Ave Maria é um breve e surpreendente romance. Construído com inteligência, lucidez e delicadeza, conta a história de uma família iraquiana, ao longo da segunda metade do século 20 e dos primeiros anos do 21, de perspectivas diversas, tensionando assim as relações de diferentes gerações com uma ideia de casa e uma ideia de país. A sensação ao fim da leitura é de desconcerto e tristeza, porque o livro parece comunicar um estado geral das coisas quase sem saída.
Dos cinco capítulos, dois têm o mesmo título: Viver no passado. São narrados em primeira pessoa e encaminhados pelo olhar de Yussef, um senhor aposentado de setenta anos que vive em Bagdá com uma jovem parente, Maha, e o seu marido. Da numerosa família, os irmãos de Yussef ou morreram ou emigraram. É o mesmo destino dos seus amigos. Ele tem a convicção de não querer partir, embora recorrentemente as irmãs que vivem no exterior lhe digam que deve ir embora: aquela é a sua casa, onde plantou sua tamareiras e cultiva suas lembranças.
A parte da história que conhecemos com os seus olhos relata uma discussão com a jovem parente, Maha, apresenta uma das irmãs, Hinna, que morou com ele por muitos anos naquela casa, e registra um encontro com um velho amigo. O último dia que forma o presente da narrativa é o aniversário de sete anos da morte de Hinna, e com os olhos de Yussef acompanhamos também a sua preparação para ir à missa. Ele não é um homem religioso, mas a irmã era e, por isso, todo ano, no aniversário de morte dela, ele vai à igreja.
Entre os dois capítulos conduzidos pelo olhar de Yussef, há um outro, Fotografias, narrado com a terceira pessoa e que parte das fotos penduradas na parede da casa do personagem para relatar a história da sua família. O narrador descreve o tempo imobilizado pelas imagens para depois se movimentar pelos anos e relatar a sorte de cada um dos irmãos de Yussef, até o ponto que sobram apenas ele e Hinna na casa, e depois ele sozinho.
Em seguida, conhecemos a história pelo olhar de Maha. Sua família foi obrigada a migrar por causa de perseguições à minoria cristã. Depois de um período em que vivem temporariamente com parentes, ao constatar que não seria possível voltar para casa, eles se mudam para a província de Ankawa. É então que o núcleo familiar se separa: para dar continuidade aos estudos, a jovem volta a Bagdá, onde, anos depois, ocorre um atentado nas proximidades de sua casa e ela perde o filho que gestava na barriga. É por isso que ela e o marido vão morar na casa de Yussef.
A discussão entre os dois que abre o romance é encerrada com uma sentença de Maha direcionada a Yussef: “você vive no passado”. Diferentemente do tio que quer ficar, Maha quer ir embora o quanto antes; espera apenas se formar em medicina, para ter um diploma e não ter que começar tudo de novo, e então encontrar um lugar em que não seja minoria, onde possa não se sentir diferente dos outros a todo momento. Ela acredita que o tio não vê que não há esperanças para ela naquele lugar: no Iraque ela não teria como ser mais que um objeto de disputas políticas, sempre sujeita a ser perseguida por ser minoria. Já Yussef tenta argumentar que tudo é muito intrincado, que as relações de poder vão além das perseguições religiosas, é um quadro complexo. Além do mais, ele é um velho, viver no passado é menos uma recusa do presente do que se sentir muito ligado à vida que tem às suas costas.
Passagem do tempo
O confronto de duas perspectivas coloca em questão duas relações diferentes com a vida, que por um lado estão ligadas à passagem do tempo. Yussef, com os seus setenta anos e por ter vivido as alegrias e as tristezas de uma existência inteira, é levado através dos seus devaneios ao passado. Enquanto a fantasia de Maha, em sua juventude, se projeta adiante com imagens de um futuro mais próspero e tranquilo.
Se a vida de Yussef, em sua velhice, está registrada nas fotografias de sua casa; Maha quer acreditar que a vida verdadeira ainda está para acontecer, e assim ela finalmente poderia encontrar um lugar para si: uma nova casa, já que a sua foi violada pela violência e desde então não pôde ser substituída por nada que fosse estável e forte o suficiente. Yussef, com suas lembranças, se sente parte de um lugar e adverte a sobrinha que a vida no exterior não seria fácil: fora do seu país, ela seria estrangeira. Para Maha, entretanto, é intolerável se sentir estrangeira no seu próprio país.
Por outro lado, porém, a naturalidade de amadurecer e envelhecer sofre interferências diretas do modo como a História permite a cada geração assimilar a passagem do tempo. A geração de Yussef, que nasceu no começo dos anos 1940, pôde chegar à juventude mais ou menos protegida. Ele viu alguns de seus pares sendo perseguidos, viu outros que foram embora: mas ainda assim foi possível construir uma vida. Já a de Maha desde muito cedo teve que se acostumar com o som das rajadas de tiro e com ter de fazer as malas e deixar tudo para trás em busca de um pouco de proteção. Como, nessas circunstâncias, seria possível tornar-se guardião de memórias?
O último dos cinco capítulos é narrado com a terceira pessoa e é ambientado na missa, frequentada toda semana por Maha e naquele domingo específico por Yussef que lembrava o sétimo aniversário de morte da irmã. É aqui que o romance se mostra também surpreendente, ao narrar, com o mesmo tom pacato dos capítulos anteriores, a violência não apenas como cicatriz ou como propulsora de partidas no passado, mas como algo que atravessa irremediavelmente a vida no presente.
A inteligência, a lucidez e a delicadeza na construção do romance transparecem nesse jeito de comprimir as tensões da história contemporânea do Iraque na ternura e nos dissensos de uma família. Também há cenas e imagens que expressam com precisão as marcas que a imigração deixa em uma família, para aqueles que ficam e aqueles que partem, como a descrição de um cômodo na casa de Yussef convertido em uma espécie de depósito onde são guardados os pertences dos parentes que partiram:
[…] com o passar do tempo, esse quarto, no final dos anos 1990 e depois da invasão de 2003, transformou-se em um depósito. Todos os parentes que decidiram emigrar vendiam o que conseguiam, levando apenas o que era fácil de carregar, deixando para trás malas e pertences pessoais nesse recinto, com a esperança de serem enviados para eles no futuro. Mas os bens foram formando uma pilha, acumulando poeira, esperando para serem levados para longe de Bagdá.
Uma família que se forma e se separa, em parte porque os filhos crescem e encontram os próprios caminhos, mas em parte também porque a disputa de poder, as invasões de outros países e a violência criam condições inóspitas à vida no único lugar do mundo onde uma pessoa não é uma estrangeira. Este é o cerne desse livro construído sobretudo com percepções opostas do significado do passar do tempo, que interferem também no sentido de habitar: uma casa pode ter raízes no passado, mas se mostra incompatível com a sensação de impossibilidade de futuro.