No centro do verso

Traduzir o poema, de Álvaro Faleiros, é imprescindível a quem se interessa pelos labirintos da tradução de poesia
Álvaro Faleiros, autor de “Traduzir o poema”
15/05/2015

Traduzir um texto? Mas pra quê? Ao traduzir é certo que um lado perde e outro ganha? Interessa saber o nome de quem traduziu? Basta saber quem é o autor da obra, o tradutor não passa de ferramenta? O tradutor cria? O tradutor pode criar?

Traduzir um poema? Impossível? Quem sabe!?

Ao ingressarmos no acidentado terreno da tradução, inevitavelmente nos defrontaremos com os fantasmas citados. Vale ressaltar que todos são pra lá de antigos, o cheiro de mofo denuncia a aproximação. Todos se abrigam no nefasto ninho onde se avista de longe, de muito longe, o neon: o que é tradução?

Mais importante que a definição é o fazer. Uma tradução, para começar, faz uma ligação entre duas culturas diferentes. Atenção, apressado leitor, o que você acabou de ler não é uma definição, mas sem tradução Homero, Shakespeare, Tolstói teriam menos leitores.

Eugene Nida, em Language structure and translacion, compara a tarefa do tradutor a um transporte de uma carga utilizando vagões de trem. O importante é que a carga chegue intacta ao seu destino, embora a quantidade de solavancos durante a viagem. Solavancos devido à barreira linguística. Traduzir implica levar à língua-alvo aqueles componentes relevantes da língua de partida. Lembrando que o objetivo é apresentar esses elementos significativos de forma que sejam compreendidos, e mantenham essa relevância, pelo receptor.

Mas como se deve traduzir? Nesse campo, teorias existem para todos os gostos e necessidades. No entanto, entendo como sempre válidas as recomendações de Alexander Tytler: 1) a tradução deve reproduzir em sua totalidade a ideia do original; 2) o estilo da tradução deve seguir o mesmo do original; 3) a tradução deve manter a fluência e a naturalidade do texto original.

Sim, atento leitor, estou ciente que o dito há pouco remete a várias questões, entre elas a da equivalência, onde texto de partida e texto de chegada devem ser equivalentes. Sem esquecer que os funcionalistas tornaram a equivalência uma simples possibilidade de um projeto tradutório. Ainda temos a equivalência funcional, num sentido pragmático, bien sûr. Mas sigamos, talvez este não seja o momento ideal para entrarmos nesse mérito. Deixemos essa bomba nas mãos do editor. Caso ele resolva devolvê-la, trataremos do desarme em edição futura.

Dito isso, ingressemos pois, já era tempo, no objeto desta resenha: a tradução poética.

É voz corrente a dificuldade de traduzir poesia. Muitos consideram tarefa impossível. Coesão e abundância de significados são dois obstáculos a impedir a traduzibilidade do poema. É óbvio que essa justificativa está carregada da ideia de que o poema faz parte do sublime onde a tradução macularia sua essência.

No entender deste aprendiz, a tradução poética não habita o reino das obras intocáveis, ela simplesmente exige um tradutor portador de sensibilidade capaz de produzir no leitor em sua linha de chegada sensações semelhantes às causadas pelo texto original.

Status de mito
O cerne da questão é o seguinte, caro leitor: é sempre mais fácil se escorar em argumentos que impeçam a ousadia, que nos eximem do trabalho, do estudo profundo que determinadas tarefas exigem. A tradução de poesia beira o status de mito. Mas esse jogo não está definido. Felizmente. A prova é Traduzir o poema, cujo autor, Álvaro Faleiro, além de tradutor, é poeta. Um poeta tradutor que contraria Octavio Paz em Convergências: ensaio sobre arte e literatura: os poetas tradutores tendem a utilizar o poema a ser traduzido como fonte inspiradora para criação de um novo poema. Leiam, para comprovar que Álvaro não se enquadra, Um lance de dados, edição bilíngue indispensável a quem gosta e estuda a tradução; e um de seus livros de poesia. Sugiro, gosto pessoal, Meio mundo.

Didático, Álvaro é professor, mas sempre estimulando a curiosidade do leitor, faz de Traduzir o poema, um livro didático e ao mesmo tempo, por mais redundante que possa parecer, poético. Estrutura-se da seguinte forma: Abordagens da tradução poética (Capítulo 1), Traduzir o espaço gráfico (Capítulo 2), Traduzir o metro (Capítulo 3), Traduzir a rima (Capítulo 4) e Traduzir o verso livre (Capítulo 5).

O leitor, embora o jargão acadêmico e as exigências do tema, não fica sem explicações. Ao final do primeiro capítulo, Álvaro justifica a escolha por esse tipo de divisão, de abordagem, e anuncia como tratará os capítulos seguintes.

Traduzir o poema é a ampliação da tese de doutorado (USP, 2003) de Faleiros, cujo título é Tradução e significância nos Caligramas de Apollinaire: o espaço gráfico, o metro e a textura fônica, orientado por Mário Laranjeira.

Trata-se de rara publicação na qual o leitor encontrará teoria e prática juntas, do início ao fim dessa obra que sem dúvida engrandece os estudos de tradução, de poesia e de tradução de poesia. Não, não veja redundância nessa afirmação, pouco reflexivo leitor, é importante que se acentue a abrangência do estudo de Álvaro.

Embora os acréscimos, a estrutura de Traduzir o poema continua sendo o trabalho de tradução dos poemas de Apollinaire.

No Capítulo 1, o leitor encontrará a apresentação do objeto: a tradução de poesia sob a visão de vários teóricos, entre os quais, Antoine Berman, Umberto Eco, Roman Jakobson, Ezra Pound, John Milton e Inês Oseki-Dépré.

O capitulo 2 aborda o espaço gráfico e os elementos tipográficos. Se não estou enganado, Álvaro fez algo semelhante em sua tradução de Un coup de dés. O autor considera Topografia e tipografia como partes do poema. Sugiro redobrada atenção ao aspecto “espaços em branco”. Aqui peço sua licença, atento leitor, para me repetir. O aspecto “espaços em branco” também é magistralmente abordado na tradução da obra de Mallarmé acima citada.

No Capítulo 3, o autor estabelece várias comparações. Analisa didaticamente os sistemas de contagem silábica do francês e do português, para tanto utiliza farta bibliografia de referência. Outro momento de extrema importância aos leitores de poesia diz respeito à análise do octossílabo francês, suas relações com o heptassílabo em português.

Em Traduzir a rima, capítulo 4, o autor aborda a genealogia desse aspecto. Aponta a enorme distância do francês em relação ao português, cita a tradução de Mallarmé feita por Augusto de Campos.

Traduzir o verso livre, quinto e último capítulo, é o fecho do trabalho de análise da tradução de poesia, Le Chant d’amour, de Apollinaire, serve como exemplo. O estudo inicia pelos sons, seus significados em várias línguas. O capítulo ainda aborda escolhas de tradução, a análise remete a capítulos anteriores nos quais verso livre e poemas metrificados são tratados como detentores de igual nível de complexidade. Gesto sobre um poema de Hilda Hilst em francês fecha o último capítulo, encerra de forma brilhante esta obra que vem a engrandecer os estudos da tradução.

Traduzir o poema
Álvaro Faleiros
Ateliê
192 págs.
Álvaro Faleiros
É poeta, tradutor, compositor e professor de literatura francesa na USP. Tem publicado artigos sobre tradução poética em revistas na França, no Canadá e no Brasil. Publicou diversos livros de poesia, entre os quais Coágulos, Meio mundo e o cordel, Auto do Boi d’Água, Do centro dos edifícios.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho