Escrita em erupção

Em "Krakatoa", Veronica Stigger atualiza o pacto de expansão dos limites do literário em narrativa sobre catástrofes e fantasmas
Veronica Stigger, autora de “Krakatoa” Foto: Eduardo Sterzi
01/04/2025

Já tem mais de dez anos que muito se fala e escreve sobre a produção literária que rasura os protocolos de fixidez dos gêneros literários, colocando a literatura em um campo minado em que a não especificidade prevalece. Algumas reflexões teóricas se tornaram leituras obrigatórias em disciplinas de graduação ou pós-graduação interessadas nas metamorfoses do literário. Textos como o artigo Objetos verbais não-identificados, da professora e crítica Flora Sussekind, o livro Frutos estranhos, da acadêmica argentina Florencia Garramuño, além dos trabalhos fundamentais das críticas Rosalind Krauss, no final dos anos de 1970, e Josefina Ludmer, nos anos 2000, ajudaram a crítica brasileira a lidar com livros que pareciam destoar do que se convencionou como literatura, apostando em formas híbridas e provocando o surgimento de um novo arcabouço de análise a partir do estranhamento de obras como as de Carlito Azevedo e Luiz Ruffato.

Talvez se possa dizer que agora, o que há dez anos foi lido como estranho, passou a ser incorporado de vez pela nossa literatura, perdendo em parte sua aura de deslocamento. Não são mais casos de exceção e sim modos de escrever literatura em permanência na contemporaneidade. Isso se deve não apenas às manobras textuais dos escritores, mas também à velocidade supersônica com a qual tecnologias diversas passaram a interferir nos modos como produzimos textos e nos comunicamos nos últimos anos. E embora não se trate de um processo encerrado, é bem possível que daqui a pouco possamos falar em outros “objetos verbais não-identificados” absolutamente diferentes dos citados até aqui, até que novos conceitos busquem abarcar objetos literários do futuro.

Pacto de expansão
Veronica Stigger é uma das autoras brasileiras cuja produção acompanha os desdobramentos dessa discussão. Seu mais recente livro, Krakatoa, ao que parece, atualiza o pacto de expansão que caracteriza sua obra e reafirma o lugar desse tipo de composição em nossa literatura. Digamos que seu livro é um frame de vertigem, mistura de gêneros inclassificáveis que coloca o leitor à beira de um salto em queda livre. Nele, a autora nos oferece mais uma obra de espinha dorsal inabitual, ao mesmo tempo em que retorna a uma das suas obsessões, o fim do mundo tal como o conhecemos. A questão é que Stigger não recorre às narrativas já conhecidas por tematizarem apocalipse e distopia e é aí que mora o convite para visitarmos sem medo Krakatoa.

Nele, estão reunidos textos breves de diferentes gêneros, costurados pela noção de ruína que acompanha lugares e personagens. Daí a atividade de um vulcão, ou dos vários que percorrem as páginas do livro, ser escolhido como alegoria da catástrofe e da proximidade da finitude. Apesar disso, Krakatoa não é um livro sobre vulcões. No primeiro capítulo, Alba, talvez uma referência ao mais amplo vulcão do sistema solar em área e volume, um sujeito escuta o coro de vulcões, quando o resto do mundo faz silêncio, e ejacula descontroladamente. A seguir, uma coleção de mortos se espalha em diferentes capítulos entremeados por monólogos de elementos personificados como carvão, gelo, água, fogo e petróleo.

Este primeiro momento do livro, e nele ler-se 74 páginas, está o trabalho mais inventivo de Stigger em Krakatoa, em que localizamos mito, fantasia, nonsense, além de incontáveis referências geológicas que exigem um movimento para fora do texto. O título Krakatoa se refere ao vulcão homônimo, de uma ilha na Indonésia, que entrou em erupção em 1883, deixando mais de 30 mil mortos. Sabemos com as várias páginas na internet sobre o assunto (parece que há um mundo em paralelo interessado em vulcões!) que esta foi uma das grandes catástrofes já vistas na história. Além dele, outros como Eldfell, na Islândia, Popenguine, no Senegal, ganham capítulos no livro. Com eles, nos aproximamos de uma experiência de suspensão do tempo e espaço ordinários em que vivemos, para acompanhar o que a autora quer nos mostrar além do que a vista alcança, assim como a modernidade nos sugeriu enquanto conquista literária. A representação do que caracterizamos como real não vem ao caso, ainda que doses de realidade apareçam nas escolhas formais em todo o livro (citação de informações de almanaque, apropriação de recortes de notícias por exemplo) e na sugestão da sombra da autora, formando uma autora-modelo ou uma personagem a partir da segunda parte.

Um livro dentro do livro
É notório o gesto de Veronica Stigger de evidenciar a literatura como procedimento. Nesse sentido, a autora entrega a escrita do livro desde a largada da segunda parte: “Por muito tempo, pensei em começar o livro com a pergunta:”. E é a partir daí que estão reunidos os textos brevíssimos em que encontramos Veronica e amigos, personagens da cultura e política brasileira, clássicos do cinema, os fantasmas do Palácio da Alvorada e dos ex-ministros e da loira de beca branca do Supremo Tribunal Federal. O evidente trabalho de pesquisa, assim como o repertório-leitor da autora, estão todos a serviço do texto. E os vulcões permanecem lá, o Krakatoa que segundo sua pesquisa “colapsou por completo”, e o Monte Tambora, autor da maior erupção da história, também na Indonésia, no ano de 1815, e que continuou ativo depois disso.

A escrita no entremeio de diário e autoficção da segunda parte ilumina a aparente falta de conexão dos textos da primeira seção, ao realçar o projeto da autora. A exposição de si também é estampada em detalhes como a citação das gravuras da série Opisanie swiata, de Roman Opalka. O título polonês (Descrição do mundo em português) dá nome ao seu premiado livro, publicado em 2013. A autora também relata as leituras que fez antes da ida a Indonésia em 2017 para participar de dois festivais literários, em Jacarta e Ubud, e quando exatamente começou a se interessar por vulcões. A este propósito, uma informação importante. Nessa mesma viagem, Stigger encontrou dois amigos e o escritor Victor Heringer. Olhado em conjunto, Krakatoa é também uma declaração afetiva a Heringer, morto no ano seguinte. A despedida que nunca aconteceu.

Mesmo não tendo vulcões ativos, o Brasil também comparece ao mapa vulcanológico de Stigger, na epígrafe de Waly Salomão e no texto breve em que sabemos que em 2017 terremotos foram sentidos em São Paulo e nas cidades baianas de Matuípe e Amargosa, no Vale do Jiquiriçá e no Recôncavo respectivamente.

Este é, sem dúvidas, um dos melhores momentos da autora. Melhor do que os anteriores por saber incorporá-los na linguagem, como se os procedimentos de duas décadas culminassem na erupção da forma agora apresentada.

Krakatoa
Veronica Stigger
Todavia
173 págs.
Veronica Stigger
Nasceu em 1973, em Porto Alegre (RS). É escritora, crítica de arte e professora universitária. É autora de Delírio de damasco (2012), impresso em gráfica própria e costurado manualmente, Opisanie swiata (2013), vencedor dos prêmios Machado de Assis da Biblioteca Nacional, São Paulo de Literatura e Açorianos de Literatura, Sul (2016) e Sombrio ermo turvo (2019). Desde 2001, Veronica mora em São Paulo (SP).
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

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