Na periferia do real

O surpreende e sutil "Piranesi", da inglesa Susanna Clarke, é uma fantasia marcada pelo esquecimento, isolamento e limitação de escolhas
Susanna Clarke , autora de “Piranesi”
01/05/2022

Por vezes, temos a difícil tarefa de falar a respeito de um livro sobre o qual seria melhor não falar. Ou pelo menos não falar muito. Não por ser chato ou desnecessário, mas porque a surpresa, o inesperado e surpreendente do livro é justamente passar pela experiência de se descobrir sobre o que ele trata. Pense em Clube da luta — livro de Chuck Palahniuk ou filme do David Fincher, tanto faz. É o caso de Piranesi, de Susanna Clarke. Vale um comentário: já se tornou um clichê começar resenhas sobre o livro com esse aviso.

Piranesi é o segundo romance de Clarke, e é definido pela própria autora como a história de um homem em uma casa na qual o mar está aprisionado. O primeiro livro de Clarke, Jonathan Strange e Mr. Norrell, é de 2004. Além disso, já publicou um conjunto de contos (inédito em português).

Jonathan Strange e Mr. Norrell é um belo calhamaço. O romance é uma espécie de relato acadêmico fictício sobre o encontro de dois magos, os que dão título ao livro, que buscam trazer a magia de volta para a Inglaterra — na economia da obra, a magia já estivera presente no país mas sua prática se perdera, e os magos contemporâneos atuavam apenas de forma teórica. O que faz do livro tão bem-feito é a grande habilidade com que a autora cria o mundo e as personagens. O tom acadêmico cria a sensação de que o leitor já sabe, ao menos em linhas gerais, do que o acontecimento se trata, e as notas de rodapé criam com frequência adiantamentos pontuais da história e aprofundamentos dos contextos que fazem com que o mundo criado por Clarke seja cada vez mais convincente.

Piranesi não foge tanto de algum desses temas, apesar de Susanna basicamente ter ido de 800 para 80 páginas. (Ok, exagero meu: a edição brasileira ficou com 256. Mas, vamos lá, perdoem a resenhista em busca de gracinhas.) Acontece que explorar um formato mais curto não mudou em nada a capacidade de a autora criar e manipular um mundo fantástico com grande maestria — ainda que, neste novo romance, seja bem mais sutil.

E agora façamos um acordo: vou começar a falar sobre o livro de maneira um tanto vaga, de propósito. Nesse momento, você pode descobrir se é algo que você quer ler. Depois, vou começar a falar em mais detalhes — caso você ainda não tenha se convencido ou caso já tenha lido a obra e queira saber outra percepção. Combinado?

Fantástico e improvável
O livro tem formato de diário e é escrito por uma personagem identificada como Piranesi, nome que recebeu do Outro, a única pessoa com quem interage. E Piranesi está em um mundo muito diferente, mas que ele parece entender, ou busca entender, ou ao menos aceita como status quo da existência.

Isso já se revela na primeira frase:

Quando a Lua surgiu no Terceiro Salão do Norte, fui ao Nono Vestíbulo para testemunhar o encontro de três Marés. Algo que só acontece uma vez a cada oito anos. O Nono Vestíbulo é singular devido às três grandes Escadarias que abriga. As Paredes são cobertas por Estátuas de mármore, centenas e centenas delas, fileiras e mais fileiras, que acendem às alturas mais remotas.

E é assim, com descrições muito assertivas, que o mundo extraordinário se constrói como completamente ordinário para a personagem em questão.

Aqui, Clarke se distancia um pouco de um dos narradores mais comuns da ficção especulativa: a personagem estrangeira, advinda de outro espaço social, planeta ou mundo fantástico, que descreve uma sociedade nova com olhos não acostumados a ela. Piranesi, apesar de não entender seu mundo em sua completude, está inteiramente acostumado a ele e o considera sua casa.

E este é justamente um mundo que se confunde com uma casa, mas é uma espécie de labirinto quase inabitado composto por grandes salões, cheios de estátuas, invadido periodicamente por marés. Piranesi parece investido em entendê-lo, catalogá-lo, explorá-lo — no sentido mais tradicional do viajante que cria mapas, dá nome aos seres, não no sentido mais capitalista atual.

A parte inicial do romance se destaca justamente pela criação de mundo realizada pela autora. São inúmeras descrições de estátuas, estrutura do céu e das águas, dos resquícios de vida que ainda ocupam o espaço que se mostra mais imaginativo e engenhoso a cada página. Um mundo tão fantástico quanto improvável.

Outra coisa que se torna cada vez mais evidente é o ponto de vista da narrativa. Em primeira pessoa, vemos que há algo de inocente na personagem narradora. É uma sensação muito parecida com ler obras com narradores infantis, com crianças que acompanham um evento que não têm ainda capacidade completa de entender, mas que transparecem vários indícios que deixam certas situações muito claras para o leitor antes deles mesmos entenderem.

Piranesi é mais ou menos assim: aos poucos começamos a ter indícios de que há muito mais acontecendo para além do que a personagem é capaz de perceber. Temos, assim, esse explorador deslumbrado que transforma o espaço onde habita, o qual chama muito economicamente de A Casa, em sua existência.

Mas agora é hora de se perder um pouco mais no labirinto.

Não diga que não avisei
Como um labirinto, a Casa é um espaço que limita as opções da personagem. Pesquisar, escrever o diário, se preocupar com sua existência, procurar suprimentos para se alimentar e espaços para se proteger das marés — essa é a rotina de Piranesi. Além, claro, de adorá-la: adorar o espaço que lhe fornece abrigo, proteção, comida.

Esta é, no fim, uma economia de obra bastante simples. Apesar do mundo deslumbrante visualmente, há duas personagens dedicadas a um fim (entender a Casa e procurar a Verdade) em um espaço limitado com ações limitadas. O próprio Piranesi parece limitado como narrador: conta seu cotidiano de maneira direta e simples, sem aprofundamentos e referências a um passado (que ele mesmo parece não estar consciente de ter). Isso fica evidente nas interações com o Outro, nome dado à única outra pessoa viva no espaço por ser justamente aquele que não é eu. Ao mesmo tempo, há certos indícios que rapidamente são compreendidos pelo leitor como elementos deslocados na narrativa — o fato, por exemplo, em um mundo tão extraordinário, de o Outro trazer e insistir que Piranesi tome regularmente seus multivitamínicos.

Se você leu a resenha até aqui, imagino que talvez já tenha lido o livro ou não se importe com isso. Um pouco de contexto, se for o segundo caso: A Casa se trata de um mundo mágico, acessado apenas pelos poucos que descobriram como chegar lá e que leva pessoas ao esquecimento depois de estadias longas. Piranesi era um jornalista que investigava o tema quando é levado e deixado lá pelo Outro para desenvolver pesquisas e buscar a verdade para tudo (teoria do Outro, diga-se). Aos poucos, perdeu totalmente a consciência de si mesmo — que retoma parcialmente quando reencontra seus diários e quando uma policial do mundo “real” vai em sua busca.

A grande questão do livro é justamente essa construção do ponto de vista de quem não sabe de tudo isso, mas descobre enquanto narra. É justamente o que traz o fator surpresa para a leitura. Isso fica um tanto evidente, por exemplo, com o uso frequente de substantivos comuns com letras maiúsculas, o que sugere que Piranesi toma para si a função adâmica de entender, nomear e classificar aquele mundo — apesar de fazer isso com conceitos e categorias que já conhece desde sempre. A questão é que ele não se lembra de nada disso, e sente como se realmente tivesse descobrindo tudo pela primeira vez.

O espaço labiríntico é, assim, uma espécie de periferia do mundo real — acessado por poucos, à margem do litoral, é um mundo para onde se vai esquecer e ser esquecido. Piranesi passa por um isolamento de vários tipos. É isolado de sua família (que o considera desaparecido), isolado de seus pares, mas também isolado de si mesmo e sua consciência.

Se em Jonathan Strange e Mr. Norrell Clarke cria uma imagem de magia grandiosa, histórica e documentável (ainda que o isolamento e o esquecimento já tenham sido explorados nos enredos secundários de algumas das personagens do romance), Piranesi mostra a magia da introspecção e do esquecimento. A escolha do ponto de vista ressalta esse aspecto, é claro, mas o espaço também desempenha um papel crucial nessa narrativa, já que o labirinto é em si o símbolo desse esquecimento, isolamento e limitação de escolhas.

Numa leitura que aproxima o livro da biografia da autora, vale mencionar que Clarke, entre os 16 anos que separam o lançamento de seus romances, sofreu profundamente de síndrome de fadiga crônica, condição ainda sem tratamento. A autora já afirmou o quanto a doença a afastou do mundo e do convívio em geral. Em uma entrevista para Justine Jordan, do The Guardian, diz que se sentia alheia ao mundo e condenada a ficar em um mesmo lugar. Piranesi se aproxima profundamente desse sentimento — alguém que se desconecta de si mesmo por uma força maior, sem entender o que está acontecendo e sem ser capaz de sair desse círculo vicioso, tendo até dificuldades de entender o que os outros desempenham ao seu redor.

Eventualmente, Piranesi é encontrado e lentamente consegue retornar ao seu mundo anterior. Mas é profundamente marcado pela experiência da Casa e também já não consegue mais se desapegar disso. O mundo e suas inúmeras possibilidades, sem contar o grande número de pessoas (“Quase me esqueci de respirar. Por um instante, tive noção de como seria o Mundo se, em vez de duas pessoas, houvesse milhares”), o assustam. No conto Os dois reis e os dois labirintos, Borges mostra que o labirinto mais difícil do mundo é a eterna possibilidade de um deserto.

Piranesi
Susanna Clarke
Trad.: Heci Regina Candiani
Morro Branco
256 págs.
Susanna Clarke
Nasceu em Nottingham, na Inglaterra, em 1959. É autora dos romances Jonathan Strange e Mr. Norrell (2004) e Piranesi (2020) e do livro de contos The Ladies of Grace Adieu and Other Stories (2006), inédito no Brasil.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

Rascunho