Cicatriz aberta

O romance "Setenta", de Henrique Schneider, trata da violência e opressão que assolaram o Brasil nos anos de chumbo
Henrique Schneider, autor de “Setenta”
27/02/2020

Me diz de quem são as falas a seguir e os anos em que elas foram ditas:

Sou a favor da tortura. Através do voto, você não muda nada no país.

Não há tortura no Brasil.

A primeira soa como os tempos sombrios da ditatura, abafando fatos, escondendo denúncias, enterrando corpos em valas clandestinas — mas não. Essa fala é de 1999, proferida por Jair Messias Bolsonaro, durante o programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes. E não parou por aqui, ainda no decorrer de sua entrevista — longe de sonhar em ser o comandante deste país e um deputado federal do baixo clero do Congresso —, disse, em alto tom, que era também favorável ao pau de arara (método de tortura utilizado no período ditatorial). Uma ascensão ao ódio, por especular a alternativa da violência para conter as ideologias e opiniões contrárias. Mas, calma aí, isso foi há bastante tempo, o cara mudou, né? Não. Bolsonaro, duas décadas depois, não se desconectou das suas posições, muito menos colocou a mão na consciência e refletiu sobre os acontecimentos do passado tenebroso do Brasil. Estimulou, alavancou e agregou seguidores. Apontou que a bandeira do país jamais seria vermelha, nunca esteve aberto aos debates plurais em torno da sexualidade, ideologia e liberdade de expressão.

A segunda frase é de Alfredo Buzaid, ministro da Justiça de 1969 a 1974. Muito tempo atrás em relação à fala de Bolsonaro. Os anos são outros, mas o gosto de sangue ainda desliza na língua da história nacional. É com essa epígrafe que Henrique Schneider abre o seu romance Setenta, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2017. Não à toa, Buzaid foi um dos juristas favoráveis ao AI-5 — Ato Institucional nº 5. Foi a partir desse Ato que a violência militar se fortaleceu. Desse significativo, porém conturbado, momento é que Schneider conduz o seu enredo, tendo como foco os dois dias tenebrosos vividos pelo personagem Raul, bancário que foi capturado, erroneamente, pela polícia e teve dias de tormentas em um porão sujo, escuro e frio de Porto Alegre.

Cegueira histórica
Schneider começa o seu livro com o narrador nos informando que a luminosidade é o acalanto, a necessidade, a maneira ideal para a vida: “O sol, a claridade. Esta cegueira”. A luz, esse sol que quase cega Raul é do dia 21 de junho de 1970, poderia ser qualquer um, mas era a data da final da Copa do Mundo. Sabemos que a seleção brasileira se tornaria campeã, vencendo o time italiano por 4 x 1, e erguendo o tricampeonato no México, feito histórico para uma seleção no torneio, na época. Mas estamos no começo do fim da trajetória de Raul. Schneider, então, quis apresentar para o leitor o medo da pós-traumática situação da tortura. O medo de não saber se sairia daquela situação vivo ou morto. A sensação de pavor de ser um corpo na vala do esquecimento histórico. Os seus carrascos ficariam impunes? Um senso crítico de não suportar o comportamento dos funcionários do Estado, do choque que perdurou por anos e que ainda é aquela cicatriz aberta nas costas do país — atualmente negada e de difícil visão por boa parte da população, mas está lá, na carne viva.

Eles o haviam tirado do cubículo aos empurrões descuidados de marcas e feridas, dando risadas como se estivessem em festa, e apenas tinham dito, entre gargalhadas, que havia novidade em seu em seu caso.

Somos apresentados ao simples bancário que de nada surpreende em seu cotidiano. Pronto para sair e descontrair em uma típica sexta-feira, o pacato Raul é capturado pelos agentes do governo e, confundido com um comunista, é levado ao coração das trevas do período de chumbo do Brasil. Os cenários construídos por Schneider são de modo cinematográfico, detalhadamente e sem deixar escapar as poucas estruturas que o ambiente fornece. Como o cativeiro, locação onde será boa parte da história, sendo que cada plano de sua narrativa é montado para sentirmos o frio na espinha e, claro, o medo do personagem:

A cela era um cubículo quadrado, com pouco mais de dois metros, sem nenhuma janela, trancada por grades espessas de ferro e onde não se adivinhavam a noite e o dia. As três paredes estavam cheias de garranchos e marcas, alguns nomes e datas, pequenos desenhos e frases, feitos sabe-se lá por quem e com que instrumento. Ele olhou para cima e não viu qualquer bico de luz no teto baixo e escuro. Num dos cantos, havia um balde sujo, que Raul adivinhou em aflição a que serviria, e uma pia — vazia e ainda imunda. No chão úmido de cimento queimado, estava um colchonete fino e encardido. Sobre o colchonete, alguém havia disposto um cobertorzinho puído e cinzento. O cobertor estava caprichosamente dobrado, numa espécie de ironia cruel.

Setenta utiliza diversas vezes de tons escuros. Sombrios. Um breu que acompanha Raul em um ambiente de finada luz. A neblina na retina do brasileiro que não alcança ou tateia o período macabro e causador de tantas mortes e atrasos na nossa cultura. O blecaute de um continente à mercê do imperialismo, no obscurantismo a arquitetar o medo. O indescritível pesadelo bem desenvolvido na narrativa de Schneider, a colocar o protagonista em uma prova de fogo evocando muitas vezes a tensa trama de O processo, de Kafka, em uma melancólica opacidade que transformará para sempre o psicológico do protagonista. Desnorteado. “Não era delírio, nem pesadelo, nem nada. Era real, estava acontecendo e Raul não sabia quando ou como ou se iria terminar.”

Leitura atual
Schneider aborda três tramas que se alternam nos capítulos durante a leitura: o cárcere de Raul, uma tentativa de sequestro e a busca da mãe do protagonista. Mas quero me ater aos dias de tortura da personagem principal, em que a pena do autor está mais precisa e bem desenvolvida como retrato dos anos conturbados da ditatura militar. Nela estão as ameaças, a violência, os mecanismos psicológicos e físicos de submeter a vítima aos mais deploráveis eventos desumanos da história do século 20.

As divagações de Raul muitas vezes são confundidas pelas observações e relatos da narrativa. Não estamos diante do relato pessoal, particular, mas da história, dos documentos, das informações, dos sobreviventes. São formas de viabilizar uma reflexão de um recorte político e social que não se deve repetir, mesmo que muitas vozes, antes nos armários ou guardados em cofres, queiram reverberar no Brasil atual.

Setenta é uma obra que poderá deixar o leitor ou a leitora em estado de choque. A dureza de observar as violências às quais Raul é submetido traz a identificação com relatos das pessoas que foram torturadas durante a ditatura. Assim como as precariedades e falta de informação — ou ainda, radicalismo ideológico dos poderes — a transformar o cotidiano em medo, uma mancha sangrenta na história. Uma leitura que dialoga com o momento atual, em que torturadores são exaltados — até mesmo homenageados —, manifestantes pedem a volta dos militares no governo, jovens são chicoteados e até mortos por seguranças, e tiros são soluções para o silêncio do oprimido. Enquanto havia luz na final da Copa de 70, havia violência e opressão nos porões escuros no país da seleção campeã daquele ano. A pergunta do começo ainda ecoa. De quais anos são aquelas frases? A História mostrando suas armas.

Setenta
Henrique Schneider
Não Editora
160 págs.
Henrique Schneider
Nasceu em Novo Hamburgo (RS), em 1963. Advogado e escritor, possui diversos livros publicados — entre eles, O grito dos mudos (1989) e Contramão (2007). O romance Setenta foi o vencedor do Prêmio Paraná de Literatura em 2017.
Jorge Ialanji Filholini

É autor de Somos mais limpos pela manhã (Demônio Negro, 2016), finalista do Prêmio Jabuti, e Somente nos cinemas (Ateliê Editorial, 2019).

Rascunho