Em recente entrevista para o jornal El País mexicano, a escritora uruguaia Fernanda Trías se referiu ao despontar da nova geração de autoras latino-americanas como um tsunami: “Não somos um boom, mas um tsunami”. Dele fazem parte diversas escritoras já conhecidas dos leitores brasileiros, como Mariana Enríquez, Samanta Schweblin, Lina Meruane, Guadalupe Nettel, Ariana Harwicz. O interessante, na magnitude dessa onda, é dela também fazerem parte outras autoras (precursoras dessas hoje na crista) que num passado recente estiveram ensombrecidas por circunstâncias adversas à difusão de seus nomes e suas obras. Esse é o caso da mexicana Elena Garro, que ressurge, quase trinta anos após sua morte, junto ao tsunami de escritoras latino-americanas contemporâneas.
Uma amostra da obra de Elena Garro em edição brasileira já havia aparecido há doze anos, em tradução de Josely Vianna Baptista, na Antologia de literatura fantástica (organização de Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges). Esse primeiro texto traduzido (Um lugar sólido), uma peça de teatro, é exatamente o que marca a estreia da autora na literatura mexicana em 1957. Antes disso, porém, Elena já incursionava por jornais e revistas como jornalista, publicando entrevistas, reportagens e crônicas em que se fazia conhecer por seu ativismo contra a marginalização das mulheres, dos indígenas e dos camponeses.
Em 2019 foi lançado no Brasil seu emblemático romance de 1963, As lembranças do porvir (Arte e Letra), reeditado no ano passado, em tradução de Iara Tizzot. Agora chega às livrarias a reunião de contos A semana das cores, em tradução de Silvia Massimini Felix, pela Pinard, cujo formidável catálogo nascente (a editora existe há cinco anos), incluindo autoras como a argentina Juana Manso e a cubana Gertrudis Gomez de Avellaneda, vem cumprindo desde já seu objetivo de “ampliar nosso acervo de literatura latino-americana”, ampliando, assim, nosso olhar para as Américas que são a nossa casa.
Quem esteve no lançamento de A semana das cores, em São Paulo, acompanhou em transmissão ao vivo do Novo México a professora Patricia Rosas Lopátegui, biógrafa de Elena Garro, discorrer sobre a vida e a obra da autora, recuperando o contexto histórico e político de sua época, e iluminando a importância de seus contos no contexto dos tempos atuais. Lançar-se à leitura desses contos (treze ao todo), depois da substanciosa apresentação de Lopátegui, é ter em mente, de partida, certos elementos constitutivos dessa prosa e certas fontes de que bebem suas histórias: a fonte da infância e sua cosmovisão mágica, a ideia de um tempo cambiante, uma complexidade de linguagem de alta carga poética e o trânsito de temas sociopolíticos do jornalismo para a literatura.
Na própria pele
Entre esses temas, que Elena costumava abordar como cronista no calor dos acontecimentos, depois trabalhando-os na dimensão fabulosa do conto, estão a pobreza, o racismo, o autoritarismo e a corrupção do Estado, a impunidade, a violência de gênero, os crimes contra indígenas e camponeses. Temas que a escritora experimentou na própria pele: sua família era de origem mexicana e espanhola, seu casamento com Octavio Paz entre 1937 e 1959 consistia numa relação desmoralizante e destrutiva para sua vida de escritora, seu exílio político e pobreza eram fruto de sistemática perseguição do governo mexicano desde 1968. Tudo matéria da escrita que Elena colhia da própria vida, assim como seu manejo de elementos mágicos vem de memórias da infância, do que resulta uma literatura não apenas autobiográfica, senão também singular e não artificiosa.
Elena Garro concordava com Ortega y Gasset no sentido de que “o que não é vivência é Academia”. Seu mundo de criação, longe do acadêmico, está ligado à memória transfiguradora das coisas vividas. Em suas palavras, “o ato de escrever é um ato de liberdade privada”. Se pessoas e circunstâncias colaboraram para silenciar Elena, desacreditando-a por décadas, não havia quem ou o que lhe impusesse limites na dimensão da escrita (ainda que Octavio Paz a humilhasse com tal eficácia que seu manuscrito de As lembranças do porvir quase tenha acabado no fogo).
O rótulo de “precursora do realismo mágico” — que a Lopátegui, sem rodeios, chama de “mercantilista” — é essencialmente acachapante: o que há de mágico nessa obra bebe da cosmovisão dos povos originários e, na contramão dos clichês, redimensiona a visão e a compreensão da cultura mexicana. Numa entrevista de 2006, ao falar sobre o conto A culpa é dos tlaxcaltecas, de A semana das cores, Helena Paz Garro, filha da escritora, comenta que aí “renasce a epopeia asteca”, a recriação do “drama da queda da grande Tenochtitlán”, e como isso é feito, pela primeira vez na literatura, é também o que distingue Elena entre seus contemporâneos: “sem raiva dos espanhóis nem desprezo pelos indígenas”.
À bravura de manter-se escrevendo em condições pessoais e históricas adversas (por exemplo, numa época sem liberdade de expressão), somam-se o ativismo e a vocação jornalística numa só mirada incisiva, mesmo dentro de mundos fantásticos: contos como Era Mercúrio, A culpa é dos tlaxcaltecas e O anel tocam na realidade dos abusos do sistema político pós-revolucionário mexicano dando nome, também real, aos abusadores e aos corruptos poderosos. Tanto no romance As lembranças do porvir como nos contos de A semana das cores estão presentes os generais, os pistoleiros e os fantasmas de terras cheias de sangue sob governos tirânicos. No tempo das sombras e dos fuzilamentos, em campos cheios de demônios e povoados “esquecidos da arte das festas”, como o povoado de Ixtepec do referido romance, a fantasia refugia-se entre os enjeitados e as crianças.
O imaginário da infância, tão caro à Elena (e enraizado na cultura indígena), além do amor, é o que descortina outra dimensão do tempo e dos fatos, especialmente nos contos que envolvem as personagens das irmãs pequenas Eva e Leli, como O dia em que fomos cães, Antes da Guerra de Troia, O roubo de Tizla, Nossas vidas são os rios, O duende, além do conto-título do livro. À luz do pensamento mágico que habita essas personagens, os dias não obedecem à ordem ou à duração do calendário, há segredos incríveis nos jardins de casa e nos nomes (e “tudo que é incrível é verdadeiro”), o mistério ocupa os interstícios das ações e das paisagens, Buda e Cristo são dois cães sem crime, e a morte é um assombro palpável que toca com “seus dedos fininhos” as árvores e as ruas.
No conto Nossas vidas são os rios, o passe mágico que dissolve “a quietude que imobilizava a casa”, fazendo com que “a noite começasse a navegar ao longo de um leito de rio amplo e caudaloso”, está justamente nos versos de um poema (de Jorge Manrique), ditos em voz alta por uma personagem. Não será exagero dizer que o poético, na contística de Elena (que também foi poeta), combate o jugo sanguinário dos poderosos e o desmantelo da memória tanto quanto, na vida e no jornalismo, seu engajamento nos movimentos políticos e sociais, como o movimento dos camponeses de Ahuatepec (que inspira o conto O anel).
O bom combate
A violência sofrida por Elena Garro, no âmbito pessoal, com o desprezo de um esposo que lhe atravancava o caminho de escritora, e no âmbito público, com a perseguição do governo de Gustavo Días Ordaz, não está distante da violência e marginalização sofridas por outras mulheres numa sociedade patriarcal e no mundo (igualmente patriarcal) das letras e das artes, nem distante da perseguição (do preconceito ao massacre) aos camponeses e indígenas. Tudo isso lhe dizia respeito e estava do mesmo lado do seu bom combate. Seja a falar da pobreza, do preconceito — “a velha repugnância criolla para com os índios” — ou da violência contra mulheres, como nos contos O sapateirinho de Guanajuato, A árvore ou O anel, também o que é misterioso e mágico aí se infiltra e, tanto quanto aquela mirada incisiva e crítica, redimensiona noções de tempo, espaço e humanidade.
Nesta época propícia a reavaliações, que tem resgatado tantas mulheres à margem dos poderosos de seu tempo, Elena passa a figurar no cânone das letras mexicanas, enfim “desensombrecida”, com novas edições e traduções de uma obra prolífica, que inclui peças de teatro, crônicas, romance, contos, entrevistas, roteiros de cinema, cartas, poemas. Vem encontrar, em sua entrada no Brasil, uma biblioteca de autoras igualmente em revisão e renascimento, a exemplo de Dinah Silveira de Queiroz ou Maura Lopes Cançado de volta às livrarias, redespertando para novas gerações as precursoras do novo “tsunami” latino-americano. Indo um pouco além da óbvia reparação de uma injustiça, há que se pensar se não é uma perspectiva mais ampla do tempo e da história que enfim nos revela a contraface da hegemonia dos vitoriosos.