Os gestos diminutos

Em "O que ela sussurra", Noemi Jaffe dá voz à personagem histórica Nadejda Mandelstam para criar uma narrativa calcada em lembranças e no poder da palavra
Noemi Jaffe, autora de O que ela sussurra
01/07/2020

A imagem da capa de O que ela sussurra é uma fragmento das pinturas que compõem o trabalho intitulado O mar entre nós, de Laura Gorski. Abismos análogos parecem movimentar o romance de Noemi Jaffe, a turbulência de águas feitas de saudades, memórias e palavras animam o silêncio da solidão de uma narradora que fala de si ao relatar a vida em comum com Óssip Mandelstam, célebre poeta russo perseguido, torturado e, de certo modo, morto pelo stalinismo.

Embora a leitura do romance possa ser amparada por dados concretos referentes à obra e à vida do poeta, prefiro preservar a autonomia de O que ela sussurra. Até porque, para além dos aspectos biográficos e históricos, o livro é algo como um delicado ensaio sobre a recordação, o silêncio, a gentileza e a incongruência categórica entre poesia e despotismo. Não há um enredo na acepção convencional, ainda que sobrem acontecimentos de peso dramático. Os motores da narrativa são as lembranças e o poder da palavra, sobretudo num regime petrificado pela concordância domesticada com o poder instaurado pelo grito.

O ritmo errático da memória delineia o texto, que é conduzido pela voz de Nadejda Mandelstam, esposa de Óssip, e encerrado com a perspectiva de Anna Akhmátova, poeta russa e amiga do casal. Nadejda inicia a narração se endereçando ao parceiro e introduzindo o núcleo central do romance: o seu compromisso de guardar a presença do marido por meio do ritual diário de sussurrar os versos dele, destruídos pelo regime soviético, ou nunca escritos por causa da perseguição que o poeta começou a sofrer na década de 1930. A narrativa segue com o recorte de três anos da vida do casal — 1931, 1935 e 1937 — e acompanha a excepcionalidade transformada em rotina: fugas, torturas, tentativas de suicídio, internações, exílios. Sem cronologia precisa, a narradora avança e retrocede de modo que o eu que recorda se mistura, por vezes, com o eu recordado, aproximação rompida nos pontos em que Nadejda se diz como uma velha um tanto resignada, em contraponto com o que chama de “alegria absurda” dos anos de perseguição. Sim, havia o temor, o desconforto, a paranoia, mas havia também a capacidade de viver, de sentir a vida ao lado de seu grande parceiro, por quem renunciou o arrimo garantido pelo ordinário e até mesmo o ofício de pintora.

O amor devoto de Nadejda por Óssip é colocado pela outra narradora do romance como um sacrifício narcisista, e o leitor mesmo pode se desconcertar com o tanto de renúncia que a perseguição do poeta exigiu dela, e com o tamanho do compromisso de sussurrar e memorizar o legado do marido. Aí reside uma riqueza do romance: a expressão de um pacto. A narradora coloca o amor e a entrega como escolhas, nunca como sacrifício. Houve dificuldades materiais, tristezas, dores, privações, traições, mas havia também a possibilidade de pertencimento, até para ela que fora exilada.

Mesmo para o olhar externo que assume a narração no desfecho e nomeia a devoção com as palavras “sacrifício narcisista” é necessário fazer um contraponto: Nadejda era altiva em sua submissão.  Como ela entregou a vida ao marido, Óssip também precisava dela: “Ele precisava de alguém que o protegesse de si mesmo e eu, acho que eu precisava de alguém que precisasse da minha proteção. Até da minha chatice”. Pacto, então, porque a dinâmica entre os dois era regida por particularidades compreensíveis apenas para eles, porque havia o desejo como combustível para sobreviver às infinitas agruras e infelicidades, porque toda a gama de dor narrada pode caber na seguinte síntese: “Vivi, é isso, foi assim”.

As partes da narrativa que se detêm na vida em comum dos Mandelstam delineia a rara cumplicidade entre dois: ele cria os poemas falando, ela os escreve. É essa a matriz para os longevos sussurros. A prática, aliás, é iniciada no primeiro período em que dois passam separados, ele preso e ela trabalhando como costureira. A memorização conta, a princípio, com o amparo do som da máquina de costura, uma espécie de metrônomo para as palavras que mantêm o amado ausente por perto.

A ruidosa vulgaridade
Junto à dimensão do pacto e à potência das lembranças em preencher o silêncio da ausência, a prática dos sussurros dos versos também consiste numa marcação de posição política ou, nas palavras da narradora, uma subversão silenciosa. A rebeldia poderia ser pensada em dois ângulos: o desafio à imposição de mudez e o contraste de tom.

O primeiro deles é a propagação clandestina do que o poder despótico gostaria de condenar ao completo apagamento. Óssip ousou rir da tirania e, como regimes totalitários não suportam o riso, seu corpo, que não teve direito sequer a uma lápide, deveria ser nulificado. Nadejda não aceita o vazo de existência decretado pela ditadura. Óssip na sua imaterialidade reside nela e, por meio dos sussurros, ela faz com que ele continue existindo, como marido e como poeta.

O segundo ângulo consiste na forma que a conservação de presença se dá: o volume baixo. Regimes totalitários, sejam de direita ou de esquerda, se assemelham em alguns pontos: sempre personalistas, avessos a paradoxos e pautados pelo grito. Não há modo de fazer com que todos se dobrem se não for por meio do ruído estridente da ordem. A vaidade de quem exige respeito se afirma pelo decreto da literalidade, isto é, tudo deve ser agarrado a um suposto sentido e o que foge dele é invariavelmente inimigo. Quando tudo é brando e pretensamente transparente, o que há de mais subversivo que o sussurro de um poema?

O compromisso de lembrar em tom baixo é uma afronta a um regime que relegava qualquer voz opositora ao expurgo. E é também uma afirmação da potência inigualável da arte: por não servir para nada, ela também não serve a ninguém. A poesia é o campo das nuances, da ambivalência, da melodia e dos respiros que cada palavra comporta, o que a torna radicalmente incongruente com a vulgaridade dos sentidos prontos, que fazem de qualquer vocábulo estéril. Nas palavras da narradora, os totalitários odeiam e temem os poetas “porque conhecem o perigo dos mínimos deslocamentos”.

As grandes virtudes
Natalia Ginzburg diferencia as grandes das pequenas virtudes da seguinte forma: “as pequenas virtudes provêm igualmente do fundo do nosso instinto, de um instinto de defesa: mas nelas a razão fala, sentencia, disserta, como um brilhante advogado de integridade pessoal. As grandes virtudes jorram de um instinto em que a razão não fala (…) e o melhor de nós está nesse instinto mudo”. Como os Mandelstam, a escritora italiana também foi uma perseguida política e condenada ao exílio. Talvez a experiência comum de ter a existência proibida torne possível ler o peso que a narradora de O que ela sussurra dá à gentileza com o amparo das virtudes de Natalia.

“Não era uma forma de masoquismo nem a prova de uma amizade fiel, que arrisca a própria vida para ficar junto de nós. Não. Era só a vontade de estar perto, sem motivo claro. Isso e pronto”, escreve Nadejda sobre a presença de Anna nos momentos que antecederam uma das prisões de Óssip. O gesto, como o sussurro, não tem motivação robusta que faça frente ao risco. É mais uma forma de não ceder à tentação da adequação, sempre premiada com migalhas. Trata-se de uma conduta movida pela “gentileza sem alarde” como recurso até para permanecer vivo e desperto quando a ordem generalizada é de manter a cabeça baixa e só levantá-la para denunciar quem ousou não renunciar da restrita autonomia possível para ganhar a coesão de um grupo indistinto.

Quando a indiferença com o horror é a lei, o acolhimento e os gestos ganham um valor único. Eles são como uma afirmação da vida, incompatível com a aridez da subserviência e das vaidades esmagadoras. Incompatível e ainda assim resistente. O que ela sussurra reconstrói a coragem expressa na delicadeza de manter a memória acesa e nos lembra de que tudo que é grande, cedo ou tarde, vem abaixo; o que tem potência para restar é o miúdo, o menos que nada do desejo que pode fazer um corpo caído se reerguer ou um morto sobreviver nas palavras.

O que ela sussurra
Noemi Jaffe
Companhia das Letras
155 págs.
Noemi Jaffe
Nasceu em São Paulo (SP), em 1962. Doutora em Literatura Brasileira pela USP, é crítica literária e autora de O livro dos começos (2016), A verdadeira história do alfabeto (2012), Írisz: as orquídeas (2015) e Não está mais aqui quem falou (2017), entre outros. 
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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