Desde sua chegada ao Brasil, no final de 2024, Solenoide, do romeno Mircea Cărtărescu, tem recebido atenção da crítica e dos leitores, incluindo o recente prêmio de Melhor Tradução pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) pelo trabalho de Fernando Klabin, que verteu o romance para o português direto do romeno.
Na longa narrativa, acompanhamos um professor de gramática e literatura que inicia um diário sobre suas memórias, sonhos e relacionamentos junto com as estranhas experiências que vive nas ruas e submundos de uma Bucareste em ruínas, com pesquisas de pensadores nada convencionais e seus manuscritos indecifráveis, experimentos de enforcamento, tatuagens, geometria não-euclidiana, ácaros e sarcoptas, deuses e fantasmas.
Apesar da profusa escrita do diário, o protagonista defende-se o tempo todo da alcunha de escritor — tampouco entende como literatura aquilo que nos apresenta. “Escrevo estas páginas, apenas para mim, na inacreditável solidão de minha vida”, conta o protagonista, enquanto explica que, “se quisesse escrever literatura, eu o teria feito dez anos atrás. Quero dizer, se quisesse de verdade, sem esforço consciente, assim como quando queremos que nosso pé dê um passo e ele dá”.
E ele tentou. Quando pequeno, e um tanto catatônico, leu todos os livros que encontrou. Fermentou em si todas as palavras que absorveu até escrever A queda, um poema épico que sintetizou seu mundo — como disse em certa altura, não era apenas “um poema”, mas “O poema”. No entanto, o texto que deveria alçá-lo “à literatura com a naturalidade com que abrimos uma porta”, na verdade, o guiou para “outro rumo, repentino, quase grotesco, como num desvio de trilhos”.
Meu “A queda”, primeiro e único mapa de minha mente, caiu na noite de 24 de outubro de 1977 no Cenáculo da Lua, que então era organizado no subsolo da Faculdade de Letras. Jamais consegui superar o trauma. Lembro-me de tudo até hoje, com a clareza de uma lanterna mágica, assim como o torturado rememora a extirpação de unhas e dentes anos depois, quando desperta aos berros, encharcado de suor. Foi uma catástrofe.
Duplo espectral
Como explica, não se trata de uma catástrofe qualquer, como um desmoronamento ou uma batida, mas como uma moeda que cai do lado errado no momento crucial. Quis a sorte que as impressões de leitura fossem negativas e que o sentimento aflorado fosse de resignação e não de desafio a ser superado. A partir dali, todos os caminhos possíveis para um destino de escritor foram podados… e a sombra da vida que poderia ter vivido, como alguém que teve sucesso a partir da leitura A queda, recebida com aplausos e consagração, passa assombrá-lo como um duplo espectral.
Há ainda uma segunda camada na construção desse reflexo: em 1977, após a leitura de um poema intitulado A queda num sarau literário, Mircea Cărtărescu tornou-se um escritor conhecido. Desde então, publicou diversos trabalhos em poesia, prosa e ensaios, foi laureado com prêmios e honrarias nacionais e internacionais e aparece, há alguns anos, na lista de possíveis ganhadores do prêmio Nobel de Literatura. Entre as obras traduzidas por aqui, temos Travesti (Veneta, 2019), quadrinho escrito em coautoria com o artista francês Edmond Baudoin, e Nostalgia (Mundaréu, 2018), uma narrativa híbrida que une o formato de uma coletânea de contos com um romance.
Nesta publicação, o prefácio escrito pelo professor Leonardo Francisco Soares destaca alguns dos elementos da prosa de Cărtărescu, como a presença da cidade de Bucareste “quase como uma personagem”, a potencialidade da infância e juventude em comparação com o determinismo da vida adulta, quando os caminhos para o futuro já se tornam escassos e traçados pelas escolhas anteriores, e a valorização da linguagem dos sonhos — considerando o sonho não como um espaço simbólico ou como realidade fantasiosa e secundária, mas como composição de uma realidade total.
Tal retrato complexo da realidade junta-se ao ímpeto de escrita dos grandes romances enciclopédicos, aqueles que se pautam pela criação do reflexo do mundo ainda que confrontado com limitações da fragmentação e descentramento. Com “o questionamento de uma totalidade cerrada e o desejo de ultrapassagem das convenções literárias, sob a forma do narrador onisciente, da estética e do retrato psicológico das personagens”, Soares aponta que a ficção de Cărtărescu evidencia a impossibilidade de um “espelho de um mundo movediço através da catalogação em massa de saberes, da crença nos métodos e procedimentos teóricos”.
Para tensionar essa relação da escrita de um romance impossível, seguimos esse duplo de Cărtărescu que, após a leitura de seu poema, não virou escritor. Acompanhamos seus pensamentos repletos de assombrações, sonhos e alucinações em quatro cadernos. São esses diários que formam Solenoide.
A partir dessa primeira espécie de Doppelgänger, outras duplicações permeiam o romance. Assim como é assombrado pelo autor que teve sucesso, o narrador também questiona a vida de um irmão gêmeo falecido e sua infância, quando era tratado como menina, usando tranças e vestidos colocados pela mãe.
Tais duplos também emergem em outros personagens, como, por exemplo, na imagem da companheira enferma que se torna outra pessoa (e passa, de brinde, a ter um relacionamento com outro duplo do autor) ou na correspondência de nomes entre mãe e filha. A proeminência dessas figuras duplicadas sugere uma importante chave de leitura para Solenoide: a construção do infamiliar (ou, do alemão, Unheimlich). O termo, cunhado pelo psiquiatra alemão Ernst Jentsch e desenvolvido, anos depois, por Sigmund Freud no ensaio Das Unheimliche, diz respeito a uma sensação desconfortável que emerge a partir de um deslocamento, seja quando sentimos que algo novo nos parece familiar ou quando algo conhecido se mostra alheio ao nosso conhecimento prévio.
Construção do infamiliar
O exemplo mais conhecido talvez seja o de autômatos inanimados que, ao parecerem cheios de vida, nos deixam inquietos. Cărtărescu usa de tais artifícios em certas figuras que habitam o limiar de mundos, seja como monitores em turmas infantis, velhos que entram em contato com uma outra ordem de existência ou estátuas que intimidam os membros de um grupo que protesta contra a morte, o sofrimento e as doenças — elementos, inclusive, que surgem como recorrentes na construção do infamiliar.
Cărtărescu faz uso de uma vasta simbologia ao longo dos momentos de vida de seu narrador. São doenças físicas e mentais que fragilizam a corporeidade do protagonista e fragilizam a confiança em seu relato, profundas discussões sobre mortes e fantasmas e a reflexão sobre seus respectivos corpos. Cărtărescu aproxima-se das narrativas de horror corporal ao lidar sobre a temática: as vísceras que grudam no pé de uma estátua esmagada, a descrição de um fio sendo removido de dentro de um umbigo, ossos e tranças que atuam como uma constelação pessoal ou a descrição de pequenos parasitas cultivados na pele de sua mão.
A frequente repetição desses elementos simbólicos nos auxilia na construção de um sentimento de infamiliaridade. Ao lado desses elementos corporais e traumáticos, como a figura dos insetos repousando em punhos fechados, na figura dos sarcoptas ou da cadeira de dentista, questões “telepáticas” podem surgir, como as coincidências em números que se repetem e abrem fechaduras, a repetição de um padrão de cores que aparece em maquinários, unhas e até na coloração das costelas ou as sensações de coincidência, previsão e agenciamento do mundo real como fruto do exercício intelectual.
Por fim, há uma presença intensa do horror existencial marcado pela atmosfera sombria e o temor do escuro — demarcado na figura do céu estrelado que observava durante algumas noites aterrorizantes de sua infância. A presença de momentos de silêncio e do medo da morte também são suporte para esse pavor primordial — são momentos que se relacionam ao que H. P. Lovecraft descreveu como horror cósmico, o medo que se origina na vastidão do universo e marca tudo aquilo que não pode ser materializado pela mente humana: outra temporalidade, outras formas de vida, outra realidade, outras dimensões.
Horror cósmico
O pavor existencial emanado pelo escritor gera crises que perpassam o romance nos mais variados níveis. Em primeiro lugar, uma crise do corpo. Ao debruçar-se sobre a questão corporal e, em diversos momentos, evidenciar seus aspectos grotescos, apresenta o corpo como algo insuficiente. Conscientes da própria mortalidade, somos como cadáveres ambulantes, somos como os parasitas que habitam nosso corpo.
O corpo deles [dos piolhos] e o meu corpo, molhado e despido como estou, inclinado por cima da pia, são constituídos pelos mesmos tecidos orgânicos. Com órgãos e funções análogas. Com olhos que veem a mesma realidade, pernas que os conduzem pelo mesmo mundo infindo e incompreensível. Querem viver, assim como eu também quero. Faço-os sumir da superfície da pia com um jato d’água. Descem pelo ralo, chegam aos canais subterrâneos.
Se o corpo é insuficiente, também é nossa percepção da existência. O pouco que vemos não suporta dimensões superiores e nem é materialmente capaz de conceber possíveis existências divinas. Se Deus — como ser divino ou um reles habitante de um mundo em quatro dimensões — for vivo, o pensamento racional não é capaz de compreendê-lo. Da mesma forma que rejeitamos os sonhos, as memórias instáveis, as alucinações. “O real, nossa pátria legítima, deveria ser o mais fabuloso dos reinos”, escreve Cărtărescu, “no entanto é a mais opressora das prisões”.
Por isso, o escritor também denuncia uma crise na arte. Se a realidade é uma prisão, deveríamos criar narrativas voltadas para a fuga, para algo que nos faça transcender e escapar do mundo asfixiante. No entanto, a literatura percorre outro caminho e o paralelo que Cărtărescu constrói é: como um gato que lambe o dedo de seu dono ao invés de preocupar-se com o objeto apontado, também contemplamos o indicador divino ao invés de procurar sua mensagem.
No esquema das coisas, a literatura se torna “um museu hermeticamente fechado, museu de portas ilusórias, de artistas preocupados com nuances cor de café e com a imitação mais expressiva possível dos batentes, das dobradiças e das maçanetas, do preto veludoso do buraco da fechadura”. Construímos belas portas nas páginas dos cânones. “Cada porta nos confunde e decepciona, tanto quanto o olho se deixa enganar. São pintadas com maestria, mas não abrem.”
Por isso o narrador do livro, o espelho de Cărtărescu, defende seu espaço de não escritor. Em certo momento, afirma:
Não escrevi ficção, mas isso revelou minha vocação: a de buscar, na realidade, na realidade da lucidez, do sonho, da lembrança, da alucinação e em qualquer outra. Embora dela emanem medo e horror, minha busca, no entanto, me satisfaz por completo, como as artes desprezadas e não reconhecidas do adestramento de pulgas ou da prestidigitação.
Na corda bamba entre parasitas e deuses, Cărtărescu apresenta uma crise da própria existência. A lembrança da mortalidade aliada à impossibilidade de conceber Deus mina o propósito da existência com recorrência ao longo da leitura. Como se questiona o protagonista, ao refletir sobre a crueldade da consciência:
Por que sei que existo se também sei que não existirei? Por que me foi dado acesso ao espaço lógico e à estrutura matemática do mundo? Só para os perder quando meu corpo for destruído? Por que desperto de madrugada com o pensamento de que vou morrer e me apoio nos cotovelos, coberto de suor, e grito, e me debato, e tento sufocar o pensamento intolerável de que vou desaparecer por toda a eternidade, de que nunca mais existirei até o fim dos tempos?
Como saída possível para apaziguar um pouco da angústia do protagonista gerada pelas crises, entra em cena a resolução de um dilema. Caso precisasse salvar apenas um item de uma casa em chamas, salvaria o bebê ou a obra de arte? Quando confrontado com a pergunta no nível teórico, é irredutível: a criança. Ainda que a criança cresça e se torne um tirano como Adolf Hitler e que o quadro, em questão, seja de inestimável valor para a cultura, como uma Mona Lisa? Sim, reitera o protagonista.
No entanto, ao longo do livro, conhecemos uma galeria de homens obcecados que salvaram as obras: são aqueles que procuram recriar a vida nas palavras e nas tatuagens, os que buscam a verdade em manuscritos misteriosos, em modelos geométricos ou em experimentos de quase morte com enforcamentos, aqueles que se tornam um tipo de deus ao criar sua própria comunidade de ácaros (e que, em determinado momento, transforma-se em palco para uma recriação da chegada de Cristo anunciando a salvação).
A própria concepção da casa onde o protagonista habita, acima de uma bobina elétrica que cria campos eletromagnéticos — conhecida como solenoide —, é fruto dessas escolhas realizadas por outro inventor. Porém, quando compreende a conexão entre esses aparatos, o fluxo das cidades e a razão dos sofrimentos próxima à conclusão dos diários, o narrador precisa encarar o dilema de maneira prática e decidir: quem salvar, a arte ou a criança?