Fantasmas arquivados

Ignácio de Loyola Brandão volta à cidade natal para contar e recriar a sua versão de Araraquara
Ignácio de Loyola Brandão, autor de “A altura e a largura do nada”
01/11/2006

Um leitor não muito atento poderia imaginar que um grande problema para um escritor é ele descobrir sobre o que escrever após 50 anos de carreira. O leitor incauto poderia pensar: “Ora, ele já falou do passado, do presente e do futuro, sobre o que mais ele pode falar? Será que ainda há algum assunto que lhe interesse?” Esse leitor ficaria ainda mais pensativo sobre o futuro do escritor e seu destino, se descobrisse que o autor em questão é multipremiado e carrega nas costas um Jabuti, um Pedro Nava (da Academia Brasileira de Letras), um Associação Paulista de Críticos de Artes, um IILA (Instituto Ítalo-Latino-Americano), entre outros. Poderia até ficar preocupado se visse que a obra do autor já possui mais de 20 títulos entre romances, contos e crônicas, e já foi traduzido para umas tantas línguas.

Claro que esse é um leitor que sabe pouco do ofício de escrever. Um bom escritor tem, sem sua maioria, dois caminhos a trilhar. Ou ele escreve um ou dois livros em toda a sua carreira e desaparece (quando muito, alegando que não há nada mais que valha a pena ser escrito), como J. D. Salinger (O apanhador no campo de centeio), ou ele não pára nunca, e cada livro é uma mostra de seu talento em contar histórias. O que deve ser lembrado, e um mau leitor não sabe, é que há inúmeras maneiras de se contar histórias. Uma mesma história pode ter múltiplas visões. E várias pessoas, mesmo tendo participado de uma única história, têm pontos de vista completamente diferentes sobre o tema. Um bom escritor sabe disso e explora este fato à sua maneira.

Por isso, ao saudarmos o novo trabalho de Ignácio de Loyola Brandão, A altura e a largura do nada, temos como desafio descobrir se o autor continua com a pena apurada, com o estilo renovado (não necessariamente diferente, mas pelo menos atual) e se ele conseguiu apresentar algo diverso em relação aos seus trabalhos anteriores. (Claro, para quem comenta sobre esse trabalho, ajudará e muito que este livro seja um dos primeiros do autor que caia em suas mãos, que qualquer motivo inexplicável e injustificável o tenha deixado longe do resto da maioria da obra do autor). Alguns podem dizer que se o estilo de um autor é ótimo, ele não tem por que melhorá-lo. Mas esses vivem em um mundo que não muda nunca, sorte para eles. Mas quando um autor consegue mudar e manter-se bom, este é um bom sinal.

A altura e a largura do nada é um bom livro. O tema principal poderia ser, em uma leitura superficial, a cidade de Araraquara. Mas esta é uma leitura sem critério. Uma visão mais apurada mostrará que há várias histórias ao redor de uma única cidade, esta sim Araraquara. E que são histórias de gente e de pessoas que viveram (ou não) em Araraquara, cidade natal do escritor.

A maneira como é estruturado dificulta a classificação de A altura e a largura do nada. Em alguns momentos pode ser encarado como um romance, em outros como um livro de memórias ou ainda de crônicas. Não que isso confunda, pelo contrário, a diversidade de estilos está bem casada na obra de Ignácio. E ela se molda bem a um fluxo de memória natural, que em nós nunca é linear. Começamos a lembrar de um fato, e antes de terminarmos de pensar nele, estamos pensando em outra coisa que aquele primeiro fato lembra. E por aí vai.

Em um certo ponto, Loyola parte de uma afirmação de Federico Fellini para construir este trabalho. Disse o cineasta no livro Fellini por Fellini, organizado por Christian Strich e Anna Kael: “O retorno a Rimini me parece antes de tudo uma complacente e masoquista insistência da memória, algo teatral, literário. Claro que pode ser um encanto. Um encanto turvo, sonolento. Mas não consigo considerar Rimini como um fato objetivo. É apenas uma dimensão da memória. Na verdade, quando estou em Rimini sou agredido por fantasmas já arquivados… Não consigo ser objetivo. Rimini é uma poção confusa, medrosa, terna…” Loyola deixou Araraquara em uma manhã de 1957 rumo a São Paulo. Mesmo que quisesse deixar algo para trás, não conseguiria. Somos a soma de tudo que vivemos, e carregamos com maior ou menor leveza todas as nossas experiências de vida.

Sem rótulo
Assim, A altura e a largura do nada poderia ser visto como um romance autobiográfico ou de memórias, mas como o autor consegue confundir o leitor de várias maneiras, ele não aceita rótulo algum. Ficamos com uma história sentimental imaginária e real de uma Araraquara que existiu, no mínimo, na cabeça de Loyola. E ao misturar o que foi verdadeiro e imaginário, ganhamos todos.

No caso de A altura e a largura do nada, há algumas histórias centrais em torno das quais gira a narrativa. Temos ali a história d’O homem que vai escrever o maior número, ou melhor, a vida e a obra de Lucas Cranach (que não sabemos se existiu um no Brasil, mas que com certeza foi um pintor e gravador alemão contemporâneo de Dürer e pintor da Reforma Luterana), que tinha como objetivo fazer algo que nada acrescentasse à história, um número que fosse o maior do mundo. Juntamente com ele, temos a história de Ernesto Lia, pintor revelação da Araraquara dos anos 50 (este sim verdadeiro), que pinta o início do trabalho de Cranach no quadro mítico Luar diurno sobre o vazio, que dizem que Jean-Paul Sartre viu quando esteve na cidade, mas que ninguém mais viu ou sabe por aonde anda a tela.

Temos um relato que pode ser verdadeiro ou não: Fixações que nos acompanham pela vida — um relato até um certo ponto apaixonado da estréia de Gilda, ou melhor, do fenômeno Gilda na vida da pequena e católica Araraquara, em que padres ameaçavam com a excomunhão quem assistisse ao filme. Claro, um padre não resistiu ao poder das curvas insinuantes e do balanço de Rita Hayworth e sucumbiu à tentação, chegando (diz o lanterninha do cinema) às vias de fato do onanismo e posteriormente nunca mais se perdoando de seu pecado.

Há ainda os Fatos objetivos, que são exatamente isso, os dados de Araraquara; os Rituais de uma vida simples, sobre como era a vida do Loyola criança e adolescente; os Fantasmas arquivados, estes mais sobre as pessoas que pairavam sobre a cidade vindas não se sabe de onde e indo não se sabe para onde; o Gente que conhecemos, sobre os personagens da cidade que não chegaram a merecer notas em colunas sociais ou enciclopédias; uma seção muito bacana chamada Sente-se, por favor, em que Loyola lista alguns dos bancos de concreto que estavam na praça e eram patrocinados pelo comércio e indústria local; os Personagens obscuros de nossa história, sobre gente que de alguma maneira se destacou mas depois desapareceu; e uma seção interessante e jornalística sobre talvez os principais personagens da história nascidos em Araraquara, chamada Como as pessoas eram, em que Loyola fala de seu pai (talvez para não falar de si), de José Celso Martinez Corrêa, o criador do Teatro Oficina, e Ruth Cardoso, ex-primeira-dama do Brasil.

A mistura de ficção e realidade é tão interessante que em um caso o autor conseguiu tornar real o que era ficção. Como nos conta uma matéria divulgada pela Agência Estado em agosto de 2006, pouco antes do lançamento do livro (durante a 4ª Festa Literária Internacional de Parati), em que Loyola convenceu Lia a finalmente pintar o quadro que só existia na ficção. Talvez, quando a realidade nos é tão dura e sem graça, a ficção pareça tão melhor que queremos torná-la realidade.

Ou como traz o release de lançamento do livro de Loyola, em que o autor se explica: “Misturo realidade e ficção, porque toda cidade do interior é realidade e ficção, verdade e mentira, coisas inventadas e coisas existentes. Trouxe coisas que estavam na memória para me livrar delas. Romance, será romance? Mas tão diferente! Araraquara aqui pode ser a sua cidade, pode ser São Paulo”. E pode mesmo, às vezes o mundo parece uma repetição da nossa cidade e da nossa realidade, mudando apenas o nome das ruas e a língua que nela se fala.

A altura e a largura do nada
Ignácio de Loyola Brandão
Editora Jaboticaba
264 págs.
Ignácio de Loyola Brandão
Nasceu em Araraquara (SP), em 1936. Estreou na literatura em 1965, com o livro de contos Depois do sol. É autor de cerca de 30 livros, entre os quais O homem que odiava segunda-feira, Bebel que a cidade comeu, Zero, Não verás país nenhum e Veia bailarina. Atualmente, integra o conselho editorial da revista Vogue e publica crônica semanal no jornal O Estado de S. Paulo.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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