O canto das sereias isoladas

Em romance de estreia, a venezuelana María Elena Morán testa a forma romanesca na construção de uma narrativa sobre o sofrimento psíquico
María Elena Morán, autora de “Os continentes de dentro”
01/11/2021

Se fosse um filme, Os continentes de dentro teria barulho de mar, vento e maresia borrando as lentes da narradora. Teria também trechos silenciosos, interrompidos por frames, cuja tensão iria variar a depender do humor das personagens no momento narrado. Algumas destas, aliás, seriam uma espécie de eco desse mar que separa os habitantes dos Continentes de Fora e os de Dentro e que se configura em si mesmo um elemento de força do romance. Porém, porque munido apenas de palavras, o livro de estreia da venezuelana — radicada no Brasil — María Elena Morán esgarça as possibilidades do gênero para criar efeitos de sentidos que ultrapassam a noção de especificidade do que consideramos literário. Dois sinais dessa tentativa da expansão da forma são a ficcionalização da prática da anotação, manchando os limites do real e do ficcional, e os caminhos interpretativos que se abrem a partir de uma seleção primorosa de citações com nomes como Gabriel García Márquez, Robert Louis Stevenson e Ernest Hemingway.

Tendo o mar como extensão da narrativa, Os continentes de dentro conta a história de Sofía, uma mulher jovem privada da companhia da avó Aída Rojo, diagnosticada como louca e enviada a um hospício na Ilha de Salos para tratamento, com o consentimento do marido Ignacio e da filha Taís. O estopim para a decisão familiar, ainda segundo a família da narradora, foi Aída ter tentado matar a neta afogada, acreditando que a menina era uma Sereia (assim, grafada pela personagem com letra maiúscula). Aída e a neta Sereia são sujeitos “de Dentro”, em oposição aos “de Fora” que tentam regular o mundo, regular inclusive os “de Dentro”, esses tais seres especiais que fazem o elo entre o mundo material e sensível, criaturas “de outros mundos”. Aída é também uma personagem que nunca anda sozinha, está sempre acompanhada de Ino, uma voz que a ajuda a tomar decisões e a enfrentar aqueles que duvidam da sua sanidade. “Ela diz que isso que tenho experimentado se chama ‘escuta ativa’. É um talento que escassas pessoas têm e que todo mundo inveja”, justifica em uma das primeiras anotações feitas para a neta. Os capítulos do livro intercalam as vozes potenciais do conflito no romance, Sofía e Aída.

Inconformada com a história a que teve acesso, Sofía viaja até esse lugar misterioso, onde espera encontrar algum rastro da avó ou uma narrativa mais convincente sobre o afastamento de Aída. Como bem recupera Luiz Antonio de Assis Brasil, no prefácio da obra, a Ilha de Salos metaforiza o Barco dos Loucos, imagem medieval para a qual eram deslocadas as pessoas em sofrimento psíquico, evitando assim a contaminação dos sujeitos “sãos”. Os manicômios, tais como o que recebe Aída e outras mulheres na llha, seriam uma versão moderna do Barco, ao mesmo tempo que denota um gigantesco atraso no entendimento da situação clínica dessas pessoas, porque se assemelham em muitos casos a verdadeiras prisões.

Sofía adota uma nova identidade para se aproximar daquele lugar e, ao chegar à Ilha de Salos, se depara com um local que abriga um hospício abandonado, sem registro de médicos ou qualquer outro tipo de controle institucional. Largadas à própria sorte, as mulheres que moram na Ilha sobrevivem em um regime autogestado por elas mesmas e, em grande parte do romance, isso bem parece dar certo. Elas sabem que já não são mais acompanhadas por ninguém e muitas vivem resilientes no espaço em que é possível viver a realidade “de Dentro”, com regras próprias e uma espécie de consciência de que o motivo que as levou àquele lugar não as levará de volta para suas vidas de origem — uma viagem sem retorno. As regras do lugar, no entanto, relevam aos poucos um ambiente violento e distante do que Sofía desconfiava a respeito do lugar, das outras mulheres, dos poucos homens da narrativa e da própria avó.

O esforço de construção das personagens é percebido pelas diferenças entre elas, na sugestão de que embora todas estejam na mesma situação de isolamento do mundo, cada uma provavelmente sofre de um problema psíquico específico. E embora María Elena não adentre a discussão sobre medicalização ou aborde quadros clínicos, ela arrisca ao construir variações comportamentais entre elas e até mesmo em uma mesma personagem, caso de Aída que ora parece estar medicada, ora não. E assim, mais do que um mapa geográfico da Ilha de Salos, o que aliás existe no belo projeto gráfico da editora Zouk com ilustrações de Maria Williane, María Elena faz um mapa de perfis abandonados em decorrência de um sofrimento psíquico e seus enfrentamentos quando se tornam uma comunidade majoritariamente feminina, sendo cada personagem um mundo inteiro a ser descoberto. Adela, Rita, Alcira, Herminia e Charito são algumas dessas mulheres que se aproximam do que acontece na vida fora da literatura, cada uma ganhando tônus a partir da dicção impressa ao longo do romance. E nesse ponto, em que a literatura atravessa a borda da realidade, uma referência incontornável para os leitores é o diário Hospício é Deus (escrito em 1959 e lançado em 1965), no qual a escritora Maura Lopes Cançado conta sua experiência em hospícios em Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Outros modos de narrar
O esgarçamento do gênero romanesco não se limita apenas à forma, à escolha dos diferentes tipos de linguagem (anotação, narração em primeira pessoa, diário), aos lampejos da experiência de Morán como roteirista, nos dando um romance com cara de adaptação para o cinema. É o que podemos observar na maneira como isso transborda para os espaços criados dentro do livro (a ilha, o hospício, os arredores, o mar), assim como da comunidade de mulheres imaginada na narrativa.

Como bem aposta a crítica argentina Florencia Garramuño, na obra em que discute a inespecificidade do contemporâneo, bem como as ideias de pertencimento e autonomia, Frutos estranhos (2014), os experimentos literários e, podemos dizer de um modo mais amplo, artísticos, que implodem suas formas por dentro, questionam a lógica de pertencimento, operam a partir do inespecífico, acenando em último grau para a sugestão de novos imaginários para as comunidades. “(…) mas o que me parece mais importante, e que aparece nessa implosão do específico no interior de uma mesma linguagem estética, é o modo como esses cruzamentos de fronteiras e essa aposta no inespecífico podem ser pensados como práticas do não pertencimento que propiciam imagens de comunidades expandidas”, resume a crítica. Ou seja, o gênero abre mão em certa medida do que lhe especifica ao mesmo tempo em que, do ponto de vista temático, também implode uma tradição de narração sobre determinados sujeitos sociais.

Aqui, é pertinente pensar como os modos de contar sobre personagens em sofrimento psíquico são renovados na experiência de Morán. Escrito em língua portuguesa, mas com certa dicção venezuelana que parece querer imprimir uma marca autoral, além das inúmeras referências em espanhol, o romance híbrido não se prende a um lugar, a uma geografia venezuelana ou brasileira, faz questão de não fixar uma localização. Ao mesmo passo, a autoria transfere a maior parte da narrativa para a voz de personagens ditas “loucas”, dando-lhes voz, fazendo com que elas mesmas falem em discurso direto ou nas anotações da avó Aída.

Guia para a busca de Sofía e também para os leitores da obra de Morán, as anotações da avó disparam o senso de suspense e mistério do livro, seja pela dicção de Aída, já comentada anteriormente, referindo-se diretamente à neta e alertando que os “de Fora” não tentarão negociar a verdade dos fatos, para todos os efeitos, a avó sofre de alguma perturbação e é um perigo para todos, seja porque as anotações são feitas em livros, em alguns casos nas bordas dos capítulos, outras vezes em todo o miolo, restando a capa para proteção insuspeita que garantirá o segredo entre avó e neta.

Todos os livros utilizados como esconderijo por Aída de algum modo referenciam o mar; Relato de um náufrago, O velho e o mar, La isla de Róbinson, A vida nas ilhas, Billy Mudd, Marilheiro, Relatos de mares do sul e Volta ao mar, escrito pelo pai da autora, Rodolfo José Morán, nos anos 1980. E porque nada em uma obra pode ser lido impunemente, a epígrafe de Alejandra Pizarnik, não à toa uma poeta afeita a diários, diz: “explicar com palabras de este mundo que partió de mí um baco llevándome. Os continentes de dentro é desses livros que nos obriga a outras leituras, tantos são os detalhes de sua construção que hipnotizam, tal e qual o canto das sereias, que nos fisgam e do qual dificilmente conseguimos nos libertar.

Os continentes de dentro
María Elena Morán
Zouk
238 págs.
María Elena Morán
Nasceu em Marcaibo (Venezuela), em 1985. É formada em Comunicação Social na Universidad del Zulia e em roteiro na EICTBV, de Cuba. Fez mestrado em Escrita Criativa na PUC-RS, onde cursa atualmente o doutorado na mesma área. Os continentes de dentro é seu romance de estreia.
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

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