O canto do coração do Oeste

Nas quase mil páginas da Trilogia da planície, Kent Haruf tira os Estados Unidos do pedestal ao explorar profundos dramas humanos na fictícia cidade de Holt
Ilustração: Igor Oliver
03/01/2021

Tudo o que se refere aos Estados Unidos da América é sempre superlativo. Maior economia e também a mais antiga democracia do mundo moderno, terceiro maior país em população, empatado com a China no terceiro lugar quanto à extensão territorial, no caso do colosso geopolítico até mesmo as mutilações no próprio nome vêm reforçar sua grandiosidade: embora existam outros Estados Unidos, só os da América dispensam a declinação de sua origem sem que isso consiga confundir alguém; tampouco estão sozinhos na América, ainda que sejam os únicos a adotar para si o nome do continente ao qual pertencem e sem que ninguém reclame dessa apropriação. No inventário das grandezas, Nova York, a capital do mundo fundada por judeus portugueses fugidos da Inquisição no Recife; Chicago, sua imponente arquitetura e onde o dinheiro conseguiu inverter o fluxo de um rio; o Texas, cujo lema é “se tem de fazer, que se o faça grande”. No Oeste, que grosso modo representa a metade oriental do país, encontramos as monumentais Montanhas Rochosas, o Grand Canyon, os enormes desertos e também a luxuriante Califórnia, sede da maior indústria cinematográfica do globo. Tudo grande, exponencial, maiúsculo. Tudo de acordo com uma construção que tem a ver com a geografia, a demografia e o próprio passado heroico da nação. E todo esse esplendor reverberado nas cenas de uma vida menor e cotidiana no coração do país, onde pequenos núcleos urbanos se espraiam na vastidão do meio rural com bandeiras nacionais flamejando orgulhosas em frente às casas.

Imagine-se agora uma hipotética viagem aos Estados Unidos sintetizada no zoom de uma câmera a partir do espaço. Ela começa mostrando o país inteiro e vai fechando o foco em direção ao Oeste, chega ao Estado do Colorado e termina numa cidadezinha de menos de 4 mil habitantes a leste da capital Denver, dela distante pouco mais de duas horas de carro pela US 34. Buscamos o mapa para identificar qual seria essa cidade, e é fácil encontrar uma que se encaixe no perfil: Yuma.

Em pouco mais de 30 anos de produção ficcional, Kent Haruf escreveu seis romances, todos eles ambientados numa fictícia Holt, cidade inspirada em Yuma. Outra curiosidade: Haruf chegou ao Brasil com Nossas noites, sua última obra, lançada originalmente em maio de 2015, seis meses após a morte do escritor, e aqui publicada por ocasião do lançamento do belíssimo filme do indiano Ritesh Batra, nela inspirado e estrelado por Jane Fonda e Robert Redford.

Imediatamente anteriores a Nossas noites vêm os três romances que formam a Trilogia da planície e que estão sendo agora lançados pela Rádio Londres, que já se tornou uma referência no cenário editorial brasileiro ao investir em publicações de qualidade e que sempre fogem do óbvio.

Vida dura e tediosa
Kent Haruf tornou-se um best-seller com a publicação de Canto da planície, em 1999, seu terceiro romance e o primeiro da Trilogia. O título original, Plainsong, tem um significado que a tradução literal não alcança — e talvez nem esse dispense a curiosa epígrafe da obra:

Plainsong — a música vocal uníssona praticada nos primórdios da igreja cristã; qualquer melodia ou ária simples e sem enfeite.

Na Holt do final do século 20, tem-se a sensação de que o tempo está um pouco atrasado em relação ao que corre no resto do mundo. Podemos estar tanto em 1985 ou 1995 — se as coisas pouco mudaram no mundo no transcorrer desses dez anos, menos ainda naqueles confins. Não há celulares, as pessoas ainda atendem a telefones fixos, fazem visitas e reúnem-se em bares para assistir a um jogo em frente a um aparelho de televisão. Nesse pequeno conjunto urbano como tantos outros formados numa zona essencialmente rural das chamadas Grandes Planícies, a vida passa como o canto do título: uníssona, simples, sem enfeites, fustigada pelo vento que agrava a sensação de frio no longo e nevado inverno e que abranda o calor enquanto empoeira as varandas nas estiagens do verão.

Também à semelhança de um plainsong, e como bem destacam os editores brasileiros, “as vozes graves dos coros e dos solistas se alternam”. Cada capítulo é assim dedicado a um ou dois personagens que vão se revezando à medida que a história se desenrola. Contudo, inexiste uma trama central, senão um conjunto de tramas singulares expostas como numa rapsódia e que remete ao cenário: a vida dura e tediosa nos anos finais do século passado no coração do Oeste norte-americano, com seus conflitos a um tempo universais e muito peculiares. “Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”, uma das variantes da famosa frase de Tolstói, cai como uma luva para resumir o exercício de construção do romance.

Tom Guthrie é um professor de História cujo casamento desabou e que eventualmente, antes ou depois do colégio, ajuda os irmãos solteirões Raymond e Harold McPheron nos afazeres do rancho de gado a 30 km dali. Sua mulher apresenta um quadro grave de depressão e se alheou completamente da casa e dos filhos, Ike e Bobby. Os garotos estudam no mesmo colégio onde leciona o pai, recebem e distribuem diariamente os jornais pela cidade e compensam a ausência da mãe com a atenção que lhes dispensa uma idosa solitária. Victoria Roubideaux é aluna de Tom expulsa de casa pela mãe alcoólatra quando sua gravidez é descoberta. Maggie Jones, também professora, tenta abrigá-la em sua casa, mas o pai, que sofre de Alzheimer, torna impossível a convivência. Maggie leva então Victoria para o rancho dos McPheron, e uma inusitada amizade nasce entre dois velhos rabugentos e uma adolescente grávida.

Os conflitos resumidos acima são apenas alguns dentre tantos que comparecem na prosa segura e envolvente de Haruf. Há o filho desajustado da família mais rica da comunidade mantido no colégio, a despeito de todos os problemas que causa, por um singelo motivo: ele é o melhor jogador no time escolar e o dinheiro do pai sustenta seu mau comportamento e o péssimo desempenho nos estudos (algo pode ser mais americano do que esse, por assim dizer, desvio de finalidade?); Tom Guthrie, contudo, não aceita participar do arranjo indecente e acaba tendo os próprios filhos envolvidos na contenda. Cenas nauseantes da vida campeira, como o sofrimento de um cavalo que culmina com sua morte e posterior autópsia ou o parto complicado de um bezerro, convivem com o bullying na escola, as primeiras vivências no terreno do sexo, o machismo entranhado numa sociedade cristã e conservadora, e tudo retratado com naturalidade e uma insuspeita leveza.

Ilustração: Igor Oliver

Cores honestas
No final da tarde, segundo romance da Trilogia, foi lançado em 2004, cinco anos após Canto da planície, e nele reaparecem alguns personagens do primeiro livro. Contudo, a única história que efetivamente continua é a dos McPheron e sua relação com Victoria, que terminou o colégio e se muda para Fort Collins, a duas horas de carro dali, para cursar a faculdade. Os irmãos, agora com os corações amolecidos pela convivência com a adolescente e sua bebê, são obrigados a seguir no rancho em sua lida pesada e cotidiana, até que uma tragédia impõe uma nova realidade.

Dentre os novos personagens, destaca-se o casal Luther e Betty Wallace: ele, um grandalhão meio abobalhado para quem tudo está sempre bem quando de fato nunca está, tem o pavio curto e perde a cabeça com frequência, e ela, que vive desligada do mundo a se queixar de dores de estômago, reais ou imaginárias. Os Wallace vivem num trailer do qual não cuidam, junto com o casal de filhos pequenos. Joy Rae, pré-adolescente de 11 anos, mantém seu quarto como o único espaço habitável ali e protege o irmão menor, Richie, do bullying na escola pelo desleixo com que se veste. Para agravar o quadro, Hoyt Raines, tio de Betty, um tipo asqueroso, alcoólatra, que não para em nenhum emprego, acaba indo morar no trailer e agride as crianças. Luther e Betty, em seu comportamento imbecilizado, não conseguem se impor em sua própria casa e deixam os filhos sofrerem o abuso. Esses, com medo de terem o mesmo destino da meia-irmã mais velha cuja guarda Betty já havia perdido, tentam esconder dos outros a violência sofrida.

A história tem desdobramentos dolorosos. Apesar da realidade de Primeiro Mundo, com o Estado pagando mensalmente um auxílio ao casal Wallace a título de sua incapacidade e designando uma assistente social para supervisioná-los, o drama humano gerado pela negligência dos pais na criação dos filhos ainda existiria caso não houvesse tal apoio; pior seria sem ele, não há dúvida, com crianças abandonadas e levadas ao crime, como tristemente testemunhamos acontecer em nosso país. Mas é de cortar o coração ler a história de um garotinho escondendo os hematomas da surra que levou, sem nenhum motivo, com medo de que a descoberta o tire da casa onde sofre os maus tratos.

Por outro lado, a situação dos Wallace é malvista pela comunidade, que não aprova assistir ao governo pagar pensão a uma dupla de imprestáveis e incivilizados, pondo a conta nas costas de quem efetivamente trabalha. Essa ideia está no cerne do movimento que levou Trump ao poder em 2016, impulsionado pelos eleitores do centro dos Estados Unidos, mais conservadores e ameaçados por qualquer política de proteção a alguma minoria. Não se pense, contudo, que o autor usa a voz dos personagens para que eles façam a crítica que ele próprio gostaria de fazer. Nada disso. Haruf é um cronista que sempre prefere “mostrar” a “contar”, para se usar aqui dois conceitos técnicos da arte da escrita. Ele pinta o quadro com cores honestas e deixa que o leitor tire suas próprias conclusões. Ou tire nenhuma, e a boa história permanece para além das questões políticas.

Costura sutil
Bênção, terceiro romance da Trilogia da planície, foi lançado em 2014, dez anos após o segundo. Nele, Haruf usa apenas personagens e histórias que não haviam aparecido nos dois romances anteriores. O que une os três romances não pode ser simplesmente o cenário, pois, como já foi observado, toda a obra ficcional de Haruf é ambientada em Holt. Tampouco um aspecto temporal, pois o recorte das três obras abrange um período indefinido, talvez cinco anos, considerando-se apenas os dois primeiros, e Bênção não vem necessariamente numa sequência de tempo em relação àqueles. A costura é mais sutil.

Ela começa naquele canto uníssono, simples e sem enfeites que reproduz a vida nas lonjuras do Oeste e aos poucos vai fechando o foco em direção a dramas humanos tão complexos quanto peculiares, até chegar a um grande close up, o conflito que domina todo o terceiro romance: Pai Lewis, dono de uma ferragem, está em estado terminal de câncer e tem algumas contas a acertar com sua vida antes de partir. Uma delas, o caso antigo de um balconista que ele demitiu ao ser flagrado desviando dinheiro da loja; outra, o próprio filho com quem há anos está rompido e nem sabe mais onde vive. A filha vem de Denver para a ajudar a mãe, já debilitada, nos cuidados com o pai. A referência infantil está agora na figura de Alice, uma órfã que vive com a avó na casa vizinha e que vai aproximar da família Lewis uma idosa, Willa, e sua filha, Alene, moradoras do outro lado da cidade. Para completar, o drama do reverendo Lyle, que enfrenta problemas no casamento e cujos sermões dominicais nada ortodoxos não estão sendo bem aceitos pelos fiéis. Por diferentes razões, os Lewis, Alice, Willa, Alene e Lyle acabam formando um pequeno núcleo destoante do padrão da comunidade.

Vejamos o que a escritora Ursula K. Le Guin escreveu numa resenha por ocasião do lançamento de Bênção:

A violência é comum nos romances atualmente, a compaixão nem tanto. Haruf lida com as relações humanas com delicadeza feroz e reticente, explorando a raiva, a fidelidade, a pena, a honra, a timidez, o senso de obrigação; ele lida com questões morais complexas, mal formuladas, levando talvez a um misticismo não dito. Ocasionalmente, ele arrisca e uma ou duas vezes cai no sentimentalismo: mas olhando para os romances de Holt como um todo, sua coragem e realização em explorar formas comuns de amor — a frustração duradoura, o longo custo da lealdade, o conforto da afeição diária — são insuperáveis por tudo o que sei na ficção contemporânea.

E a grande surpresa ao leitor de outras paragens: Kent Haruf consegue alcançar a intimidade de um país a um tempo tão robusto e tão frágil, revelando suas entranhas e, com isso, o que ele tem de mais profundo e humano.

Canto da planície
Kent Haruf
Trad.: Alexandre Barbosa de Souza
318 págs.
No final da tarde
Trad.: Alexandre Barbosa de Souza
320 págs.
Bênção
Trad.: Sonia Moreira
316 págs.
Kent Haruf
Nasceu em Pueblo, Colorado, em 1943. Filho de um pastor metodista e de uma professora, teve várias ocupações em diferentes endereços antes de se tornar escritor. Escreveu seis romances, todos ambientados na fictícia Holt, que fica no estado em que ele nasceu. Chegou ao Brasil com sua última obra, Nossas noites, em 2017, por ocasião do lançamento do filme homônimo de Ritesh Batra. Morreu em 2014.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho