Fim do fim?

Em "Búfalos selvagens", livro que encerra a Trilogia do fim, de Ana Paula Maia, a circularidade sugere recomeço
Ana Paula Maia, autora de “Búfalos selvagens” Foto: Pablo Contreras
01/04/2025

Disse Einstein: “A coisa mais bela que podemos experimentar é o mistério” — e a própria frase já traz a beleza sugestiva do que não se explicita. Afinal, de que sorte de mistério ele está falando e em que consiste essa sua beleza? Porém, mais misterioso é o fato de que, ainda que não a compreendamos na íntegra, é possível impactar-se com a frase e achá-la bela. Um pouco como o arrebatamento que sentimos com música ou poesia, algo que nos atinge intuitivamente e que vai além do entendimento racional.

Apesar de o novo livro de Ana Paula Maia, Búfalos selvagens, não ter nada da assim chamada “prosa poética”, nem se preocupar muito com a musicalidade da linguagem, há ali um tanto dessa beleza arredia que habita o enigma, ou melhor, os enigmas. Porque eles são muitos neste curto, porém denso romance, sendo o maior mistério aquele que nos fustiga a todos, desde sempre: a morte — em todas as suas manifestações. A morte real e a morte aparente, a morte definitiva e a morte momentânea, a morte dos sonhos, a morte da esperança e até mesmo a morte da própria morte. Todas essas formas de fim parecem não só rondar os personagens, mas estar dentro deles:

O fim é permanente, assim como a morte e a vida. Assim como uma roda que gira ladeira abaixo, assim como bolas de feno empurradas pelo vento, que indicam o caminho para a tempestade que sobrevirá.

A trilogia
Búfalos selvagens encerra a Trilogia do fim. Revemos aqui os personagens dos livros anteriores Enterre os seus mortos — romance também adaptado para o cinema com Selton Mello no papel principal — e De cada quinhentos uma alma: seres embrutecidos, vivendo em ambientes inóspitos, e que sobrevivem realizando “o trabalho sujo dos outros”. Os personagens de Maia caracterizam-se por serem quase todos homens, exercendo ofícios marginalizados como garis, abatedores de gado, de porcos, operadores de britadeira, proprietários de cachorros de rinha, funcionários de necrotérios etc. O “trabalho sujo dos outros” é não só o título de um outro livro da autora, pertencente à Saga dos brutos, mas se configura também como tema central de sua obra, levado agora a extremos do arcaico e do místico neste Búfalos selvagens.

O enredo
Após uma epidemia que quase deu fim ao mundo, Edgar Wilson, protagonista recorrente das histórias de Ana Paula Maia, cansado de labutar como coletor de cadáveres de animais nas estradas, volta a trabalhar no matadouro do Milo. No local onde já esteve empregado em De gados e homens, ele deverá abater agora búfalos, junto aos companheiros Bronco Gil e o ex-padre Tomás. No entanto, o grupo se vê inesperadamente envolvido em uma trama de roubo, assassinato e conspiração, provocada pela presença do obscuro Circo das Revelações e seus misteriosos personagens. Este circo bizarro, que une entretenimento e rituais de exorcismo e cura, atrai multidões de pessoas carentes em busca de algum tipo de consolo ou apenas sublimação temporária para suas mazelas. No centro das atrações está Azaléa, uma menina vidente e milagreira que parece habitar o limbo entre a vida e a morte.

Enquanto nos outros romances Maia preza por uma linguagem lacônica, próxima ao roteiro cinematográfico, com frases curtas e capítulos enxutos de forte apelo sinestésico — há sempre muito sangue, excrementos e secreções de toda sorte, o que leva muitas pessoas a verem nela a Tarantino dos trópicos — , aqui, apesar de manter-se fiel ao seu projeto estético de tematizar a brutalização do homem, a autora fluminense dá um passo — ou talvez fosse mais correto dizer “salto” — incisivo em relação ao abismo onírico e ao sobrenatural. Salto este que se revela tão inesperado quanto congruente com o cosmos de uma obra cuja aridez dos cenários parecia fluir cada vez mais para o apocalipse.

A Wikipedia me esclarece: “Um apocalipse (em grego clássico: ἀποκάλυψις – apokálypsis, derivado das palavras ἀπό e καλύπτω, que significam, literalmente, ‘uma descoberta’) é uma divulgação ou revelação de grande conhecimento”. Neste sentido, o nome do circo emerge como uma chave para adentrar um texto carregado de simbologias.

Movimento cíclico
O misticismo aqui se constrói a partir e em torno da ideia da ciclicidade, base da cultura cristã na qual morrer significa renascer em outro plano. Há uma frase que se repete ao longo deste romance e que funciona como mais um mecanismo para decifrar todo o ideário por trás da história e mesmo do universo esfíngico da obra de Maia: “Inteiramente em toda parte, sem estar contido em parte alguma”.

Nesta frase ecoa a famosa máxima de Blaise Pascal: “A natureza (Deus?) é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma”, que, por sua vez, ecoa Alain de Lille, que ecoa Parmênides, que ecoa Xenófanes, sendo que todos encontram eco em Borges, na sua História universal em 5.796 caracteres. A esfera de Pascal. E esse loop infinito de vozes pelo tempo e pelo espaço já traz em sua forma a própria circularidade à qual o conteúdo da frase remete: a ideia de fim como começo e começo como primeiro passo em direção ao fim, origem da nossa maior angústia, mas também de nossa perseverança. 

Relação homem-animal
Outro tema recorrente na obra de Maia é a relação homem-animal, cuja ambivalência é retratada sobretudo por meio da figura complexa do protagonista. Se Edgar Wilson é, por um lado, um sujeito capaz de matar um companheiro de trabalho de forma brutal, como o que acontece em De gados e homens, apenas porque o outro abate sem compaixão — sendo ele próprio um abatedor que põe fim à vida dos animais com uma marretada certeira —, por outro lado, Edgar parece sentir piedade e priorizar a comunicação com os animais antes de matá-los. Olhando no fundo dos olhos do animal, ele cicia para acalmá-lo e encomenda sua alma. É quase como se o nosso protagonista se reconhecesse na sombra da morte refletida nos olhos do animal ao mesmo tempo que também se sabe em sua mira.

Essa relação de Edgar Wilson com os animais me parece o negativo de uma reflexão da filósofa e bióloga estadunidense Donna Haraway. Em seu livro Staying with the problem (tradução livre: Permanecer com o problema), ela propõe, entre outros, o conceito do parentesco entre humanos e não humanos como possível caminho para a sobrevivência num planeta à beira do cataclismo. Ela diz: façam parentes, não bebês. Com isso, não está querendo dizer que não devemos mais nos reproduzir, mas que a noção de “parentesco” pode e deve ser expandida para conexões entre os seres que compartilham a vida na terra. Afinal, “todos os terráqueos são parentes”. Ciente de que não é mais possível reverter determinados processos avassaladores, Haraway propõe essa noção de parentesco como uma possibilidade de recomeço do centro mesmo do fim. Nada menos faz Edgar Wilson, ainda que um tanto às avessas.

Há muitos anos, tive a oportunidade de assistir a uma mesa com Ana Paula Maia num festival de literatura em Berlim. Em certo momento, o mediador comentou que, para ele, seria um mistério que uma pessoa delicada como ela se interessasse tanto por violência e cenários sanguinários. No que a autora respondeu algo mais ou menos assim: “Veja, não há mistério. Sou uma mulher e lido com sangue todos os meses. Me parece normal que isso influencie minhas reflexões e escritos”.

Penso em Borges: “A história universal talvez seja a história de umas tantas metáforas”.

Búfalos selvagens
Ana Paula Maia
Companhia das Letras
136 págs.
Ana Paula Maia
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1977, e mora atualmente em Curitiba (PR). É autora de diversos romances. Dentre eles, a Companhia publicou Enterre seus mortos e De cada quinhentos uma alma. Foi duas vezes vencedora do prêmio São Paulo de Literatura. Como roteirista da TV Globo, foi responsável pela série Desalma.
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho