Iluminado de sombras

A coletânea “Hálito das pedras”, de Antonio Carlos Secchin, traz uma poesia de contemporaneidade indiscutível e referencia autores esquecidos
Antonio Carlos Secchin, autor de “Hálito das pedras”. Foto: Fernando Rabelo
18/10/2020

O conformista é um aliado da desgraça; o político prefere fingir que não a vê; o homem de ação quer vencê-la a qualquer custo. Cabe ao poeta o papel de contornar o infortúnio com ideias e palavras. Ou com ideias ou palavras. Refiro-me à possibilidade que um poema tem de se manifestar para além da ideia que aparentemente enuncia, em benefício das palavras que utiliza. Ou por causa delas.

É assim que se comporta a poesia de Antonio Carlos Secchin, ao longo dos poemas selecionados por Diego Mendes Sousa para a coletânea que ele chamou de Hálito das pedras. São poemas recuperados  de onze livros anteriores do autor, sobretudo de Desdizer, o mais recente, de 2018, em seções com títulos relativos à natureza de pedras.

Há de tudo por aqui, num só procedimento poético. Desde a mais sofisticada poesia imagista, devedora de T. S. Eliot ou Jorge de Lima, até versos e poemas de memória popular, passando por rápidas citações cultas ou pequenas lembranças à altura, por exemplo, de Oswald de Andrade, como nessa pedra fundamental:

Me aprendo em teu silêncio,
feliz como um portão azul.

Ou, mais rebuscado enquanto referência, numa pedra de fogo:

A poesia está morta.
Discretamente,
A. de Oliveira volta ao local do crime.

O fôlego do poeta é mais natural no longo alcance de algumas magníficas estrofes esculpidas com empenho e rigor. Estrofes que parecem se libertar de uma pressão silenciosa, da qual só podem escapar através da beleza de ideias que explodem como nascidas de uma situação limite de sentimentos em combustão. Como aqui, neste trecho de soneto, em versos dodecassílabos:

A luz maciça desse dia se prepara
para deter no corpo vivo de um momento
o que vai nele como coisa inacabada,
desejo ríspido de escuro esquecimento.
(…) Pétala e puta, dobra de um desejo tenso
na margem do fogo impaciente que dispara
densa fumaça nas fissuras do cimento.

Palavras que rompem, por necessidade de expressão, o silêncio de onde surgiram, referência do que o poeta sente e repete em tantos versos ao longo de sua obra, como essa obsessão pelo escuridão, na chave de ouro de outro poema: “negra luz sobre as cinzas de um soneto”. Curiosamente, no primeiro quarteto do soneto acima, encontramos a expressão “corpo vivo”.

Não tenho o direito de pensar que o poeta desejasse, muito menos propositadamente, citar o título do romance injustamente esquecido de Adonias Filho. Mas é impossível não assinalar a mesma origem familiar, artística e autoral, das duas obras. E que, no caso de Adonias, sua obra prima, Corpo vivo, tenha desaparecido como um corpo morto de nossa literatura de ficção, levando consigo uma categoria de prosa poética ou poesia ficcional. Além da imensa qualidade do poema, a lembrança desse “corpo vivo”, na obra de Secchin, é uma muito oportuna provocação literária.

Toque contemporâneo
Me assombra a injustiça que grandes escritores brasileiros sofreram devido a suas posições políticas, sobretudo na primeira metade do século 20. Adonias Filho foi um deles.  A urgência da questão social no Brasil havia posto, em primeiro plano, nossos escritores ditos “engajados”, como Jorge Amado, José Lins do Rego ou Graciliano Ramos (todos, de fato, geniais), ditando um rumo hegemônico na apreciação da literatura brasileira. Escritores com outra formação, como Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Octávio de Faria e o maior deles, Jorge de Lima, foram para a sombra dos critérios literários, injustamente ignorados.

Com algum rigor, podemos dizer que aquele também não foi um bom momento para a glória de Machado de Assis, constantemente comparado, com certo menosprezo, ao indianismo de José de Alencar ou ao qualunquismo de Lima Barreto. O nacional-popular é que devia prevalecer sempre. Esse equívoco na literatura brasileira só começa a ser corrigido com o sucesso de Guimarães Rosa, um escritor cuja obra sempre justificou resenhistas à direita ou à esquerda. Como na poesia de Secchin.

É claro que Secchin não pertence mais ao universo daquela questão típica do século passado. Sua poesia possui uma contemporaneidade indiscutível, embora afligida por valores que podem não ser de seu tempo, de vozes do passado que ouviu agora. Ele já nasceu, como autor, num mundo em que se põe em dúvida essa fronteira arbitrária entre direita e esquerda, na obra de arte e em outras obras. Mas é impossível ignorar, em seus poemas, a presença de grandes injustiçados do nosso pós-modernismo. Como é impossível, aqui, ignorar o Jorge de Lima de Túnica inconsútil, em poemas como A ilha, onde, aliás, vamos encontrar nova referência ao corpo vivo (“esse corpo que me habita”):

Nessas águas que desfiam
um sopro claro em meio aos campos de setembro,
contemplo esse corpo que me habita
e que limita a voz com que disfarço
o rastro de impossíveis oceanos.
(…) E olhamos a ilha assinalada
pelo gosto de abril que o mar trazia
e galgamos nosso sono sobre a areia
num barco só de vento e maresia.

Ou os sonetos de rigorosa construção, qualidade igualmente jorgeana:

O menino se admira no retrato
e vê-se velho ao ver-se novo na moldura;
o tempo, com seu fio mais delgado,
no rosto em branco já bordou sua nervura.
(…) ele há de ver-se mais antigo no futuro,
ao ver-se no menino do retrato.

Dessa mesma família de versos, há, no livro Desdizer, um extraordinário poema que passou a Hálito das pedras de outro modo. Enquanto, no livro original, ele é tratado como capítulo de um conjunto de cantos específico e especial (Água), na antologia organizada por Diego Mendes Sousa os versos nos são oferecidos como um só poema, estrofes de uma só inspiração. Ouso confessar que prefiro a versão original de Desdizer, que nos expõe mais naturalmente ao choque de cada um, na tradição da poesia de origem anglofônica. Como nos primeiros dez versos elegantes e poderosamente embalados, dos quais reproduzimos aqui a primeira quadra, escrita no ritmo sensual de uma balada inglesa:

Há um mar no mar que não me nada
e não se entorna em ser espuma ou coisa fria.
Me sinto cheio de palavra e de formato,
murado em mim sob a ciência desse dia.

Poeta da palavra
Secchin é um poeta da palavra, sem procurar nelas sentidos na moita por trás delas. Quando precisa, ele sabe transportá-las em outras direções, quando é necessário e quando lhe dá prazer. E, em geral, as alimenta com a memória mais popular da poesia, o retorno de extravagância lírica de um passado sendo vivido outra vez (“E eu já nem sei o que fazer de tanto/ passado vindo em busca de socorro”). Não como lembrança antiga, mas como experiência nova, se dando pela primeira vez. Não apenas em poemas narrativos, esboçados aqui e ali (“Tacaram pedra na Brasilia da Janete/ Me disseram que foi vingança do Batista”), mas sobretudo em poemas com métrica de tradição popular, como se estivesse escrevendo aquilo que seus leitores e ouvintes gostariam de ter escrito um dia. Poemas com os quais se sentem identificados, até tomar-lhes a autoria.

E Secchin sabe que é assim, rendendo-se à “obra” de seus leitores, como se encontrasse os versos perdidos no fundo de uma gaveta (“pois lá do fundo eu traria/ a chave de algum passado/ que aprisionado me espia”), ou na memória de amores mais ou menos vulgares, vividos ao longo de gerações:

Senta uma puta perto da taça.
Arde uma tocha acima da mesa.
Salta uma estrofe em cima da coxa.
(…) A mão do poeta passeia na moça.
O seio da moça é uma pétala gasta.

No momento em que os cantos com esse caráter surgem, há, no entanto, uma espécie de contrição, uma tensão na liberdade conquistada, uma fratura de guerreiro na alma. Um receio de que, sendo tão inspirado, aquilo deixe de ser, segundo os mais agudos experts, poesia. Pois a poesia deve exigir um valor mais alto, um preço que se paga com a própria vida (“todo poema é póstumo”). Refiro-me a cantigas que nem sempre são compostas de versos inocentes, mas que também nem sempre são compostas no rigor da intuição mais profunda. Nascem apenas do encantamento de uma imagem diante do poeta; como qualquer um é capaz de admirar, da janela aberta, o mais belo sol da manhã, claro e sem restrições. E até cantá-lo com suficiente consciência e embalo:

Senhora, é doença tão largada
meu querer de vossa boca tão serena,
que até mesmo a cor da madrugada
é vermelha de chorar a minha pena.

Outra vez, curiosamente, um poeta tão sofisticado como Secchin, um poeta de sentimentos tão finos, raros e superiores, declarados de modo culto, é capaz de uma certa poesia esperta, comentários de um cotidiano vulgar, das esquinas por onde moramos. Nesses momentos tão mágicos, às vezes míticos, se desprende uma luz de informação objetiva que desenha a face de um poeta exangue, como nos dois Sonetos da boa vizinhança, dos quais transcrevemos esses versos do segundo:

Se quiser, vai lá em casa para assistir o jogo.
A Claudete eu não pego de jeito nenhum.
Esse rapaz, não boto minha mão no fogo.
A coisa rola solta lá no 101.
(…) Eu não invejo o morador da cobertura,
o sol da tarde deve ser uma tortura.

Valorização do poema
Secchin sabe de seu valor, senão não seria tão preciso, ao mesmo tempo que objetivo e criativo no que faz. Mas, para valorizar o poema, ele não se valoriza. Quando seus versos tratam dele mesmo, mesmo que não sejam tão confessionais, é sempre impiedoso com a própria inspiração (“O máximo, que mal consigo,/ é chegar a Antonio Secchin”). A forma que escolhe, na maior parte das vezes, não exige do criador um produto de luxo; mais uma vez, o poeta não se valoriza para valorizar o poema. Seu tratamento sutilmente requintado, que ele pratica com um sorriso que mal disfarça, é bem parte de sua natureza. Como se não quisesse ser flagrado rindo, porque o riso pode eliminar os sinais do trauma da criação. E Secchin é capaz de escondê-los, talvez disfarçá-los, mas nunca eliminá-los.

Em O banquete e Repente, dois dos últimos poemas de Hálito das pedras,  o poeta nos dá exemplos preciosos de seu imagismo popular de extraordinária eficiência e riqueza, soando às vezes com uma densidade que confunde o leitor. Confunde porque é como se fosse uma operação de poesia que sabe o seu lugar, inebriante porque não se preocupa com ideias que nos enganam, de uma simplicidade que nos envolve sem apelação, uma modéstia lírica que nos comove e consome (“sou passageiro que chega ao inferno/ em voo lotado e na classe econômica”). Como um John Donne pós-renascentista, rumo à modernidade que só ele sabe o que é.

E, finalmente, no poema O galo gago, um canto simultaneamente clássico e popular, alternando diferentes formatos de verso, dos mais tradicionais aos mais elucubrados, sempre pela banda de redondilhas, Secchin nos entrega uma espécie de manifesto por uma poesia brasileira que parece desaparecer nesse momento, subestimada por poetas enfeitados de inspiração solene e fabricação de luvas finas. Filho de Vinicius de Moraes com Fernando Pessoa, ele contorna, sem máscaras de disfarces, o infortúnio da poesia brasileira de importação:

Toda a mata matutou:
se a Noite vai e o Sol não vem,
qual seria a cor de um céu
habitado por ninguém?

Mas ele sabe quem a habita e sabe quem ele é. “A poesia”, diz Secchin na antologia de seus poemas, “é igualmente um espaço de sombras, tentativa de perceber o escuro no escuro. Ainda quando a poesia seja noturna, o poeta não deixa de ser um iluminado. Mesmo que, no caso, se possa dizer: um iluminado de sombras.” Isso também poderia ser dito, de outro modo, através de versos dele próprio, como em muitos de seus belos poemas:

A casa não  se acaba na soleira,
nem na laje, onde pássaros se escondem.
A casa só se acaba quando morrem
Os sonhos inquilinos de um homem.

É isso a poesia de Antonio Carlos Secchin: as pedras de um poeta que, como disse sobre ele Fabio de Sousa Coutinho, é “um mestre de luzes”.

Hálito das pedras
Antonio Carlos Secchin
Penalux
162 págs.
Antonio Carlos Secchin
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1952. Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionou por mais de 35 anos, é membro titular da Academia Brasileira de Letras, da Academia Carioca de Letras e do PEN Clube do Brasil. Publicou “Desdizer” (2018) e outros 15 livros, de ensaio e poesia.
Carlos Diegues

É cineasta. Ao longo de sua carreira, realizou mais de 20 filmes de longa-metragem. Entre eles, “Um trem para as estrelas” (1987), “Tieta do Agreste” (1995), “Orfeu” (1999) e “Deus é brasileiro” (2003).

Rascunho