Fora dos padrões

Resenha de "Claros sussurros de celestes ventos", de Joel Rufino dos Santos
Joel Rufino dos Santos, autor de “Claros sussurros de celestes ventos” Foto: Evandro Teixeira
01/01/2013

Claros sussurros de celestes ventos apresenta encontros fictícios entre escritores — Lima Barreto e Cruz e Sousa, por exemplo —, além de encontros entre seus personagens — Olga, do Policarpo Quaresma, e Núbia, de Broquéis. Vivem em outros tempos e outros cenários. Sets estranhos tanto a criadores quanto a criaturas, palcos onde atores e figurantes desfilam sob o mesmo status.

Escrever sobre o encontro de Cruz e Souza com Lima Barreto pode parecer fino despropósito, mas Joel Rufino o faz com arte e sensibilidade, e isso pode levar o leitor curioso a um mergulho nas obras desses autores. Mas, atenção: Joel Rufino exigirá toda a sua atenção, por vezes disperso leitor, pois você estará frente ao fantástico, ao inverossímil e, por vezes, ao virar uma esquina/página, esbarrará num fato histórico. Modernismo, crise de 1929, Revolução de 1932, por exemplo. Isso tudo disposto com a precisão de um paisagista dos jardins de Versailles.

Ficção, fatos históricos, personagens e seus autores, tudo ao mesmo tempo, ontem e agora. O que é isso? Confusão? Equívocos? Pecado mortal de quem pensou dessa forma. O crente do convencionalismo terá só decepção frente a esse grande exemplo de ousadia e criatividade. Tudo isso, mas sem perder a ternura jamais.

Claros sussurros de celestes ventos, além de seu grande significado ficcional, remete a aulas de teoria literária sem que isso desmereça seu caráter ficcional, tampouco desabone a criatividade desse autor fora dos padrões. O “fora dos padrões”, no universo deste aprendiz, significa o mais alto elogio.

A obra traz elementos do conto, da reescritura, do histórico, da intertextualidade, do humor e sobretudo da arte refinada de unir imaginação — a mais rocambolesca — com um tempero de suspense que instiga a leitura. Não confundir suspense com expectativa de sobressalto, por favor.

Criatividade e imaginação: escritores (mortos) convivem e dialogam com personagens fictícios num tempo presente.

Sei que está em voga a intertextualidade, difícil encontrar livro deste nosso desanimador tempo cultural onde tal aspecto não seja evidente. E gratuito. A pena de Joel Rufino está fora desse compasso constrangedor, seu intertexto tem tudo a ver com o contexto.

Claros sussurros de celestes ventos levará o atento leitor — este aprendiz se inclui — a uma série de reflexões. Antes, no entanto, um resumo da história: começa pelo dia da morte de Lima Barreto, na trama chamado pelo primeiro nome, Afonso. Cruz e Souza é João da Cruz, casa com sua personagem Núbia, dos poemas de Broquéis.

A história de Cruz e Souza (João da Cruz) será acompanhada pela história da cidade de Nossa Senhora do Desterro, que adiante ganharia o nome de Florianópolis.

Após o fracasso de uma relação amorosa, João da Cruz deixa sua cidade, muda-se para o Rio de Janeiro, onde encontra Raul. Tornam-se amigos. Raul, o Pompéia, consegue um emprego para João da Cruz na Biblioteca Nacional. Cruz será acusado e processado por supostamente danificar um livro.

Raul, o Pompéia, é demitido e se mata; João da Cruz morreria mais tarde de tuberculose. Deixa cartas, numa delas confessa seu amor por Núbia, amor interdito pelo fato de João da Cruz ser negro.

O que é inquestionável em Claros sussurros de celestes ventos é o fato de esta obra brilhar sozinha em meio ao quase deserto criativo pelo qual rasteja nossa atual produção literária. Criatividade, imaginação, fabulação, literatura como literatura, nada a ver com alguns boletins de ocorrência ou exageros sentimentalóides que atulham as estantes das livrarias.

Comme il faut
Disse anteriormente que Claros sussurros estimulava uma série de reflexões. A primeira: Rufino não inventou a roda, sabe dar-lhe finalidade. Ao juntar personagens e autores não trouxe novidade, de certa maneira assemelhou seu trabalho ao de André Gide, que em O diário dos moedeiros falsos dialoga com os personagens, simultaneamente à criação do romance Os moedeiros falsos. Um dos personagens mais instigantes, e também merecedor da maior atenção de Gide, é Edouard, que pretende escrever um romance intitulado “Os moedeiros falsos”.

Edouard, assim como Gide, escreve um diário. As semelhanças entre esses escritos permitem ao leitor a percepção de um livro dentro do livro. Diário dos moedeiros falsos permite visualizar a construção dos personagens e deixa nítidas as marcas metaliterárias.

Em A arte do romance, Milan Kundera diz que o gênero se esforça em revelar um aspecto desconhecido da existência humana, uma possibilidade do ser que se ignorava até então. Sem dúvida é isso, e mais, muito mais: o imaginário ocupa um vasto espaço na literatura, não podemos desprezá-lo, a imbricação dos gêneros literários concede imensas áreas de expressão.

Outra reflexão diz respeito ao fato de Rufino juntar numa narrativa escritores mortos, tornando-os personagens, como fez Gonçalo M. Tavares ao criar um bairro, mais precisamente uma rua, onde moravam Kafka, Lorca e Joyce. A história traz referências a fatos das vidas desses autores.

Para concluir, tangenciando o gênero, podemos apontar relações com a reescritura. E aqui de uma forma sutil, conforme exige esse viés literário. Reescritura, sempre oportuno lembrar, muito bem apresentada em Lúcia, de Gustavo Bernardo, a partir de Lucíola, e Hamlet, de Marici Passini. Antes de continuar, acrescento que o tema reescritura tem merecido uma série de estudos acadêmicos e livros equivocados. Livros que reescrevem livros que já reescreveram livros. Um horror! Voltarei ao tema em ocasião oportuna. Espero.

Delicadeza, humor, sensibilidade e consciência social, abundantes na obra, levam este aprendiz a não abordar o tema vergonhoso do racismo. O autor abordou o caso comme il faut.

Agora, para encerrar, Todorov: “Todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que predominava na literatura precedente, e a do gênero que ele cria […]. Geralmente, a obra-prima literária não se encaixa em nenhum gênero”.

Claros sussurros de celestes ventos
Joel Rufino dos Santos
Bertrand Brasil
182 págs.
Joel Rufino dos Santos
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ), é historiador e escritor, autor de mais de 20 livros para o público infantil, dos ensaios de A banheira de Janet Leigh, do livro de memórias Assim foi (se me parece), do romance Crônica de indomáveis delírios, além de obras na área da História.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

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