O exílio da poeta

"Canções de atormentar" insere Angélica Freitas na tradição de artistas que interpretam o Brasil, com versos sobre um país cada vez mais inóspito
Angélica Freitas, autora de “Canções de atormentar”
03/01/2021

Cada poeta se vê diante de uma bifurcação no momento de realização de uma nova obra: consolidar ou refundar o seu trabalho? O que quer dizer: continuar o que começou, em uma implicação responsável com seu próprio caminho, ou desviar-se, na impostura própria da escrita que não pode se satisfazer com o que já foi feito. Pode-se dizer que o mais recente livro de poemas de Angélica Freitas, Canções de atormentar, não escolhe uma ou outra trilha. É o que costuma acontecer nos projetos poéticos que têm a sua fundação no desvio.

Por isso, não é de se espantar que este livro consolide as tendências apenas aparentemente distintas de Rilke shake e Um útero é do tamanho de um punho, publicados em 2007 e 2012, respectivamente. A tradição escovada a contrapelo dos poemas do primeiro, que eriçavam o passado literário com as forças pop (o título é didático a esse propósito: o poeta Rainer Maria Rilke batido como num milk-shake), e a radicalidade de uma poesia política (que não despreza forma nem técnica) do segundo (o título também é explícito nesse sentido), retornam em Canções de atormentar na forma das cantigas dissonantes da poeta.

Por que essas canções são de atormentar? Bem, é difícil imaginar que qualquer poeta escreva, hoje, no Brasil, versos similares aos de Gonçalves Dias na sua Canção do exílio: “Nosso céu tem mais estrelas,/ Nossas várzeas têm mais flores,/ Nossos bosques têm mais vida,/ Nossa vida mais amores”.

As palavras, carregadas de saudade, são emitidas desde Coimbra, em julho de 1843. Falam de uma terra cheia de palmeiras onde canta o sabiá, e parece contrastar com o que escreveu outro poeta, mais de um século depois, em 1968: “Minha terra tem palmeiras/ onde sopra o vento forte/ da fome, do medo e muito/ principalmente da morte”. Em Marginália II, Torquato Neto dá voz ao sentimento de exílio dentro de seu próprio país: “Eu, brasileiro, confesso/ Minha culpa, meu degredo/ Pão seco de cada dia/ Tropical melancolia/ Negra solidão// Aqui é o fim do mundo”.

Também Angélica Freitas não se sente em casa em seu país. Em um momento, nos conta que “agora a colher cai da boca/ e o barulho de bomba é ali fora/ e a polícia vai pra cima dos teus afetos/ munida de espadas, sobre cavalos”. Em outro, imagina “um epitáfio possível”: “O meu país era uma pamonha/ que um alienígena esfomeado/ pôs no micro-ondas”. Nem a sobriedade nem o humor confortam. São versos que vêm a público no mesmo ano em que Grace Passô, no curta-metragem República, nos diz (entre risos e lágrimas): “O Brasil é um sonho”. A esse enunciado, que denuncia a República nunca plenamente realizada de nosso país, podemos somar os versos de Freitas:

sentada no topo do mundo
que saudade de você
ai carmen miranda
que sabia assoviar
ai que sabia sambar
ai que sabia assoviar
(…)

tome água de coco
mário de andrade
comigo
                 aqui é puro pampa
                até o pescoço
(…)

que saudades do brasil
                   não
que saudades do brasil
                  não
que saudades do brasil
                 não

Uma poeta exilada
Exílio em casa: sabe-o quem divide a casa com o horror. “A verdade é que nunca houve ditaduras, colonialismo, escravidão e golpes de Estado que não contassem com juristas de estimação”, nos explica Silvio Almeida. É contemporâneo à Canção do exílio, de Gonçalves Dias, o projeto de lei de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos, apresentado ao conselho do Império do Brasil em 1843, que resultaria, sete anos mais tarde, na Lei de Terras (lei nº 601, de 18 de setembro de 1850). Contemporânea por sua vez da Lei Eusébio de Queiroz, a Lei de Terras regulamentou esta terra — cheia, segundo o poeta romântico e o tropicalista, de palmeiras, vento, fome, medo e morte — de modo a atribuir títulos de posse somente através da compra.

Foi o que consolidou a “negra solidão” que assombra os descendentes de escravos: a longa elaboração das leis abolicionistas no período de mais de três décadas foi também o período em que as elites imperiais fizeram de tudo para garantir a manutenção das hierarquias raciais inauguradas pelo regime escravocrata e pelo tráfico no Atlântico. De lá até aqui, foram os projetos quilombolas (que no vocabulário de nosso atual presidente corresponde a um xingamento) que asseguraram outro sentido para a terra — um sentido de território partilhado, de uma verdadeira república. E foi também contra os indícios de reforma agrária e repartição da terra ensaiados no governo de João Goulart que o golpe empresarial-militar se realizou em 1964.

Para as pessoas negras e pobres, a República Federativa do Brasil nunca se realizou plenamente. O Brasil é um sonho, como diz Passô.

Também para as mulheres, principalmente as mulheres trabalhadoras, o Brasil segue um pesadelo. Segundo o Monitor da Violência, iniciativa do portal G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 1,8 mil mulheres foram mortas de forma violenta só nos primeiros seis meses de 2020, sendo pelo menos 631 o número de casos em que o crime teve motivação de ódio pela condição de gênero, o que configura o feminicídio. Mais de 70% das vítimas são mulheres negras. A situação também é péssima, deste ponto de vista, para a população LGBTQIA+. Em 2019, segundo o Grupo Gay da Bahia, que realiza relatórios anuais dos assassinatos de pessoas LGBTQIA+ desde 1981, a cada 26 horas pelo menos uma pessoa morreu no Brasil vítima de homolesbotransfobia em 2019.

Dois acontecimentos marcam os oito anos entre Canções de atormentar e Um útero é do tamanho de um punho: junho de 2013 e as eleições presidenciais de 2018. A experiência ideológica fundamental vivida entre os dois momentos foi a de desrecalque dos sentimentos e discursos de ódio da extrema direita no Brasil, que passaram a circular com mais força até conquistar as urnas com a vitória do atual presidente e de seus aliados. Vale lembrar, a esse propósito, a tentativa de censura que a Universidade Federal de Santa Catarina sofreu por deputados de direita ao incluir Um útero é do tamanho de um punho entre a sua lista de livros para o vestibular em 2019.

Não é surpreendente, diante desse cenário, que apareçam, nos últimos anos, livros que contam de corpos exilados na própria casa, na própria cidade, no próprio país: Um corpo negro, de Lubi Prates, Desterro, de Camila Assad, O martelo, de Adelaide Ivánova, Dentro da barriga da besta, de Lucas Matos, O pau do Brasil, de Wilson Alves-Bezerra, e assim por diante.

Intérprete do Brasil
Seja como for, diante de forças destruidoras e desproporcionais, Angélica Freitas se fia na longa tradição das melodias. Trata-se, também, de um resgate da origem grega da poesia, aquela que na Grécia arcaica era chamada de mélica. Mas também a contrapelo. Por isso o último poema de Canções de atormentar, que empresta seu título ao livro, e que serviu de base para a performance homônima realizada pela poeta e por Juliana Perdigão já há alguns anos, confia suas forças à ancestralidade não dos rapsodos, mas das sereias. Ora, as sereias que atraíam com o canto (a mélica) os marinheiros para serem dilacerados:

quem vai para o mar terá medo
que o seu navio se espatife num rochedo
quem é do mar e vai para a terra
sabe que no final se ferra
à sua cauda não se aferra
nem na Grécia, nem na Inglaterra

é inventado ou verdadeiro
que a sereia cantou pro marinheiro
ele pôs cera no ouvido
ou se atou no mastro feito um bom marido
domador dos mares e da libido
ninguém no mundo mais desenvolvido
(…) 

mesmo que a deseje morta e descamada:
o marinheiro tem medo da sereia

Com este livro, Angélica Freitas garante seu lugar entre poetas, artistas e intelectuais intérpretes de Brasil. Canções de atormentar deve ser lido ao lado do disco-manifesto coletivo Tropicália, de 1968, dos ensaios de Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., do Poema sujo de Gullar, do Romanceiro da inconfidência de Cecília Meireles, e também dos últimos discos da canção paulista brasileira, citada e homenageada no livro pela poeta. Refiro-me aos trabalhos de Juçara Marçal e Rômulo Fróes e companhia, que não apenas repensam o legado antropofágico brasileiro como o deslocam da alegria tropicalista para outros afetos, como a raiva e a tristeza. Em outras palavras, Angélica Freitas ingressa, com este livro, na já rica tradição daqueles que se dedicam a “desafinar o coro dos contentes”. Somente depois de compreendê-lo, o leitor poderá ler, verdadeiramente, o primeiro poema, tão estranho, de Canções de atormentar. Em laranjal, a poeta relembra a infância no sul, e é nele que perde a casa, como se visse, de frente, o incêndio do Museu Nacional e perdesse o país:

verde-mofo.
verde-cobra.
puro junco, aranha,
lagartixa, carro atolado.
quer saber o que é
o fim da civilização?

>>> Leia a entrevista de Angélica Freitas

Canções de atormentar
Angélica Freitas
Companhia das Letras
112 págs.
Angélica Freitas
Nasceu em Pelotas (RS), em 1973. Além de Canções de atormentar (2020), publicou os livros Rilke shake (2007) e Um útero é do tamanho de um punho (2012), além de alguns zines, como Canções de atormentar e Crianças kids. Foi traduzida na Argentina, Estados Unidos e Alemanha.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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