Imagine-se conhecendo alguém, numa conversa em algum lugar casual, como um salão de espera de um dentista, por exemplo.
Você — Puxa, esta demora sempre me deixa um pouco angustiado. Dentista, sabe é sempre aquela coisa, né? A gente parece que volta a ser criança, pelo menos no medo. Tá aqui por quê? Canal?
A pessoa — Nada. Rotina. Sem medo. Sem trauma. É a vida.
Você — Ah tá…
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As suas frases longas (e curiosas) tiveram como resposta poucas palavras às quais você pode considerar como fim de papo.
Falando em forma, estilo talvez, a situação da sala de espera do dentista seja muito parecida com o romance Moscow, de Edyr Augusto. Já nas duas primeiras páginas o ritmo é ditado. Três marginais, vítimas da sociedade, malandros, vagabundos, jovens delinqüentes, ou o quer que sejam, atacam um casal que se dedicava aos prazeres da carne numa praia. Carteira roubada, ele e ela estuprados. Tudo com um tom lírico e inconseqüente, com direito a uma poética descrição da ilha onde se passa a história.
Moscow, alcunha dada pelos personagens à Ilha Mosqueiro, próximo a Belém.
O ritmo é um elemento atrativo ou repulsivo do romance. Ele está presente e já sugere ao leitor um pacto. Se você aceitar correr na velocidade imposta pelo piloto-autor, certamente terá uma boa viagem. Mas é fundamental que aceite, de preferência sem o cinto de segurança, sem as amarras e preconceitos, porque a história desce na podridão do personagem principal. Uma podridão mostrada com uma naturalidade que assusta, quando você se vê entendendo os motivos de um estupro, do linchamento de um cara de uma gangue rival, ou quando você divide com o personagem o assombro diante de uma menina morta, assunto da semana na ilha, e ele não tendo a certeza se é culpado ou não, mesmo lembrando do rosto dela, poucos minutos antes do efeito etílico subir à cabeça.
“Heavy metal. Não sei o que acho da música. Me diverte. Gosto bem alto. A gente bota pra fora.” Trecho do livro, na voz do personagem principal, que serve como orientação para o leitor. O livro é heavy, o ritmo é emprestado. Bicicletas são roubadas; baseados, fumados; a mulher gravida é estuprada; o vigia morre num assalto… Tudo dividido em pequenos capítulos de pouco mais de uma página que nos fazem pensar (ou melhor, “não pensar”): a vida é isso aí. Tamo levando! Cada um se defende como pode, por vezes, atacando.
Graça é o nome da garota da praia por quem o personagem narrador se apaixona. Dela, procura esconder sua vida noturna (embora a ausência de bronzeado desminta), a vida delinqüente, as transas (forçadas ou não) pelos caminhos da Ilha, as brigas, as mortes, os assaltos, a vida que leva. Ela simboliza a promessa de uma vida direitinha. Bonita, de ir à praia com a família, mas com um pequeno problema: Beto, o cara que está “marcando presença”. Como uma cobra, o narrador estuda os movimentos do rapaz até que ele não lhe ofereça mais perigo. Tira o rapaz do caminho, sacando-lhe a vida. É o desejo falando mais alto, gritando em Moscow, limpando a trilha, buscando uma fuga da vida torta que pai algum aprovaria. A mão que mata Beto é aquela desesperada quando percebe que todo o resto do corpo já afundou num mar que se chama podridão.
Mara é a mulher mais velha, com quem tem uma transa repentina. Mais do que a sedução experiente de uma mulher experiente, é a iniciação para um mundo adulto que ela lhe traz. “Agora eu já posso qualquer coisa”, ele diz. Se faltava algo para conquistar graça, agora (ainda mais depois de ter se livrado de Beto) este algo já se fez presente. Ele se tornou um homem, título dado pelos orgasmos sucessivos de Mara. O Desejo lhe faz crescer.
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Voltando à sala de espera do dentista. Imaginemos que o seu interlocutor engate num assunto por vários minutos, mesmo em frases curtas, que às vezes parecem esquecer do conceito “sujeito-verbo-predicado”. “Bom, o cara fala assim mesmo”, talvez você pense, “o negócio é entrar na dele”.
Lá pelo meio de Moscow é isto que se passa. O Heavy Metal já mostrou que é assim mesmo, ame-o ou deixe-o. E ninguém deixa Moscow pela metade. Até mesmo um interesse mórbido pelas atrocidades do personagem pode fazer com que o livro seja lido até o fim. E é lá pelo fim que o papo (lembre-se da sala de espera do dentista) engrena. Como quem já saiu da superficialidade das conversas cotidianas, Santo (o nome do personagem) deixa fluir o pensamento, e só então compartilhamos suas confidências. Agora não mais como leitor, mas como cúmplice, como irmãos na desgraça da vida. E morremos junto com ele. E não entendemos a morte, tal como ele… A menina morta e depois estuprada não justifica, a desforra no cara da gangue rival não justifica, a grávida violentada não justifica, o paquera da Graça enforcado pelas próprias mãos também não justifica… Nada justifica a morte de Santo. Sabemos que ele não foi dos melhores moradores deste planeta, mas a morte não lhe cabia.
Poderosa narrativa de Edyr Augusto. Se no começo de Moscow parece que peca pela rapidez, pelo ritmo que chega perto de um depoimento apressado, no fim ele mostra porque decidiu contar o que imaginou sobre a Ilha Mosqueiro. Antes que a gente (leitor) pense com estes ouvidos errados do preconceito, ele quis mostrar o lirismo da vida podre, ou a podridão da vida lírica. Para ter sucesso, realmente não tem espaço para a reflexão do leitor. Isso fica pra depois. Primeiro, o envolvimento com Moscow, depois pensar sobre.
Leitura feita, fica a frase do personagem narrador, quando descreve uma festa regada a bebidas, dança e muita música alta. “Há em mim uma festa muito maior.” Ou seja, a não ser que você não faça questão de dormir, não faça deste romance seu livro de cabeceira. Ele é barulhento.