Escrito e vivido

Na autobiografia "Apropos of nothing", Woody Allen relembra a vida de forma engraçada, mas não deixa polêmicas de fora
O cineasta Woody Allen ri de si mesmo na autobiografia Apropos of nothing
13/06/2020

A imagem de Woody Allen como intelectual é falsa. E não, não é fake news. A fonte dessa afirmação é a autobiografia dele, Apropos of nothing, lançada recentemente nos Estados Unidos e que deve chegar às prateleiras do Brasil no início de setembro, com o título A troco de nada (Globo Livros), em tradução de Santiago Nazarian. Escreve o norte-americano que as pessoas têm essa impressão por ele ser do tipo baixo, magro e usar óculos. Sem vergonha alguma, diz nunca ter lido Ulysses, de James Joyce, e Lolita, de Vladmir Nabokov. “Você ainda vai continuar lendo este livro depois de descobrir tudo isso?”, ele pergunta ao leitor, fazendo graça. Eu segui, e valeu muito ter passado pelas 400 páginas da obra publicada pela editora Arcade.

A autobiografia, vale registrar, tenta seguir uma ordem cronológica, mas, por vezes, vai e volta, muda de assunto. Para quem conhece a obra do diretor, as marcações temporais podem ser vistas em razão dos trabalhos lançados por ele no cinema, comentados pelo autor. Quem não conhece… só leia!

Aos 84 anos, as credenciais de Woody Allen seriam dispensáveis em outros momentos, mas não o são neste em que vivemos. Ator, diretor, escritor e músico premiado, o norte-americano também carrega em sua história uma acusação feita pela ex-namorada Mia Farrow: a de ter abusado sexualmente de uma filha adotiva dela (posteriormente adotada por ele), Dylan Farrow. Duas investigações foram feitas; em ambas, Allen foi inocentado. Mesmo assim, nos últimos anos, principalmente em decorrência do movimento #Metoo, o assunto tem voltado à tona. Quarenta por cento do livro abordam essa situação. Os outros sessenta são diversão pura. Comédia e drama em uma mesma história? É, a vida dele lembra, em certo sentido, os filmes escritos e dirigidos por Woody Allen.

Um judeu
Nascido em uma família judia numerosa no Brooklyn, Nova York, em 1935, Allan Stewart Königsberg sempre foi paparicado e manteve boa relação com os parentes. São eles, aliás, os primeiros a serem citados na autobiografia — um prato cheio para Allen. Segundo o autor, a teoria edipiana de Freud, em que o filho mata o pai para ficar com a mãe, não funcionou em relação a ele. A genitora era feia, não valeria a pena.

É com essa mesma graça que ele mesmo se vê, um “misantropo” e “iletrado” que não gostava de ler. “E por que deveria? O rádio e os filmes eram muito mais divertidos.” Se acreditamos em tudo o que o autor registra, vemos um sujeito cuja fortuna sorriu em boa parte da vida. “Eu sou o primeiro a dizer que tenho tido mais sorte e sucesso do que mereço.” Graças a uma prima, descobriu a paixão pelo cinema. Devido a uma redação feita aos 10 anos, em que citava conceitos psicanalíticos sem saber o que eram, tudo em nome do riso, percebeu que ser engraçado era legal. Anos depois, na adolescência, começou a enviar piadas a jornais, obtendo os primeiros trocados com a comédia. Daí a ser diretor de cinema foi quase um caminho natural, em uma estrada rica e divertida, finalmente compartilhada em livro. Nesse percurso, tornou-se um apaixonado por Ernest Hemingway, Tennesse Williams e Franz Kafka — muito embora, conta, a literatura tivesse tido inicialmente um fim utilitarista: o de sair com mulheres.

Após trabalhar escrevendo para jornais, Woody Allen foi contratado por comediantes para criar piadas. O próximo passo foi se tornar roteirista de TV, e foi num desses momentos que conheceu Jack Rollins, o produtor com quem trabalharia durante décadas. Rollins, além disso, foi quem sugeriu ao sujeito estranho/engraçado que fizesse stand-up. Funcionou, e a fama dele só aumentou. Aliás, o criador de Anne Hall (1977) diz que, por conta do status alcançado, as coisas às vezes não funcionavam como o previsto. Apesar da alta expectativa por parte de alguns dos contratantes, já que o nome Woody Allen vinha se tornando conhecido, não havia fila de quarteirão na primeira noite. Na segunda, os donos mexiam nos vasos de plantas para fazer o salão dar a impressão de um espaço menor. “Na terceira noite, eles precisavam de mais vasos de plantas para fazer o local parecer menos vazio. Na terceira semana, não havia ninguém. Apenas plantas. E eu fazia minhas piadas para folhagem.”

Popular na escola e atleta, foi no cinema que Allen se encontrou. Ao leitor, o autor conta que não sabia direito como escrever e dirigir, mas acreditava nele mesmo. O curso de cinema na Universidade de Nova York poderia ter sido um caminho, não fosse o fato de ele ter sido expulso por matar as aulas da graduação.

Ao longo da carreira nas telonas, iniciada nos anos 1960, são 40 e tantos filmes, uma série de prêmios Oscar para ele e para os autores com quem trabalhou. Apropos of nothing traz comentários sobre boa parte das obras, erros e acertos, na visão do autor. Ah, esqueça comentários técnicos: são chatos, conforme Allen, e ele não sabe muito sobre essa área.

As memórias do autor apresentam figuras que, mesmo distante, são conhecidas por parte do cenário cultural brasileiro. Nomes como Jack Nicholson, Scarlett Johansson, Arthur Miller. Allen ou trabalhou ou conversou ou jantou com eles em algum momento. Ou tudo isso ao mesmo tempo.

O diretor de Bananas (1971) também cita generosamente figuras com quem lidou e afirma ter aprendido muito com cada uma delas. Aliás, embora se diga uma pessoa não muito sociável, pela lista interminável mostrada no livro percebemos que nem tudo escrito é exatamente o que é.

Há, também, claro, espaço para talvez duas das principais paixões de Woody Allen: jazz e mulheres. No caso do primeiro, ele explica que toca de ouvido, não se considera um bom clarinetista e que queria ser genial como músico. Em relação ao segundo, bom… Harlene, Louise, Diane Keaton: a lista de mulheres com quem se casou/relacionou é enorme também. Com destaque, claro, para Mia Farrow e Soon Yi-Previn.

Relação conturbada
No final de 1992, a atriz Mia Farrow denunciou Woody Allen por abusar sexualmente de Dylan Farrow, filha adotada primeiramente por ela, cuja paternidade o norte-americano assumiu durante o relacionamento. Dylan tinha quatro anos na época. Duas investigações foram feitas; Allen foi inocentado em ambas. No livro, o escritor fala exaustivamente sobre o caso. Exaustivamente mesmo. O assunto toma, repito, quarenta por cento da obra.

Como atriz, Woody Allen elogia Farrow. Como companheira, a situação muda. Os dois ficaram juntos por 13 anos e, quando o diretor conheceu a futura namorada, ela já tinha dois filhos adotivos — Soon Yi-Previn, futura esposa de Allen, entre eles — e três biológicos. O autor afirma que havia sinais de que a relação não iria dar certo: a família de Mia era problemática, com casos de suicídio e prisões. A dele era cheia de amor, com imbróglios domésticos, mas nada demais.

O autor conta que eles nunca moraram juntos, tendo cada um a própria vida, embora se encontrando diariamente. Farrow, segundo Allen, era uma pessoa quando ao lado dele. Com os filhos, outra — algo que ele só viria descobrir anos depois. Embora sem entender direito, o diretor via que a atriz tratava parte dos filhos como criados, especialmente os que tinham sido adotados. Uma dessas filhas era Soon Yi-Previn, nascida na Coréia do Sul.

Allen tinha 57 anos quando teve um caso com Soon Yi, de 22 — algo que aconteceu ao acaso, conforme o autor. Farrow descobriu a traição ao encontrar no apartamento do namorado fotos sensuais de ambos. Aí a situação degringolou. O diretor diz ter entendido a raiva e todo o ódio sentido por Mia Farrow naquele momento. O que aconteceu daí em diante é que o diretor chama de injusto.

Allen garante ter ouvido a atriz afirmando que iria acabar com a vida dele. Farrow procurou a imprensa e tudo o que pôde para denunciar o caso. Allen afirma ter sempre se mostrado publicamente tranquilo, pois “sabia que estava certo”. Citando processos e testemunhas, o autor registra que Dylan Farrow, uma criança ainda, foi forçada a dizer que tinha sido vítima do pai.

Allen relata que inicialmente a denúncia teria ocorrido devido a um suposto carinho estranho feito em 4 de agosto de 1992, quando deitou a cabeça sobre o tronco da filha em uma sala cheia de gente. Em 2014, Dylan Farrow, já adulta, disse publicamente que tudo ocorrera em um sótão. Allen chama isso de lavagem cerebral, e afirma que não havia sótão na casa de Mia Farrow.

Inicialmente, o diretor sobreviveu às acusações, já que fora inocentado em duas investigações. Nos anos 1990, seguiu trabalhando e produzindo bons filmes. Tudo vinha dentro dos conformes até a chegada do #Metoo, movimento em que mulheres na indústria do cinema revelam situações de assédio e abuso que ganhou repercussão mundial em 2017. Daí em diante, novamente Woody Allen foi escrutinado publicamente, ouvindo de pessoas com quem trabalhara que elas estavam arrependidas. Essa nova onda contra ele resultou, também, no cancelamento de um contrato com a Amazon para a produção de filmes e boicote da editora anterior, que iria lançar a autobiografia. “Por que elas [as pessoas com quem trabalhou] não me dão o benefício da dúvida, apesar de todos esses pontos bem questionáveis quanto à acusação que desafia o senso comum?”

Ronan Farrow, filho biológico de Allen e Mia Farrow — mas cuja mãe já disse que pode ser filho de Frank Sinatra — também teria sofrido abusos psicológicos. Farrow, cujo primeiro nome verdadeiro é Satchel, escreveu para a revista The New Yorker sobre abusos na indústria do cinema. Allen diz que o que o filho fez é hipocrisia. O jornalista ouviu a todas as mulheres que tinham algo a dizer sobre abusos, mas não quis ouvir o que Soon Yi-Previn tinha a dizer sobre Woody Allen e Mia Farrow. “Por ele, tudo bem lidar com as mulheres que falam a verdade se a verdade for a versão da mãe.”

Ah, para mexer ainda mais com a questão familiar, há Moses, outro filho adotivo de Mia Farrow, que Allen, durante o namoro, também adotou. Ele, que era um adolescente de 14 anos em 1992, testemunha a favor do pai, garantindo se lembrar de sua mãe falando mentiras sobre o diretor quando ainda morava com ela.

Um velhinho
Woody Allen sabe que está no fim da vida e parece pouco se preocupar com o que pensam os outros. Para um livro de memórias, isso é fantástico, garantindo boas risadas e um e outro constrangimento. Ele diz não ver graça em comediantes que só sabem usar palavrões; elogia mulheres de uma forma que, digamos assim, foge ao politicamente correto. Aponta o dedo à indústria do cinema, dizendo não considerar prêmios relevantes porque a arte não deveria ser uma competição. Quanto à Mia Farrow, afirma que depois de tudo que acontecera ela quis fazer outro filme com ele; que realmente se apaixonou por Soon Yi-Previn, com quem é casado até hoje e tem duas filhas adotivas. Allen também diz ser favorável a maior representatividade dos negros na sociedade, embora não pense em cotas para os filmes dele.

Apropos of nothing apresenta, em sua maior parte, histórias deliciosas desse que é um dos principais diretores de cinema vivos. Diretor? Bem, Woody Allen prefere ser chamado, atualmente, de escritor. “Eu gosto de fazer filmes, mas se eu não fizer nenhum outro, não ficarei chateado. Fico feliz por escrever peças de teatro. Se ninguém produzi-las, fico feliz por escrever livros. Se ninguém publicá-los, fico feliz por escrever para mim mesmo.”

Por fim, o autor termina o livro do jeito mais allenesco possível: “Entre viver no coração e na mente do público, eu prefiro viver no meu apartamento”.

 

Woody Allen
Allan Stewart Königsberg, mais conhecido como Woody Allen, nasceu em uma numerosa família judia do Brooklyn, Nova York, em 1935. Escreveu e dirigiu filmes como Annie Hall (1977), Manhattan (1979), Match Point (2005), Café Society (2016) e Um dia de chuva em Nova York (2019). Entre seus livros traduzidos no Brasil estão Sem plumas (1979), Que loucura! (1981) e Fora de órbita (2007), entre outros.
Victor Simião

Formado em jornalismo e ciências sociais. Atualmente, é secretário de Cultura de Maringá (PR). Criou o clube de leitura Bons Casmurros.

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