O triunfo da herdeira

Um olhar sobre a consistente — e tradicional — poesia da norte-americana Louise Glück, a mais recente vencedora do Prêmio Nobel de Literatura
Ilustração: Louise Glück por Fabio Abreu
01/11/2020

Numa entrevista concedida pouco depois de saber que recebera o Nobel de Literatura, Louise Glück contou a respeito da incredulidade que sentiu diante da notícia. Além da tradicional desconfiança de que a ligação da Academia Sueca, logo cedo, poderia ser um trote, ela se disse surpresa pelo fato de ser estadunidense e branca. Seus conterrâneos brancos, ela falou, já haviam recebido todos os prêmios de que precisavam e, além do mais, os Estados Unidos, enquanto nação, vinham desempenhando um papel não muito edificante, para o planeta, nos últimos anos.

Quanto ao Nobel ter desenvolvido, com razão, o hábito de girar mais pelo planeta, a surpresa de Glück faz sentido, afinal Bob Dylan havia sido premiado há pouco, em 2016. Quanto ao resto da surpresa que Glück sentiu, não dá para concordar. Nos Estados Unidos de Trump, nada melhor do que premiar uma mulher que escreve poemas, prestigiando, de quebra, a poesia como um todo. Como escreveu o poeta Stanley Kunitz, nos tempos atuais, a mera teimosia em seguir escrevendo poemas já é, em si, um ato político.

Como a própria poeta, eu jamais teria previsto que ela receberia o prêmio, e pelos mesmos motivos. E por mais um, sobre o qual discorrerei adiante. Mas defendo que, se levarmos em conta apenas a obra, o prêmio é absolutamente merecido. Vamos lá: os Estados Unidos, apesar de tudo, são uma das poucas nações contemporâneas em que ainda se publica muita poesia e em que os poetas, mesmo que (como em toda parte) pouco lidos, seguem merecedores de prestígio. Isso faz com que existam muitos “o melhor poeta” no país. Assim, tanto quanto me parece justo que Louise Glück tenha recebido o Nobel agora, me é incompreensível que William Carlos Williams, Wallace Stevens, W. S. Merwin, Donald Hall, Allen Ginsberg, Robert Creeley, Denise Levertov, Robert Lowell, Kenneth Rexroth, Robinson Jeffers e William Auden, apenas para citar alguns nomes, não o tenham recebido. Isso sem falar em Lawrence Ferlinghetti[1], que segue produtivo aos 101 anos… E vejam que só mencionei poetas que tiveram vidas e carreiras bastante longas, com pleno reconhecimento, o que teria dado tempo de sobra para a indicação a um prêmio que só é dado a quem está vivo.

E não citei os poetas acima por acaso. Além da qualidade do que escreveram, eles têm algo que Louise Glück não tem. São poetas que abriram caminhos, formaram escolas e geraram discípulos. Glück é muito mais uma discípula do que uma mestra. Ainda que uma discípula brilhante, é inegável. Mas ao ver nos poemas dela ecos de Lowell, de Williams, de Levertov, que influenciaram tanta gente, fica no ar, nesse sentido, a questão do merecimento. Ou, por outra: por que ela e não eles?

Foco na obra
Podemos deixar tudo isso de lado e olhar apenas para a obra. E aí a conclusão será inevitável: Louise Glück é uma grande poeta, com uma obra extensa e que manteve um alto nível desde a estreia em livro, em 1968, até hoje. Um Nobel para ela, assim, nada teria de surpreendente ou injusto. E, de fato, Glück tem poemas belíssimos. Mas o que, exatamente, quero dizer, quando elogio sua obra? Vamos partir de suas marcas registradas: no dia em que o prêmio foi anunciado, toda a mídia (eu, inclusive) escreveu que a poesia de Louise Glück era límpida, intimista, melancólica, por vezes, confessional, e que fazia o uso, eventual, de personagens gregos.

Por límpida, quero dizer que Glück, dentro da melhor tradição norte-americana, uma tradição que passa por Emily Dickinson e da qual William Carlos Williams talvez tenha sido o maior herdeiro, detesta barroquismos, acrobacias verbais, surrealismos, duplos sentidos ou sentidos ocultos. Os versos escritos dentro dessa linha contam histórias, e procuram contá-las com clareza. Como Glück magistralmente fez em A criança afogada, de 1980, o qual reproduzo, em tradução, a seguir:[2]

Veja, eles não têm discernimento.
De modo que é natural que eles se afoguem,
primeiro, o gelo os engolindo e,
depois, por todo o inverno, seus cachecóis de lã
flutuando atrás deles enquanto afundam
até que finalmente se acalmam.
E o lago os levanta com seus múltiplos e escuros braços.

Mas a morte pode chegar para eles de um jeito diferente,
tão perto do começo.
Como se eles tivessem sido sempre
cegos e leves. Por isso
o resto é sonho, a luminária,
o tecido branco de boa qualidade que cobre a mesa,
e seus corpos.

E ainda assim eles ouvem os nomes que foram seus
como iscas escorregando sobre o lago:
O que vocês estão esperando
venham pra casa, venham pra casa, perdidos
nas águas, azuis e para sempre.

Confessionalismo
Quando me refiro ao aspecto confessional da poesia de Louise Glück, estou falando de outro traço muito presente em boa parte da poesia norte-americana do século 20. Segundo o A poet’s glossary (2014), de Edward Hirsch, a poesia confessional, inaugurada por Robert Lowell no livro Life sudies, de 1959, se caracterizava (o termo foi cunhado pelo crítico M. I. Rosenthal) por poemas em que se podia ler “os tipos mais escancarados de confissões, pela maneira como Lowell expunha suas humilhações pessoais, seu sofrimento e seus problemas psicológicos”.

O Confessionalismo se caracterizaria, assim, por uma hipertrofia da ideia do “eu” do poeta em sua poesia, levando a extremos uma tendência inaugurada, no início do século 19, pelo Romantismo, mas cujas origens Hirsch situa também nas obras de Jean-Jacques Rousseau, de Charles Baudelaire e, mais remotamente ainda, em Santo Agostinho e suas Confissões.

Entre os principais poetas dessa tendência nos Estados Unidos do século 20, estariam, além do próprio Lowell, Anne Sexton e Sylvia Plath, Randall Jarrell e John Berryman. Nos últimos anos, o melhor poeta a explorar essa linha, na minha opinião, foi Donald Hall, especialmente em poemas nos quais rememorava sua vida com a mulher, a também poeta Jane Kenyon, morta por um câncer fulminante.

Nos Estados Unidos de Trump, nada melhor do que premiar uma mulher que escreve poemas, prestigiando, de quebra, a poesia como um todo.

O fato é que, de meados do século 20 em diante, o confessionalismo se tornou tão forte que chega a se confundir com quase toda a produção poética recente dos Estados Unidos, superando em influência escolas como a New York School e sua poesia Pop, o Imagismo, o Objetivismo e até mesmo a poesia da Califórnia (que com Ferlinghetti e Rexroth “criou” os Beats; com Jeffers, “inventou” a poesia ecológica que tanto influenciaria o movimento Hippie; e que, com Rexroth e Gary Snyder, levou a contemplação e a solidão das montanhas e dos rios da poesia clássica chinesa e a concisão dos haikais japoneses para os Estados Unidos).

Um belo exemplo do confessionalismo na poesia de Louise Glück pode ser lido no poema A sombra do falcão, de 1975:

Abraçados na estrada
por alguma razão de que já não me lembro
e então nos separando, olhamos
para aquela forma ao longe — quão distante estava?
Nós olhávamos para cima, onde o falcão
pairava com sua presa; eu os observei
dando uma guinada na direção de West Hill, fundindo
suas sombras na poeira, na forma
dominadora de um predador —
Então eles desapareceram. E eu pensei:
uma única sombra. Como a que fizemos,
você me abraçando.

Poema intimista
Intimista não é a mesma coisa que confessional, ainda que, na poesia em geral, e na de Louise Glück em particular, sejam dois traços que com frequência se confundam. O poema intimista é o confessional que abre as mais secretas gavetas da vida do poeta. No caso de Glück, que cresceu num ambiente familiar atormentado pela morte precoce de sua irmã mais velha, o aspecto intimista começou por evocar a perda causada pela morte, e evoluiu ao longo do tempo para outras perdas, como as decorrentes do fim de um casamento. Vejamos um poema intimista do começo da carreira de Glück, chamado A criança doente e inspirado por uma tela do pintor renascentista holandês Gabriel Metsu que está exposta no Museu Nacional de Amsterdam:

Uma criancinha
está doente, e acordou.
É inverno, já passa de meia-noite
em Antuérpia. Acima de um berço de madeira,
as estrelas brilham.
E a criança
relaxa nos braços da mãe.
A mãe não dorme;
ela olha
fixamente para o esplendoroso museu.
Até a primavera a criança estará morta.
De modo que é errado, errado
segurá-la —
Deixem-na em paz,
sem memória, enquanto os outros despertam
aterrorizados, raspando a pintura
escura de suas faces.

Mitologia grega
Finalmente, há o uso que Louise Glück faz de personagens de Homero ou da mitologia grega. Numa das entrevistas que deu após o anúncio do Nobel, ela explicou que a mãe lia essas histórias para ela desde muito pequena, e que as tramas e as personagens ficaram entranhadas em seu imaginário como se fossem parte de sua própria realidade. Assim, nada mais natural, para ela, do que evocar Aquiles, Telêmaco ou Penélope em seus poemas. O confessional, intimista e límpido pode, também, ser grego. Como em A canção de Penélope, de 1996, escrito na época em que Glück vivia o fim de seu casamento:

Diminuta alma, pequena alma eternamente despida,
faça agora como eu te comando, escale
os galhos que são como prateleiras do pinheiro;
espere lá no alto, atenta, como
uma sentinela ou um vigia. Ele logo voltará para casa;
convém que você
seja generosa. Você tampouco tem sido das mais
perfeitas; com seu corpo perturbador
você tem feito coisas que não deveria mencionar
em poemas. Portanto
chame por ele sobre o mar aberto, o mar cintilante
com sua canção sombria, com sua sôfrega,
artificial canção — apaixonada,
como Maria Callas. Quem
não a desejaria? A quem, com o mais demoníaco apetite
você não atenderá? Ele logo
retornará lá de onde esteve durante esse tempo,
bronzeado pelo tempo passado fora, desejando
seu frango grelhado. Ah, você deverá saudá-lo,
você deverá sacudir os galhos da árvore
para chamar sua atenção,
mas com cuidado, com cuidado, para que
a bela face dele fique desfigurada
pela queda das muitas agulhas.

Herdeira
Como argumentei anteriormente, Louise Glück me parece muito mais uma herdeira de tradições do que uma desbravadora de caminhos. Sua poesia não é revolucionária, mas isso em nada a diminui. Glück é uma típica representante dos poetas que seu país tem gerado nos últimos 100 anos, mas de maneira alguma deve ser vista como uma representante menor. Nem, tampouco, sua poesia é desprovida de originalidade e de voz própria.

Ao folhear qualquer uma das 15 coletâneas que ela escreveu, você naturalmente encontrará livros e poemas dos quais gostará mais do que de outros. Mas (e isso é raro mesmo entre grandes poetas) você não encontrará nenhum poema ruim. Todos eles parecem brotar visceralmente das angústias e perplexidades que habitam a alma da poeta; são líricos, fortes, perfeitamente ritmados, tecnicamente impecáveis. Louise Glück é uma daquelas artistas que não abrem mão da minúcia do artesão. Forma e conteúdo, como ying e yang, vivem absolutamente imbricados um ao outro.

Glück é muito mais uma discípula do que uma mestra. Ainda que uma discípula brilhante, é inegável.

Um Nobel para Louise Glück faz justiça a uma obra extensa e rica; mas faz justiça, sobretudo, à poesia, que, em tempos tão sombrios, pôde, pelo menos por um dia, frequentar as manchetes e as primeiras páginas dos principais jornais do mundo.

Encerro com uma tradução de Noite tranquila, de 1996, que, acredito, condensa tudo o que escrevi acima:

Você pega minha mão; logo estamos sós
na floresta ameaçadora. Quase que imediatamente

já estamos em uma casa. Noah[3]
cresceu e se mudou; a trepadeira, depois de dez anos,
de repente deu flores brancas. 

Mas do que tudo no mundo
Eu amo essas noites quando estamos juntos,
as noites tranquilas de verão, o céu ainda claro a essa hora.
E então Penélope segurou a mão de Odisseu,
não para trazê-lo de volta, mas para imprimir
essa paz em sua memória:

e desse ponto em diante, o silêncio através do qual você se move
é a minha voz à sua procura.

[1] Entre os poetas mencionados, foram traduzidos por mim, para o Rascunho, poemas de Stanley Kunitz (ed. 210, 2017), William Carlos Williams (ed. 185, 2015), W. S. Merwin (ed. 207, 2017); Donald Hall (ed. 180, 2015), Robert Creeley (ed. 169, 2014), Denise Levertov (ed. 165, 2014), Kenneth Rexroth (ed. 172, 2014), Robinson Jeffers (ed. 176, 2014) e Lawrence Ferlinghetti (ed. 230, 2019).

[2] Todas as traduções no texto foram feitas por mim para este artigo.

[3] Não traduzi para Noé porque se trata do nome do filho da autora.

 

>>> Leia poemas traduzidos de Louise Glück.

André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

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