Excessos e ausências

"Pornopopéia", de Reinaldo Moraes, apresenta um universo em permanente degradação, autofágico, intenso e sem qualquer saída
Reinaldo Moraes, autor de “Pornopopeia”
01/09/2009

O anúncio se mostra na contracapa. O paulista Reinaldo Moraes “escreveu um livro de excessos para a era dos excessos”. Ao seu modo reducionista, o aviso alerta bem para tudo aquilo que o leitor irá enfrentar nas quase quinhentas páginas do romance Pornopopéia, um universo em permanente degradação, autofágico, intenso e sem qualquer saída. Essa intensidade de todas as ações de todos os personagens é a marca mais viva de cada uma dessas incontáveis linhas.

Tudo se move num ritmo alucinante, urgente. Uma ação desencadeia outra que desencadeia outra que desencadeia e por aí vai se formando o romance. Moraes parece reencarnar os antigos cultores da contracultura e deixa a imaginação jorrar num fluxo incontrolável, numa cachoeira desembestada, drummondianamente pluviosa. E o leitor fica ali ansioso tentando adivinhar o porto possível para este barco quase à deriva.

Duas boas surpresas, no entanto, se mostram logo nos primeiros capítulos. A primeira delas é mesmo esse ritmo mais que cinematográfico e que doma toda narrativa. Até por serem contadas em primeira pessoa, as aventuras e desventuras dessa paulicéia bem pra lá de desvairada ganham o embalo de uma conversa amigável. E essa oralidade real e muito viva envolve o leitor que termina por não se cansar tanto, afinal, como alertava o poeta Carlos Pena Filho, até de azul pode haver cansaço.

É certo, a leitura de Pornopopéia é um exercício de prazer, divertimento e até conhecimento, afinal o texto se esmera em ironizar os reflexos da contracultura, como o misticismo orientalista e os embalos alucinados do rock. Dessa ironia, sobram análises e reflexões bem interessantes.

A outra surpresa fica por conta do humor. Os ambientes, quase sempre, são soturnos, negros, esfumaçados. Até mesmo na praia, sob o sol tropical, percebesse este halo noir. Mas Reinaldo Moraes se desvencilha dos enredos da depressão com um humor também intenso, embora muitas vezes reconhecidamente machista e sempre politicamente incorreto. A verdade é que o texto não poupa ninguém e atira em todas as direções. O fundamental é não se entregar às convencionalidades, o que torna Pornopopéia mais que “um livro de excesso”, um livro despudorado e real.

Delírio adocicado
Toda trama corre em torno do narrador, Zeca, o cineasta José Carlos Ribeiro, diretor de um único e quase mitológico filme: Holisticofrenia. Pelo muito pouco que se conta dessa obra-prima underground, participante de obscuros festivais, trata-se de um delírio adocicado com cenas de sexo explícito. Se o filme não rendeu nada, pelo menos garantiu ao seu diretor a possibilidade de dirigir alguns filmes pornôs na velha Boca do Lixo paulistana, além de esporádicos contratos para escrever roteiros de vídeos institucionais e publicitários.

Casado com uma socióloga e professora universitária, Lia, tenta se equilibrar roubando os minguados recursos deixados pelo cunhado, com quem supostamente divide as despesas da sede de sua produtora, a Khimer Filmes, inclusive o salário da secretária Terezinha. Apesar de certa formação cultural, afinal um dia foi um promissor rapaz da classe média, Zeca opta por seus excessos, um caminho que o leva a deitar fora tudo que poderia ter de útil em sua vida.

Curiosamente, não há contradição nesse estranho personagem. Cada um de seus passos, por mais que possa surpreender, é sempre previsível. Seu envolvimento com os já ditos resquícios da contracultura e da resistência porra-louca dos anos de 1960 não poderia chegar a lugar algum, até porque o próprio Zeca não quer chegar a nenhum porto. Busca viver a intensidade da hora, mesmo que sua vida se construa cheia de ausências e perdas.

Nesse rumo até mesmo o aparente contraditório senso paternal que carrega tem seu estrado de honesta verdade. “Porra, quer saber, cara? Odeio a realidade. Odeio garagem, odeio obras, odeio condomínio, odeio o casamento, odeio escolinhas, dentistas e pediatras. Só não odeio o Pedrinho”, confessa lá pelas tantas, mesmo sem fazer qualquer coisa que possa aproximá-lo mais do filho que tem com Lia. E não o faz porque está bem ocupado em viver o personagem marginalizado que construiu para si mesmo.

Esse ponto do romance poderia dar maior profundidade psicológica ao seu protagonista, mas essa não é a intenção de Reinaldo Moraes. Ele apenas se permite trafegar pela oralidade desenfreada de Zeca e sua alucinada viagem individual.

E num excelente trabalho de construção narrativa, Moraes vai reinventando seu personagem sem deixar que ele se distancie do mundo real que o cerca. É a maneira — talvez a mais segura — do autor dar veracidade à trama que inventou, afinal ele quis, e conseguiu, fazer de Pornopopéia um belo exemplar do mais moderno realismo. E ainda nos deixa um alento em saber que a chamada literatura marginal pode se fazer com bem mais qualidade muito além das periferias e, o melhor, em uma linguagem formal e enriquecida pelos debates e reflexões que provoca. Debates e reflexões que estão a ano-luz de distância do maniqueísmo barato de que o favelado se marginaliza por ser vítima primária de injustos conceitos sociais.

Guinada
Demonstrando que estas realidades estão bem mais próximas do que possa imaginar nossa vão literatura marginal, já quase na metade do volume, Reinaldo Moraes dá um guinada e cria, a rigor, um segundo livro. Lá pelas tantas de uma madrugada, Zeca liga para Miro, seu traficante pessoal, para comprar mais um tanto de cocaína. Azar. Estamos em plena madrugada que o PCC resolveu barbarizar São Paulo. No meio de um desses tiroteios entre polícia e bandido, Miro é atingido e morre. Zeca está ao seu lado. Assustado, apanha o saco de cocaína e sai de cena. À tarde, a bordo do velho Monza, vai viver umas férias no litoral paulista. E aí seu mundo de perdas cresce incontrolavelmente.

Reinaldo descreve todo um universo escorado na velha tríade de sexo, drogas e rock’n’rol, com mais sexo e drogas do que rock`n`rol. Zeca é um autêntico atleta sexual, um perfeito aspirador de pó, capaz de tudo por uma xota, por uma carreira. As cenas de sexo, descritas com uma minúcia capaz de excitar a mais despudorada das Cassandras Rios, certamente fará a festa dos leitores mais ávidos e lúbricos ou dos velhos espectadores de antigas pornochanchadas. No entanto, isso não parece ser o fundamental. Aliás, taí um aspecto reducionista do livro. A luxúria excessiva parece estar ali com a única função de oferecer novos prazeres aos tais leitores afoitos, pois não chega a chocar e, em dado momento, até cansa. Neste ponto talvez Reinaldo Moraes não tenha lido Hermilo Borba Filho, um mestre ao descrever as cenas de intensidade sexual. Ele, Hermilo, explorava o erotismo sem se baixar aos detalhes às vezes meramente escatológicos.

Mas estamos em outro porto e aqui o fundamental é o que restou das revoluções da segunda metade do século passado. Estes resquícios agora ocupam as margens da Avenida Paulista. Esse submundo tem uma fauna muito própria que se abriga num peito ampliadíssimo. Artistas frustrados, prostitutas, travestis, traficantes, gente da classe média bem estabelecida, profissionais liberais muito bem-sucedidos. Toda essa gente está retratada nos personagens secundários de Reinaldo Moraes. Zuba, Gaúcha, Nissim, Miro, Rejane, Sossô, Ingo, cada um tem uma função própria dentro da trama, sintetiza uma porção de uma Babel brasileira ou, para não fugir das imagens bíblicas, da mais perfeita junção de Sodoma e Gomorra.

Para engrossar ainda mais todo este caldo, Reinaldo Moraes faz de Zeca um poeta muito bem resolvido em sua estética. Seus poemas, sempre haicais, têm qualidade, se estabelece na precisão e na leveza dos três versos nipônicos. São divertidos, líricos, quebram a estrutura natural das coisas, daí sua qualidade. Sossô, a Lolita particular de Zeca, merece vários deles. “Ai de mim/ coração abduzido/ por uma teen.” Ou ainda: “Sem Sossô sou/ e estou/ só”.

A surpresa final, mas não menos importante, fica por conta da linguagem própria. Ela é aberta, direta e particular por não temer nenhuma palavra. Tudo fica dito de maneira clara. Aqui nada se esconde, tudo se desnuda, até mesmo a inutilidade do questionável acordo ortográfico.

Que o leitor se divirta com a intensidade pornográfica desse romance, mas não deixe de olhar com atenção as tintas escurecidas do mundo onde não há respeito ou ética. Pornopopéia, para o bem ou para o mal, fala de um real reino hedonista.

Pornopopéia
Reinaldo Moraes
Objetiva
475 págs.
Reinaldo Moraes
Nasceu em 1950, em São Paulo. Abandonou a profissão de economista para se dedicar à literatura. Lançou os livros Tanto faz (1981), Abacaxi (1985), Órbita dos caracóis (2003) e Umidade (2005).
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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