Microcosmo do mundo

"O condomínio", de Frederico de Oliveira Toscano, nos faz reconhecer que não somos lá tão diferentes daqueles que criticamos
Frederico Toscano, autor de “O condomínio”
01/06/2025

A ideia do prédio (ou de qualquer espaço fechado e coletivo) como microcosmo do mundo é um tema recorrente em várias obras literárias. Poderia citar, por exemplo, A casa dos espíritos, de Isabel Allende, onde a mansão da família Trueba funciona como um palco para gerações, dramas familiares e transformações sociais e políticas do Chile, fazendo do universo da casa o espelho do país. Ou o romance O edifício Yacubian, de Alaa Al Aswany, que retrata a vida de diversos moradores de um edifício no Cairo no qual cada apartamento abriga uma história que reflete as contradições do Egito contemporâneo. E há ainda o fenomenal A vida modo de usar, de Georges Perec, obra-prima do Grupo Oulipo, que relata com riqueza extrema de detalhes a vida dos moradores de um edifício parisiense fictício, situado no número 11 da Rue Simon-Crubellier. Para a literatura contemporânea, o espaço individual como miniatura do coletivo se apresenta como um tema gratificante porque já traz no próprio motivo central tanto a possibilidade de decalcar o grande drama universal dos pequenos reveses individuais como de propor um lúdico jogo combinatório.

Precária estabilidade
Em O condomínio, estreia de Frederico de Oliveira Toscano no romance, a tragédia começa com uma mancha de infiltração. Um leve, mas claro indício de que algo em breve pode começar a ruir, tanto na precária estabilidade dos personagens como na democracia atual de seu país, que parece construída sobre o solo lamacento de traumas históricos mal processados.

O livro é dividido em seis atos de diferentes tamanhos, lembrando um pouco a dramaturgia teatral. Esses atos, por sua vez, são divididos em capítulos, nos quais passamos de um apartamento a outro, subindo, descendo ou indo e voltando no mesmo andar. Os primeiros quatro atos fecham com uma reunião de condomínio e um capítulo na portaria. Nos atos cinco e seis, tanto as conversas na portaria como as reuniões cada vez mais conflitantes dos condôminos se inserem no meio da estrutura narrativa, como que a espelhar o desmantelamento paulatino tanto do edifício como das vidas que acolhe em seu interior mofado e poroso.

O prédio tem três andares, contendo duas unidades cada. Quase todas estão ocupadas, com exceção do misterioso apartamento 301, onde algo terrível parece ter acontecido. Algo que, mesmo sem sabermos do que se trata, intuímos desde o início abrigar o epicentro da maldição que vai tomando conta do edifício. Também os personagens parecem representar, apesar de sua complexidade individual, cada um uma peça diferente de um tabuleiro maior, reproduzindo padrões de comportamento da sociedade em que se inserem.

No 302 — ou seja, bem ao lado do funesto 301 — mora Isalda, uma idosa solitária, amarga e paranoica que, com exceção dos momentos em que cuida das plantas ou do netinho, parece não ter ocupação senão bisbilhotar a vida alheia. Logo abaixo, no 202, dividem um casamento infeliz Beatriz e Téo, ela, uma doutoranda que mal sai de casa e ainda assim não consegue escrever palavra; ele, um fotógrafo narcisista e mulherengo, sem olhos para a esposa. Temos ali o típico machismo sutil dos dias de hoje, onde o homem é simpático e dócil e a mulher se curva à sua vontade sem saber muito bem por que e nem mesmo se dar conta disso. No 201, o síndico, Carlos, um ex-militar nostálgico da ditadura, divide seu apartamento com um feroz cão rottweiler que mais parece uma arma do que um animal de estimação. A biografia de Carlos é forjada no histórico de autoritarismo e servilismo inscrito no imaginário coletivo do país. No primeiro andar, temos os representantes da ala mais liberal da sociedade: no 101, Doralice, uma pianista que ganha a vida como prostituta, e no 102, Jonas e Anderson, um casal homossexual à espera de seu primeiro filho, a ser gerado por uma prima. E, por fim, há o porteiro noturno, Tião, que funciona como um coro trágico de uma só voz, testemunhando e comentando a ação sem julgar.

Espelhando a realidade interna e externa, os moradores do condomínio parecem não medir esforços para manter intacta a precária fachada de suas existências, apesar de estar claro que a estrutura se desmantela aos poucos. Assim, a leitora1 vai se defrontando cada vez mais com uma tragédia anunciada, perguntando-se até que medida todos nós não fazemos a mesma coisa, desesperados que somos para manter de pé os nossos sonhos, e se o recalcamento não seira um instrumento válido para continuar vivendo num mundo em ruínas. E talvez esse seja o grande trunfo deste romance: colocar-nos diante de um espelho e nos fazer reconhecer que não somos lá tão diferentes daqueles que criticamos.

Expressões empoladas
No que tange à linguagem, no entanto, pareceu-me uma má opção o formato mais convencional, quase obsoleto, usando comparações e expressões empoladas e forçadamente “literárias”, como por exemplo:

Apenas a escutava, sua música brotando do assoalho qual videiras a se agarrar em seus tornozelos, forçando-a a dançar abraçada a si mesma.

Ou:

Olhou para a pilha de livros… Eram como torres de abadias medievas, a vigiar e julgar, punindo-a por sua incapacidade de penetrar seus mistérios, esoterismos herméticos quais calabouços.

E há ainda uma certa tendência ao didatismo, com o autor tirando as conclusões para a leitora. Esses pequenos percalços tiram, a meu ver, um tanto da força narrativa. Porém, o texto reganha a tração exatamente nos momentos em que abdica das explicações e da pompa linguística, quando a escrita enxuta diz sem dizer, não subestimando a imaginação da leitora, como na cena de um dos raros encontros entre Beatriz e Doralice. Nela, Beatriz comenta quase en passant que tinha vontade de desaparecer, cessar de existir. No que Doralice:

Deixou-se estar naquela quietude, ouvindo o som das cigarras e dos sapos no parque logo ali ao lado. Depois virou-se para a vizinha e a olhou nos olhos, antes de dizer que homem era uma desgraça mesmo. Ela a encarou de volta, comentando que dona Isalda havia dito a mesma coisa, não fazia muito tempo. Sorriu sem humor ao se ver obrigada a concordar. Jogou fora a bituca alaranjada e passou um braço sobre os ombros de Beatriz. Assim ficaram até quase o sol nascer.

À parte estes detalhes, o romance apresenta-se muito bem estruturado e flerta com o gótico, o realismo mágico, o horror e a tragédia grega — com direito a alusões a Édipo e Medeia, além de um final catártico seguido por uma espécie de “Deus ex machina” — sem se deixar encaixar em nenhuma gaveta, o que me parece bastante original e contemporâneo.

Enquanto retrato da nossa sociedade e dos diversos aspectos das relações humanas, O condomínio revela-se um livro consistente e de rápida leitura, apesar de suas mais de trezentas páginas. E, como nas peças de teatro da antiguidade, depois da catarse, deixa-nos com a reflexão: onde não há aprendizagem histórica, o final de uma tragédia será apenas o terreno fértil para a próxima.

O condomínio
Frederico de Oliveira Toscano
Cepe
316 págs.
Frederico Toscano
É recifense e historiador. Publicou as obras À francesa: a Belle Époque do comer e do beber no Recife (terceiro lugar em Gastronomia no Prêmio Jabuti de 2015), O terceiro homem: a fotografia e o Recife de Ivan Granville; e Yes, nós temos Coca-Cola, todas pela Cepe. Na ficção, escreveu Carapaça escura (Patuá) e O rinoceronte na parede (Urutau), semifinalista no Prêmio Oceanos 2022.
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho