Erotismo e humor

"As onze mil varas" é uma divertida e sacana aventura que ridiculariza a sociedade francesa do final do século 19
Guillaume Apollinaire, autor de “As onze mil varas”
27/01/2018

Novela libertina, livro erótico, novela pornográfica são todas formas de se pensar em As onze mil varas, de Guillaume Apollinaire. Louis Aragon já dizia que não se trata de um livro erótico, mas sim de um jogo: “é um livro em que toda a habilidade de Apollinaire e seu conhecimento de certa vulgaridade inquietante veem às custas da sinceridade e da vida. E é talvez o livro de Apollinaire em que o humor se mostra com maior pureza”.

Um livro capaz de produzir diferentes reverberações. Um exemplo é a relação, já assinalada por alguns críticos, com a pintura de Duchamp (amigo de Apollinaire), seu último quadro de 1918, Tu m’. Um quadro de grandes medidas (69,8 x 313 cm), em que se vê à esquerda uma fileira de quadrados de várias cores que parecem se multiplicar infinitamente, numa longa fuga de perspectiva, somada a sombra dos ready made.

A trama (se for possível falar de trama) proposta por Apollinaire é uma montagem de muitas situações típicas recuperadas da tradição dos feuilleton, daqueles romances sentimentais e adocicados de péssimo gosto, e de escritos eróticos de outrem tomados emprestados, tudo composto numa ambientação caracterizada por grandes hotéis de fronteira, vagões ferroviários de primeira classe, transatlânticos de luxo em que se dão as movimentadas e conquistadoras aventuras. Ecos sim de Sade, mas também de Rabelais, como apontou Michel Décaudin.

A variedade da geografia e territórios já é anunciada nas primeiras linhas do livro: “Bucareste é uma bela cidade onde parece que vem se misturar Oriente e Ocidente. Estamos ainda na Europa se nos atentamos somente à situação geográfica; mas já estamos na Ásia se nos referimos a certos costumes do país, aos turcos, aos sérvios e outras raças macedônicas cujos espécimes pitorescos podemos observar pelas ruas”. Assim se abre a história do príncipe Mony Vibescu que troca Bucareste pela encantadora Cidade da Luz, “onde as mulheres, todas belas, levam também, todas, uma vida fácil”. O corpo do príncipe é comparado ao Apolo do Belvedere.

O texto de Apollinaire ridiculariza a sociedade da época, mas as referências a personagens que realmente existiram se perderam, o que resta é traço caricatural que marca esses personagens. Não escapam do olhar crítico e afiado do poeta escritor os “tapinhas” dados aos simbolistas e a feroz crítica aos valores morais e católicos. O próprio título pode ser lido nesse sentido, em francês o termo verges (Les onze mille verges) traz um trocadilho por meio da semelhança entre verges (varas) e vierges (virgens) —  que se perde na tradução —, mas não esqueçamos que as varas são onze mil como as virgens da lenda católica de Santa Úrsula, que escolheram o martírio ao invés de se submeterem às manias do rei dos hunos.

O fio que vai alinhavando a teatralidade das orgias, aventuras, descrições e cenas eróticas é o das viagens narradas. É justamente por meio delas que o autodenominado príncipe coleciona experiências e parceiros de sexo. As cenas escatológicas e inusitadas, o prazer a qualquer preço, vida e morte, a pedofilia, a necrofilia,  a insaciabilidade podem arrancar risos, considerando o humor alertado por Aragon. Existe sim em As onze mil varas um espectro zombeteiro, brincalhão que elimina qualquer possibilidade de páthos.

E como estavam passando sobre uma ponte, o príncipe colocou-se à porteira para contemplar o panorama romântico do Reno que estendia seus esplendores verdejantes e se desenrolava em vastos meandros até o horizonte. Eram quatro horas da manhã, as vacas pastavam nos campos, as crianças dançavam sob as tílias alemãs […] Vilarejos felizes animavam as margens dominadas pelos burgos centenários e as vinhas renanas estendiam ao infinito seu mosaico regular e precioso. Quando Mony se virou, viu o sinistro Cornaboeux sentado sobre o rosto de Estelle. Sua bunda de colosso cobria a face da atriz.

O posfácio assinado por Oscar Cesarotto aborda a questão da crueldade como um tempero necessário, chamando a atenção para a morte do personagem do príncipe no final, o que seria praticamente impossível em Sade, “defensor da prosperidade do vício”, e estaria muito mais perto do martírio para Masoch. Para Cesarotto, “letais, plurais varas ejetaram o príncipe do prazer, enquanto uma única, a própria, jamais espocaria a totalidade das virgens: potência garantida; insatisfação, mais ainda”.

É interessante a nota da tradutora para aqueles que se interessam pelas curiosidades e peculiaridades dessa área. O ritmo, o jogo de palavras, como lidar com expressões populares da época em que o texto foi escrito, esse emaranhado que é da palavra e da linguagem? A resposta de Letícia Coura é “Na verdade sabemos que as palavras têm vida própria, escolhem onde querem estar, que sentido dar às coisas, ações, sensações e sentimentos. O que fazemos é humildemente dar passagem a elas […]”.

As onze mil varas
Guillaume Apollinaire
Trad: Letícia Coura
Iluminuras
143 págs.
Guillaume Apollinaire
Nasceu em Roma (Itália), em 1880, e morreu em Paris (França), em 1918. Poeta, escritor, crítico de arte e dramaturgo, suas principais obras são O bestiário ou O cortejo de Orfeu (1911) e Caligramas (1918).
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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