Ilusões perdidas

Em “Blonde”, que completou 20 anos e ganhou reedição nos Estados Unidos, Joyce Carol Oates recria a vida da atriz Marilyn Monroe, morta aos 36 anos
Marilyn Monroe é o centro de “Blonde”, de Joyce Carol Oates
05/10/2020

Dois mil e vinte marca o ano de aniversário de 20 anos de Blonde, uma biografia ficcional e hagiográfica de Marilyn Monroe, com uma edição comemorativa que acaba de ser publicada nos Estados Unidos. Antes de ter sido ultrapassado por Night. Sleep. Death. The Stars neste ano, Blonde (com umas 800 páginas, de acordo com a edição) era o livro mais longo de Joyce Carol Oates, possivelmente a escritora norte-americana mais prolífica. É um romance excessivo no sentido triplo da extensão, da imaginação e da vontade de compreensão.

Publicado então na virada do milênio, Blonde reavalia o século 20 de uma perspectiva retrospectiva privilegiada: do interior do país que se tornou a maior potência política e simbólica de seu tempo. Oates dá uma atenção particular à forma como os mitos por trás da construção desse império — a busca da felicidade inscrita na Constituição dos Estados Unidos de 1776, o espírito democrático, a igualdade das pessoas, o universalismo dos direitos, o vício gratificante pelo trabalho, um individualismo indissociável da ideia de carreirismo, a livre concorrência, as culturas da celebridade, da violência e do consumo, a evidência de sua grandiosidade — revelam ironias que lhes seriam inerentes, que anulariam esses mesmos mitos. Oates se interessa mais precisamente pelo que esses mitos fazem a indivíduos.

A história dos Estados Unidos — os anos da Grande Depressão, os anos Roosevelt, os anos depois da Segunda Guerra Mundial até o começo dos anos 1960 — não é, em Blonde, a história de uma democracia. A esse mito, Oates opõe um imaginário de contos de fadas, com reis e rainhas, príncipes e princesas, reencarnados em políticos e celebridades; com palácios dourados inacessíveis e jardins majestosos escondidos nas colinas de Hollywood e em Santa Monica, em Mulholland Drive e em Sunset Boulevard, na enseada de Los Angeles. Embora os Estados Unidos estejam possivelmente deixando de ser a potência simbólica que foi no século 20, essa região da costa oeste continua exercendo um poder nada insignificante sobre o resto do mundo — um poder que se traduz pela concentração de capitais financeiro, tecnológico e simbólico e pelo controle oligárquico, de maneira desproporcional, sobre os fluxos globais de informação — e que Blonde antecipa, também.

Mas em vez de permanecer nessa inversão imaginativa que poderia deslizar para uma denunciação monossêmica fácil, Oates enfrenta seu assunto que carrega a marca da ambivalência: a história, a vida espiritual e privada, a psicologia de Norma Jeane Baker, uma quase órfã (A mendiga), nascida pouco antes do colapso de 1929, que se transformará na estrela central desse império (A bela Princesa), até virar uma mercadoria desrealizada (A princesa em chamas), descartável e infinitamente reproduzível.

Imagem da disfunção
Romance da artista e da atriz, Blonde reescreve o mito da ascensão social próprio a seu tempo, marcando seu julgamento e sua distância a respeito do que é, também, uma história de fracasso e de uma adaptação impossível. É dessa forma que Darwin — um dos modelos de Blonde e, mais amplamente, de Oates — é descontruído: a adaptabilidade e a perfectibilidade necessárias à luta pela existência, em Blonde, conduzem à criação de um indivíduo novo que se torna a imagem da disfunção do seu ambiente, o que atenua a ideia de um princípio geral (a seleção natural) que atuaria em favor dos seres. À medida que Monroe se adapta a Los Angeles, ela se transforma numa monstruosidade técnica que conduz mais à sua extinção que à sua sobrevivência.

A força de Blonde é de imaginar nas entrelinhas uma possibilidade alternativa: uma garota do povo, anônima e sem personalidade, que mantém uma relação não instrumental e não industrial ao trabalho e à perfectibilidade do corpo. (Numa entrevista que lembra essa possibilidade, Oates fala de si mesma como “um copo d’água transparente”.) Um ideal que é o inverso, então, do mito do arrivismo norte-americano, e de suas difusões e variações que marcam uma parcela considerável da conduta urbana moderna.

À ausência de personalidade de Norma Jeane Baker, que se torna a aptidão inconsciente e versátil para se tornar o centro gravitacional de Los Angeles, Oates opõe assim uma outra maneira de conceber essa atopia, que se percebe na busca de uma nudez e de uma translucidez estilísticas e na vontade de um olhar virgem sobre o mundo. O retrato de Marilyn Monroe no romance carrega a marca dessa não-justaposição infinita e misteriosa: a imagem extrema da narrativa de si do capitalismo norte-americano, e a utopia de um pensamento e de uma atividade livres dos imperativos do rendimento e do lucro.

Futurista, pornográfico, ultraviolento, ao mesmo tempo hiper-realista (com descrições macroscópicas do corpo humano, das secreções, do que se tem o hábito de se esconder) e surrealista (com imagens alucinatórias que evocam cemitérios, necrotérios, cadáveres, pássaros empalhados, vampiros e distorções visuais provocadas por anfetaminas e barbitúricos, por máquinas de viajar no tempo), Blonde anuncia ainda uma nova forma de sadomasoquismo que remete à reunião estranha que eu acabei de evocar: a vergonha da mercantilização inescapável de si na era capitalista, concretizada por um leque extenso de imagens que tem como melhor exemplo a boneca inflável, confirma e recusa a ordem econômica; conduz a uma libertação espiritual peculiar, na qual o sujeito se reconhece cúmplice e ausente.

Almas vendidas
Escrevendo de forma cética a amplificação tonal, a saturação cromática e o gosto por letras maiúsculas que caracterizam o universo norte-americano em suas narrativas hiperbólicas de glória, Blonde é enfim um romance consciente do fato que é impossível reescrever ilusões perdidas, no século 20, sem levar em conta a arte que permite a projeção visual e sonora de sonhos, o dispositivo que engendrou um vínculo inédito à imaginação: o cinema. Absorver Hollywood no interior do romance é confirmar um espaço de interdependência entre as duas formas de expressão: reativar o romance da atriz é entremear a dimensão performativa da literatura e a dimensão linguística da atuação.

A formação de Norma Jeane Baker não é, assim, unicamente literária. É uma formação que se faz através da ideia que o corpo, em sua fragilidade e nervosismo, através de seus movimentos involuntários, seus ataques de pânico, seu medo de se apresentar em público (o dito stage fright), seus problemas de dicção, sua respiração cortada, continua sendo o meio principal da expressão de um indivíduo. Por essa razão, a descoberta da língua se vincula à imagem, recorrente em Blonde, do strip-tease: a nudez e a translucidez visam a atenuação da timidez e do medo, na palavra e no corpo; e conduzem ao desbloqueio de uma impulsão natural.

A língua referente ao projeto de Blonde é um ritmo puro ao mesmo tempo solitário e, ainda, comum, que depende do outro para existir: que faz da escrita da alteridade, a respeito de uma personalidade que se transformou num vidro sobre o qual todos desejos são projetados — e que é a espinha dorsal do projeto de um romance biográfico —, uma questão necessária para refletir sobre a vida da mente.

Apesar disso, Blonde foi para mim um romance que li em solidão: nenhum dos meus amigos ou colegas na faculdade se interessou por lê-lo. Durante a defesa da minha tese de doutorado na Sorbonne (e que trata, entre outros romances, de Blonde), o livro foi raramente evocado. Quanto à tradução brasileira em dois volumes, que está esgotada há anos, ainda é possível achar um ou outro exemplar na Estante Virtual — assim como o caso de mais obras-primas sobre o século 20, que seja 2666, de Roberto Bolaño, ou O enigma da chegada, de V. S. Naipaul.

Fica uma pergunta, afinal: por que ler Blonde hoje e no Brasil? Aqui no Brasil, onde não somos poucos os que, como Norma Jeane Baker, nos submetemos mais e mais à vergonha de nos transformarmos em almas vendidas; onde não somos poucos a vivermos ainda sob os efeitos dos mitos de um tempo, embora nos sintamos mais e mais alheios às suas capacidades de redenção; onde somos talvez muitos a pensar uma alternativa. Para além dos 20 anos de aniversário, esta foi a pergunta que me levou a escrever este texto e que espero ter respondido – à maneira de Oates, nas entrelinhas –, também.

Blonde
Joyce Carol Oates
Ecco/HarperCollins
768 págs.
Joyce Carol Oates
Nasceu em 1936, em Lockport, nos Estados Unidos. Escreveu dezenas de romances, livros de ficção, memórias, volumes de crítica literária e de poesia, além de escrever regularmente em seu Twitter (@JoyceCarolOates) sobre literatura e assuntos da atualidade. Seu último romance, Night. Sleep. Death. The Stars, foi publicado em 2020, no mesmo que ano Blonde ganhou uma reedição comemorativa de 20 anos.
Luciano Brito

Nasceu em Fortaleza (CE), em 1989. É ensaísta e doutor em literatura comparada pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III.

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