Estranha simplicidade

"As luzes de dois cérebros anárquicos", de Ana Barros, se sustenta no equilíbrio entre a precisão e certa ambiguidade narrativa
Ana Barros, autora de “As luzes de dois cérebros anárquicos”
01/04/2025

Os domingos do casal Angela e Miguel têm uma rotina rigorosa: pesam-se, medem a massa muscular, limpam a casa, preparam as marmitas da semana. É Miguel quem lidera as tarefas; ele controla a alimentação e o peso da companheira. Angela não tem muito gosto por essa vida, mas aceita. Apenas, ao acordar, mantém os olhos fechados para não interagir com o homem até que ele saia do quarto. Sozinha, levanta-se e se maquia. Somente com o rosto montado poderá enfrentar o dia que se segue.

Acompanhamos em detalhes essa rotina: o frango que sai pálido da panela de pressão, o funcionamento da balança de bioimpedância, o método de limpeza do apartamento. A comida é controlada: apenas o necessário e suficiente. Miguel serve granola pra si mesmo, mas não para Angela, “porque a gente tinha combinado que você ia entrar em cut”, ele diz. Ela come uma banana; ele duas (e com mel), pois precisa comer mais do que ela. Angela sente inveja das calorias extras do companheiro, mas não protesta. Ao contrário, dá um beijo em agradecimento.

A rotina que aprisiona Angela também nos aprisiona. O texto lógico e organizado tem um efeito ao mesmo tempo exasperante e hipnótico. Os capítulos se dividem regularmente, com a narração em primeira pessoa de Angela intercalada a episódios com narrador externo. O ritmo nos prende nessa existência meio enclausurada: seguimos em frente, como a protagonista, dóceis, sem muito prazer.

Angela mora num apartamento “caixote”, “absolutamente comum”. Ainda assim, é uma casa própria, comprada através de financiamento. Advogada, Angela é uma jovem profissional de sucesso, com um bom salário e um corpo saudável.

Em oposição a esse espaço, conhecemos a casa de Virginia, avó de Angela. Um casarão antigo e imponente, com escada, varandas, madeira entalhada. Construção sem manutenção, corroída por cupins, que “desmoronaria a qualquer momento”. Essa casa guarda as memórias de quatro gerações da família: o bisavô de Angela, escritor e comunista; a avó feminista e libertária; o avô carpinteiro. E a mãe, Simone — cuja morte é o ponto de partida do romance.

“Mamãe morreu” é a primeira frase do livro. Afirmação sintética que remete ao início de O estrangeiro, de Camus (“Hoje, mamãe morreu.”). A morte de Simone trará Angela à velha casa da família, onde reencontrará a avó e lembranças de uma história cheia de mágoas. A incompreensão entre Angela e Simone espelha o difícil relacionamento de Simone e Virgínia. De uma geração a outra, as mulheres transmitiram solidão e ressentimento às suas herdeiras.

Simone era o eixo de simetria desse triângulo de amarguras. Angela já se afastara da mãe, antes que ela morresse, para se preservar “das emoções negativas que ela causava”. Foi um conselho da terapeuta. Com a morte repentina, abre-se a válvula desse tanque de águas mal paradas. Angela irá reavaliar os caminhos que seguiu por inércia: a alimentação, o casamento, a carreira. Em oito dias a partir do enterro, Angela e Virginia, neta a e avó, poderão se reaproximar e tentar se compreender melhor.

Tensão
Nessa trajetória da protagonista, o estilo da narração vai se relacionando de forma diferente à matéria narrada. À medida que as cenas se carregam de novas emoções, o tom metódico do início se mantém, criando uma tensão que enriquece a prosa. Uma cena de masturbação é marcante nessa transição:

Meus dedos se mantinham lubrificados em movimentos circulares, no meio das minhas pernas abertas, até eu sentir meu corpo inteiro tremer. (…) Com a mão ainda melada, comecei a chorar, sem saber se era de prazer, ou de frustração. (…) Entrei no banho só para limpar meu corpo, sem os rituais de beleza a que estava acostumada. (…) Limpei minha vulva, que estava inchada e lubrificada. Senti vontade de gozar mais uma vez, mas me contive.

Permanece, nessa passagem, o método narrativo estabelecido no início do romance: as ações em sequência lógica, uma a uma, estruturando a subjetividade da personagem. O vocabulário é preciso, em linguagem referencial. Se, nos primeiros capítulos, o texto nos informa que Angela “organizou as roupas para lavar de acordo com suas cores”, aqui nos deparamos com essa palavra, “vulva”, um termo quase científico, sem pudor nem romantização. Limpar o corpo, a parte externa do aparelho genital feminino. A opção de estilo é intrigante.

Nem sempre, porém, tal estilo se sustenta. Em certos momentos, figuras gastas aparecem para dar ênfase: segundos que parecem horas, o chocolate que derrete em forma de prazer. Um aspecto adocicado às vezes invade o romance, em alguns diálogos que parecem vir de manuais de autoajuda: “faça algo que você nunca fez”, “tente experimentar a vida”, “você vai encontrar o melhor caminho”. O romance confia numa futuro promissor para a libertação interna de sua protagonista. As portas se abrem, conforme ela rompe com as amarras do passado. A certa altura da história, o tom apaziguador ameaça se tornar irritante.

Felizmente, os capítulos finais recuperam a precisão e certa ambiguidade. É o mistério da morte de Simone, essa mãe infeliz e abandonada, que segura a tensão da narrativa até o desfecho. Ao final, a obra permanece em nossa memória, em sua estranha e tensa simplicidade.

As luzes de dois cérebros anárquicos
Ana Barros
Paraquedas
208 págs.
Ana Barros
Nascida em 1994. Formou-se e trabalhou com moda. Desde 2018, tem se dedicado à criação literária. É especialista em produção de textos literários pelo Instituto Vera Cruz. Criadora do clube de leitura Contemporâneas, voltado às obras de mulheres brasileiras. As luzes de dois cérebros anárquicos, seu primeiro romance, foi premiado pelo ProAC-SP em 2023.
Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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