesma sensação quando afirmaram que todos somos irmãos?

A epígrafe do livro de Hemingway, dos que mais gostei dos tantos que dele li, é um poema de John Donne. A enciclopédia nos apresenta, viveu entre 1572-1631, entre outras coisas, entre outros feitos contidos no traço que separa as duas datas, uma vida inteira num sinal banal, foi um padre e poeta inglês, considerado o principal representativo da poesia metafísica. No original, a certa altura diz, any mans death diminushes me, because I am involved in Mankinde; and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee. Quantas vezes não repeti alto, para mim mesmo, e não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.

Agora digito as palavras uma coisa só. O dia é 6 de fevereiro de 2003, dois dias depois que o Henrique, tio de vocês, e tio Quiquimorreu, Não acredito em sinais, nem em destino, nem em nada, e sim, acho que tudo é um grande acaso, e sim, acho que a vida, de alguma maneira que sou incapaz de entender, é uma coisa só. Escrevi no calor da emoção. Termina assim:

E hoje acordamos. A vida continua. A Lu dorme um pouco agora, daqui a pouco leva a Manu ao médico. A Lelê começou as aulas. A engrenagem do mundo continua. Un giorno c’é, n’altro non c’é pio. Não sei por que a frase em italiano, mas assim ela se forma em minha cabeça, e se formou naquela madrugada em claro, dois caixões e um sentimento de que tudo não passa de um sonho, enchendo a igreja em que me casei.

Carlos Eduardo de Magalhaes

Nasceu em São Paulo (SP), em 1967. É autor de nove livros, dentre os quais Mera fotografia (1998), Os jacarés (2001), O primeiro inimigo (2005), Dora (2005) e Trova (2013). É editor da Grua Livros.

Rascunho