Espelho negro

Afinal, qual é a função da literatura?
Ilustração: Hallina Beltrão
30/01/2015

Todo texto começa em algum local, e este inicia no oceano. Para ser mais exato, na costa da Cochinchina, hoje conhecida como o Vietnã. A tempestade acabou de passar, levando a sua fúria para assustar outras ondas. As águas, antes raivosas e agora plácidas, ainda recordam os gritos dos homens enquanto o barco desmoronava diante das rajadas de vento. Alheio a tudo isso, o único sobrevivente do naufrágio nada. Seu olho único mantém o foco na direção da terra, que parece tão próxima, mas nunca chega. Talvez ele esteja pensando nos eventos de alguns minutos atrás. Não foi uma decisão fácil: de um lado, estava Dinamene, a mulher que amava, afogando-se e necessitando de ajuda; do outro, um pacote silencioso oscilava no meio das águas agitadas, prestes a um mergulho definitivo. Só havia espaço para uma escolha, e o caolho fez a sua. Enquanto prossegue na direção da terra, ele tenta segurar o pacote o mais longe possível da água, pois sabe que o livro não pode ser perturbado. Esquecendo o cansaço e o remorso, mesmo sem saber se vai conseguir chegar à costa, Luís de Camões pensa que esta é uma história forte demais para ser desperdiçada. Por isso, memoriza as suas sensações e, para passar o tempo, escreve mentalmente aquele que se tornará o canto X de Os Lusíadas.

Alvo certeiro
Nos tempos atuais, é fácil dizer que Camões tomou a decisão correta. Os Lusíadas é um dos mais importantes livros já escritos, um patrimônio da Humanidade. O que é uma vida diante de tamanha obra? Contudo, no momento em que o escritor lusitano tomou a decisão no meio de um naufrágio, ele não sabia que o livro teria tamanha envergadura. Não sabia sequer se conseguiria publicá-lo. Ainda assim, Camões acreditou que a história a ser contada era maior do que o amor da mais linda mulher e do que a sua própria vida. Ao invés de pensar somente na sua salvação, sabia que ela não teria sentido sem O Livro.

Ao contrário do que se pode pensar, a relação de Camões com a obra ainda inacabada não era uma simples escritura, e sim algo visceral. O autor era capaz de lembrar verso a verso que tinha colocado no papel; havia feito a divisão em sílabas poéticas de cada estrofe, buscando a rima perfeita. O livro se tornara uma extensão inevitável da sua personalidade. Ao salvar Os Lusíadas, Camões tratou o livro como um objeto vivo, pensando nas dezenas de vidas que poderiam ser influenciadas pela sua obra. Ele não conseguiria viver sem a sua criação. É possível inclusive que tenha nadado ainda com mais afinco, sabendo que carregava consigo não um aglomerado de versos ou um pacote, mas a própria alma.

Eis uma discussão por muito tempo ativa e que acabou se perdendo em meio aos livros de teoria literária: qual é a função da literatura? A julgar pelos depoimentos de escritores contemporâneos, eles consideram a literatura como uma necessidade de comunicação, um desejo de autoconhecimento ou uma maneira de suprir uma espécie de vazio que nem mesmo os próprios autores entendem. Todas facetas de um certo egocentrismo: “A função da literatura é permitir que eu mostre a todos como o mundo funciona”. No entanto, nenhum se debruça sobre a questão maior, que é perguntar sobre a própria utilidade da literatura. Sem saber para o que serve, como podem ter noção de que estão fazendo literatura ao invés de escrever frases ou páginas vazias?

Apesar de parecer uma questão óbvia (ninguém em sã consciência diria que a literatura não possui função alguma), a resposta é mais difícil do que se imagina. Qualquer função que se escolha representa uma possibilidade de ver a literatura, mas não esgota as suas características múltiplas. Podemos considerar a literatura como tendo uma função educativa capaz de mostrar a forma com que viveram e pensaram outras pessoas, ideia defendida por Antonio Candido, mas não é só isso, pois livros didáticos também realizam esta tarefa. Podemos ver a literatura como uma experiência estética, da forma que pretendia Horácio ao dizer que ela tem a capacidade de nos deleitar e nos ensinar a sermos pessoas melhores, mas a definição é ainda insuficiente, pois a literatura vai além da mera arte pela arte. Há quem diga que a literatura tem uma função catártica, servindo para que autores e leitores extravasem suas emoções mais ocultas, ainda que imaginar a literatura como um meio de expiação do inconsciente seja diminuir a sua importância. Não são poucos os que dizem que a literatura teria uma função ideológica, representando o pensamento dominante de um determinado período histórico. Contudo, existem obras que enfrentam a ideologia majoritária e são contrárias à ideia de disciplina. Nos últimos anos, cresceu o pensamento de que a literatura possui uma função social, representando o caráter de uma sociedade e a forma com que esta se comporta. No entanto, é uma visão limitada de literatura, pois ela também pode representar uma utopia e o contrário da sociedade nela descrita, além de ser o desejo de algo a mais, uma visão do futuro.

O fato de não realizarmos as perguntas não quer dizer que já existam respostas pacíficas. Evitar discutir para o que serve a literatura está no cerne das parcas políticas de incentivo à leitura no Brasil, da produção literária periclitante, dos prêmios literários concedidos sem critério algum, da constante queixa de que não existem leitores. Quando um escritor não pensa sobre a motivação real da sua literatura, é difícil fazer com que qualquer leitor o acompanhe. Literatura não é jogo estético, não é estratégia para disseminar ideologias, não tem objetivo educativo ou desejos de retratar a sociedade. No momento em que a literatura não possui um objetivo específico do seu autor, algo elaborado inclusive em nível inconsciente e que seja fruto de uma reflexão detalhada e obsessiva da vida, o livro passa a ser um barco desgovernado no meio do oceano, incapaz de procurar o porto seguro da biblioteca ideal, vagando sem sentido entre prateleiras anônimas.

É importante que exista um grande autoconhecimento do autor a seu respeito antes de escrever, não depois. É costume atual analisar a psiquê do autor por meio da sua produção, mas o livro deveria servir não como fonte de decodificação psicológica de quem foi o autor, e sim como veículo que ele encontrou para expor a sua visão de mundo. Grandes são as obras em que o autor tinha uma noção básica de qual era a função da literatura, não para os outros, mas para si próprio. Quando Dante Alighieri resolveu se vingar de todos os inimigos e louvar os amigos através de uma obra literária, poderia ter escrito um panfleto irônico ou um livro cuja influência duraria alguns anos e depois mergulharia no abismo fundo onde moram os livros mortos. Ao invés disso, fez a Divina comédia e deu forma literária para as suas vontades; colocou-se na obra como narrador e personagem, esculpiu os versos e fez com que os seus pensamentos se misturassem para servir à trama, não o contrário. A ideia da função da sua literatura era clara para o escritor florentino: um meio de expor a inconformidade e defender a sua ideologia, servindo como uma forma de catarse, além de associar a sua visão da sociedade da época com um grande apuro estético. Quando o autor sabe o que deseja, pode combinar todas as funções ao mesmo tempo e extrair diversos tipos de leituras, renováveis para cada leitor.

Vencer a morte
Para um escritor conseguir tocar outras pessoas, ele precisa conhecer a si próprio. É um adágio simples, mas que revela uma verdade invencível: os autores não perguntam qual a utilidade da sua obra. Acreditam que ela é fruto da inspiração ou do trabalho exaustivo da forma, mas não mergulham na questão intrínseca — por que escrever? Em um mundo repleto de livros e de histórias, em que alguns acreditam que inclusive todas as histórias já foram contadas, qual é o objetivo da literatura em si? Nos tempos recentes, muitos escritores respondem que seu desejo é conseguir sucesso, fama e dinheiro. Alguns autores se perdem em explicações metafísicas sobre o que seja a literatura e como é importante escrever, mas evitam falar o que pretendem com as suas obras. Não são poucos os manuais de estilo prometendo que uma pessoa pode escrever livros em curto espaço de tempo e ganhar muito dinheiro vendendo a obra para a indústria do cinema, por exemplo.

Prova maior da relevância desta discussão é que, em 1964, em uma França conflagrada por uma greve geral e por sucessivas manifestações estudantis, Yves Buin resolveu chamar os maiores escritores e filósofos franceses de então para que respondessem uma questão: “O que pode a literatura?”. A maioria dos filósofos convidados (Berger, Beauvoir, Ricardou, entre outros) disse que a literatura não tem função alguma, é uma tarefa com que somente os leitores se preocupam. Dessa forma, eximem o autor de pensar na função da própria obra, transferindo todos os ônus e possibilidades para o eventual leitor, uma explicação muito semelhante àquela dada pela indústria de armamentos dos Estados Unidos: ela constrói as armas, mas são os usuários que irão determinar seu uso.

Sartre acabou se tornando a voz dissonante no debate, mas o seu pensamento é de extrema relevância. Sim, a literatura não tem nenhuma função, mas o problema é que os leitores também não têm função alguma. A vida é um longo esperar pela morte, tudo depende do que se faz no decorrer dela. Os leitores são seres procurando um sentido que talvez não esteja na própria vida e, por serem pessoas que necessitam achar o motivo pelo qual vieram ao mundo no meio de uma corrida insana de espermatozoides, imaginam — talvez tolamente — que ele possa estar dentro de um livro.

O livro, como expressão artística, não pode ser dissociado de um objetivo, pois está ligado ao destino de um leitor. A literatura não é algo irresponsável e, conforme lembrado por Alberto Manguel, existe um grande erro em considerarmos a literatura como entretenimento, pois a deixamos com um caráter acessório na vida, na prateleira dos gastos supérfluos, quando ela existe para nos dar sentido. Falta para os escritores de hoje uma noção melhor de finalidade do ato de escrever, o que deixa as suas obras impregnadas de uma estética rarefeita na qual os leitores pensam ver as próprias sombras. A grande diferença em relação aos autores do passado era que eles pensavam sobre o que estavam fazendo, ao contrário de escrever e depois parar para ser explicado. Toda pessoa é um labirinto, mas o mínimo que se espera é que ela saiba qual é a última porta.

Olhando por este aspecto, quando Camões precisou escolher entre a sobrevivência do amor e a da obra, ele sabia que os sentimentos passam, assim como as pessoas, mas a obra deve continuar. Sem saber, o maior escritor português estava realizando uma das mais importantes funções da literatura: sobrevivência. Vencer a morte. Não almejar a imortalidade do autor, e sim a permanência da história. Algo somente possível de entender quando uma pessoa consegue encarar o espelho negro que mora no fundo da sua alma sem desviar os olhos, sem sentir medo.

Gustavo Czekster

Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS, autor do livro O homem despedaçado.

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