O melhor dos tempos, o pior dos tempos. Terra de luz, terra de trevas. Triste Síria, grande Síria. Pensando no poeta Adonis e em seu país, me veio à mente, não sei por quê, a abertura de Charles Dickens para Um conto de duas cidades, que me inspirou linha a linha na redação deste texto. Ainda que Adonis seja um poeta cuja grandeza extrapole em muito sua Síria natal, é impossível pensar em autor e obra sem levar em conta a história e a cultura do país onde nasceu. Um país que já teve o melhor de tudo, que já teve o pior de tudo.
A Síria, que nos últimos anos frequentou os noticiários por conta de uma das maiores tragédias humanitárias da atualidade, e há pouco tempo celebra, entre otimista e apreensiva, a queda da sanguinária ditadura Assad, é muito mais do que sua história recente nos mostra.
O país, tão antigo quanto a civilização, já foi maior (em épocas remotas incluiu os atuais Líbano e Iraque, além de partes da Turquia e da Jordânia), e tem o nome derivado de Assíria, o império que existiu no norte da Mesopotâmia entre aproximadamente 2.500 a.C. e 612 a.C., cuja capital foi a célebre Nínive, mencionada no Velho Testamento (“Assur deixou aquela terra, e ergueu Nínive”; Gênesis 10:11). Em seu auge, foi a maior cidade do mundo.
A Síria já esteve em mãos hititas, egípcias, sumérias, babilônias, persas, fenícias, gregas, romanas, bizantinas, árabes, turcas e francesas, entre outras. Foi lá que os fenícios inventaram o alfabeto. Foi lá, no Iraque e na Pérsia que matemáticos aperfeiçoaram os algarismos arábicos que usamos hoje.
Mesmo que menos extensa do que já foi, a Síria ainda abriga muitas etnias e religiões, convivendo entre si há séculos, ora mais harmoniosamente, ora menos. Adonis pertence a uma das etnias minoritárias, a Alauíta, a mesma, coincidentemente da recém-destronada família Assad.
Damasco, uma das cidades mais antigas do mundo (há registros de presença humana desde aproximadamente 9.000 a.C.), foi a sede da dinastia Omíada, originária de Meca, o clã que representou a principal força expansionista do Islã nos anos imediatos após a morte de Maomé.
Quando, em 750, os Omíadas, enfraquecidos, foram massacrados pelos rivais Abássidas, foi de Damasco que partiu (ou fugiu) o exército de Abderraman I para varrer todo o norte da África, atravessar o estreito de Gibraltar, desembarcar na Espanha, derrotar os cristãos Visigodos e criar o Califado de Córdoba, inaugurando a longa presença árabe na península Ibérica. E por mais que às vezes nos esqueçamos disso, sempre que pronunciamos palavras como pátio, sofá, algoritmo, limão, arroz ou alface, ou que vemos uma parede com azulejos decorados ou, ainda, quando tomamos café, sentimos as marcas que este período deixou em nós.
A Síria jamais deixou de ser um ímã cultural do mundo árabe, um país que, ainda que não o mais rico, é um dos mais importantes do Oriente Médio (diferentemente do que ocorre com os vizinhos Arábia Saudita, Iraque e Irã, o petróleo por lá é escasso).
Um tópico à parte, mas não menos importante, é a língua na qual Adonis escreve, a árabe. O terceiro idioma mais falado no mundo hoje, o arábico foi a língua franca universal, tomando o lugar do latim na diplomacia, no comércio, na ciência e na literatura após a expansão muçulmana do século 7. Ela é considerada por alguns estudiosos como uma das línguas mais poéticas que existem, tanto que, segundo escreveu no livro Árabes o historiador Tim Mackintosh-Smith, um britânico radicado há anos no Iêmen, a força lírica do árabe, no qual foi escrito o Corão, foi um dos principais fatores para a rápida expansão do Islã a partir de 622. Vejamos, por exemplo, as primeiras linhas do livro sagrado. Traduzidas para o português, elas dão conta, perfeitamente, de transmitir o significado: “Não há outro deus a não ser Alá”. No original árabe, porém, elas soam muito mais melodiosas: “La illaha illa ‘llah”. O mesmo ocorre com As mil e uma noites, que em árabe tem o muito mais sonoro título de Alf Laylah wa-Laylah (das quais uma das versões mais antigas que existem é chamada, não por acaso, de Manuscrito Sírio).
Diante de tão gigantesca herança, ser considerado o maior poeta sírio em atividade, e um dos principais em língua árabe, não é pouca coisa.
Desde a infância
Ali Ahmed Said Esber nasceu na região de Lataquia, na Síria, em 1930. Originário de uma família de camponeses pobres, desde criança ouvia o pai recitar poemas para ele, e muito cedo, começou a escrever os próprios versos, tendo sido convidado, aos doze anos de idade, a declamá-los para Shukri al-Kuwatli, o então presidente da Síria. Impressionado, o dirigente prometeu que, a partir daquele momento, o garoto receberia uma educação formal. A promessa foi cumprida, os anos se passaram e o menino acabou por se licenciar em filosofia, pela Universidade de Damasco, em 1954.
Na mesma época, ao ter seus poemas recusados para publicação por uma sucessão de revistas literárias, Esber passou a usar Adonis como pseudônimo, decisão que se tornaria definitiva. A escolha por Adonis não foi aleatória, representando perfeitamente as visões de mundo do poeta: segundo a mitologia de origem fenícia, reconfigurada depois pelos gregos, Adonis, associado à beleza e ao prazer, tornou-se o amante de Afrodite. A opção pelo nome Adonis refletia, assim, a estética pan-mediterrânea do poeta, além de sua religiosidade nada ortodoxa, uma espécie de misticismo pagão, como ele mesmo chegou a definir.
Em 1955, por conta do envolvimento com movimentos socialistas sírios, Adonis foi preso e amargou alguns meses na cadeia. Ao sair, foi morar no Líbano e, de lá, ao receber uma bolsa de estudos, viajou para a França. Apesar de algum vai e volta entre a Europa e o Oriente Médio, a residência oficial do poeta permaneceria sendo Beirute até 1985, quando a guerra civil libanesa fez com que ele se exilasse de maneira mais permanente na França.
Com doutorado pela universidade francófona St. Joseph, em Beirute, Adonis, além do envolvimento em inúmeras revistas literárias, viria a ser professor de literatura árabe na própria Beirute e, em momentos distintos, nas universidades de Sorbonne, na França, e Princeton e Georgetown, nos Estados Unidos. A obra poética de Adonis, apesar da fluência em francês, sempre escrita em árabe, e faz dele, ano sim e outro também, um forte (mas até hoje não contemplado) candidato ao Nobel de literatura.
Ao longo de toda a sua longa vida, e até hoje (com 95 anos, completados no primeiro dia do ano), Adonis jamais parou de criar e editar revistas literárias, de escrever ensaios, de traduzir e, principalmente, de compor poemas. Ora mais líricos, ora mais experimentais, ora mais engajados (especialmente após a guerra civil libanesa), seus poemas são sempre poderosos. Como tradutor, ele foi responsável, entre outras coisas, pela versão em árabe de The waste land, de T. S. Eliot.
Em todas essas atividades, Adonis acabou confrontando muita gente, pois, ainda que para ele os poetas não devam ser criaturas alienadas do contexto em que vivem e das necessidades de mudança, eles tampouco podem se tornar reféns das limitações impostas pela religião, pelos governos ou pelas ideologias. E o Oriente Médio das últimas décadas, sabemos bem, não tem sido o melhor lugar para se exercitar a independência intelectual e artística.
Liberdade irrestrita
A liberdade irrestrita para o exercício da arte, no caso de Adonis, fez com que ele se sentisse autorizado a experimentar e se apropriar de toda e qualquer fonte com a qual se identificasse. Assim, ele leu e incorporou as obras tanto dos poetas clássicos árabes, como Abu-Tamman (c. 796-845), sírio, e Abu Nuwas (c. 756-814), persa, quanto as de Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Stéphane Mallarmé, Robert Frost, André Breton, T. S. Eliot e Octavio Paz, entre muitos outros. A liberdade, para Adonis, deve ser também geográfica: seus poemas podem estar situados em ambientes tão distintos quanto Nova York, México, Paris, Pequim, Beirute ou em lugar algum. O que não faz sentido para ele são meros trejeitos verbais ou jogos de palavras sem um propósito lírico. É uma poesia que não perde tempo, que não admite desperdícios. Vejamos um exemplo de um Adonis, em tom sombrio, quase agressivo, ao passar pelos Estados Unidos (todos os poemas de Adonis aqui transcritos foram traduzidos por Michel Sleiman):
NOVA YORK,
corpo da cor de asfalto. Em torno da cintura faixa úmida,
o rosto janela fechada… eu disse: abre-o Walt
Whitman – “digo a palavra primordial” – mas só
a escuta um deus já fora do lugar. Os prisioneiros,
os escravos, os desesperados, os ladrões, os doentes
precipitam-se de sua garganta, e não há saída, não há
caminho. Eu disse Ponte do Brooklyn! Mas é a ponte
que liga Whitman a Wall Street, a folha-grama à
folha dólar…
(De Tumba para Nova York, de 1971)
Da mesma forma, Adonis pode ser lírico, até romântico, como em Árvore do Oriente:
Me fiz espelho
refleti tudo
mudei em teu fogo a cerimônia da água e da vegetação
mudei voz e apelo,
passei a te ver em dois
tu e esta pérola que nada em meus olhos
eu e a água nos fizemos amantes
nasço em nome da água
nasce em mim a água
eu
e a água
nos replicamos.
(De Livro das transformações e da fuga pelas regiões do dia e da noite, de 1965)
Adonis apareceu pela primeira vez em livro, no Brasil, em 2012, com Poemas (Companhia das Letras), uma seleção de seus versos realizada e traduzida direto do árabe pelo excelente Michel Sleiman, poeta e professor de língua e literatura árabes na USP, com apresentação de Milton Hatoum. A obra, lamentavelmente esgotada (exceto pela edição em e-book, disponível na Amazon), reúne poemas publicados entre 1957 e 2003. E agora, doze anos depois daquela coletânea, a Tabla lança Ode à errância, novamente com tradução de Michel Sleiman. As duas obras são complementares, e o ideal é que ficassem lado a lado na estante, uma vez que Poemas apresenta o poeta desde o começo de sua carreira, e Ode reúne poemas de três livros publicados mais recentemente: Concerto de Alquds (2012), Zócalo (2014) e Osmanthus (2019).
Viagem
Ode à errância não é uma coletânea típica. Na realidade, ela reúne, de maneira completa, os três livros mencionados acima, relacionados entre si na medida em que todos, de uma maneira ou de outra, partem da ideia de viagem (ou errância). O primeiro deles por Jerusalém (Alquds), o segundo pelo México e sua capital, e o terceiro pelas montanhas da China e Pequim. A ideia do volume foi de Sleiman, o tradutor. Ao acompanhar a trajetória de Adonis, ele se deu conta da proximidade temática destes três livros, e pensou em traduzi-los para um volume único em português.
O título nasceu de conversas entre o poeta e o tradutor. Quando o último sugeriu algo como “ode às cidades”, o primeiro retrucou que era mais do que isso, era uma espécie de ode ao movimento, ao conhecimento de lugares, à, enfim, errância.
Ode à errância é livro que se pode ler na sequência, do começo para o fim, ou, do jeito que eu prefiro, abrindo aleatoriamente as páginas. O poema abaixo, de Zócalo, por exemplo, teve o poder de me levar com ele para uma caminhada melancólica pelas ruas ensolaradas da capital mexicana.
Hotel La Casona. Do quarto vejo como o Sol deposita os
primeiros passos na soleira da Cidade do México.
Vejo as árvores saudarem seu rosto em quase silêncio.
A noite deu baixa no hotel. Saiu deixando rastros na minha
cama, que eu não soube ler, me garante o Sol.
Na rua, em companhia do Sol da Cidade do México,
preciso carregar umas árvores nos ombros para seguir a
caminhada. Preciso também de uma hipérbole que irmane
Mayya e Maia.
Preciso errar nas profundezas.
nal nome árabe de mulher)
Ou então passemos os olhos em Montanha da Memória, quase no fim de Osmanthus:
Você me pede, montanha da memória, que fale de minha vida,
desmoronada, destruída.
Como falar dela
se já não me lembro como a construí?
Não quero a devastação do passado
sentada à mesa da memória.
Você pode me inspirar?
Uma vez decidi me desligar
De vez do que me rodeava.
Quando eu me preparava para cumprir a decisão
as coisas ao meu redor começaram a se desligar
elas mesmas.
O tempo, sozinho, assistiu a esse teatro.
Finalmente, para não deixar de citar um poema de Concerto de Alquds, vejamos Canção:
O que lê a religião ou escreve a poesia, se o Oculto
quebra as costas do país e “a terra é sacudida
por seus sismos”?[1]
A Terra, astro dos dias errantes,
com seus anjos e demônios,
e a divindade, simbólica, tangível,
formam um mesmo ventre?
Uma edição bilíngue, no caso de Ode à errância, seria útil apenas para os escassos leitores brasileiros versados em árabe, o que não é, em absoluto, o meu caso. Mas, ainda que não tenhamos o original para cotejar com a versão em português, pode-se atestar a boa qualidade da tradução a partir da fluidez e da força do texto que temos em mãos.
Triste Síria, grande Síria! Uma nação não se faz somente com heranças — ainda que imponentes e milenares —, democracia política e respeito aos direitos humanos; mas também com a arte e a poesia, que devem poder ser livremente criadas, fruídas e debatidas.
Os noventa e cinco anos de Adonis foram escritos e vividos, em sua maior parte, no exílio, longe de casa. Enquanto nós, brasileiros, podemos comemorar o privilégio de ter em mãos uma nova e belamente traduzida coletânea de poemas do maior poeta sírio em atividade, quiçá esta nova Síria pós-Assad queira e possa recebê-lo de volta, lê-lo, relê-lo e celebrá-lo.
[1] Alcorão, 99:1