A palavra é a coisa. A coisa, na verdade, são as coisas. As coisas respondem por vários nomes lindos, e também por nomes esdrúxulos. Os nomes lindos são reservados às coisas das quais não podemos falar senão em eufemismos: o erotismo e a erotomania; a lascívia e a luxúria, a volúpia e o venéreo, o pudor e o prazer, o onanismo e o obsceno; enfim, a carne, o coito e seus filhos: Jezebel, Messalina, Dalida, se forem meninas, Don Juan, Casanova e Ricardão, se forem meninos. Os nomes esdrúxulos são conhecidos e usados por todos, especialmente quando se faz a coisa. Se todas essas palavras abandonassem os dicionários e fossem morar num reino mágico onde não são chamadas de pejorativas, informais, vulgares, palavrões e tabuísmo (esse sim, um verdadeiro palavrão), esse reino teria um monarca absoluto e infalível, Alberto Moravia.
Nascido Alberto Pincherle em Roma no ano de 1907, adotou como pseudônimo o sobrenome da avó materna. Uma forma grave de tuberculose na adolescência afeta seus ossos, roubando-lhe cinco anos da juventude. O jovem Alberto conhece o mundo pelos livros e, com vinte e dois anos, publica seu romance de estreia, Os indiferentes (1929), no qual Moravia expõe a hipocrisia e a falta de escrúpulos de uma burguesia escrava das convenções sociais. O romance, tido como o primeiro do existencialismo italiano, foi publicado pela editora milanesa Alpes, dirigida por Arnaldo Mussolini, irmão do ditador a quem Moravia creditaria o maior mal da sua vida, junto à doença na juventude, o fascismo.
Crítico social ferrenho e de origem judia, Alberto Moravia é declarado persona non grata pelo governo fascista, depois da guerra começa a escrever roteiros para filmes e vê seus O desprezo (1954) e Os indiferentes adaptados ao cinema por Jean-Luc Godard e Francesco Maselli em 1963 e 1964, respectivamente.
A coisa e outras coisas
Publicado originalmente em 1983 como La cosa e altri racconti, o livro é uma obra da velhice de Moravia, mas de um momento particular de sua velhice: depois de fraturar o fêmur num acidente de automóvel, se viu preso a uma cama outra vez, e por três meses foi transportado de volta à juventude, desse período e desse acontecimento é que nascem A coisa e os dezenove contos que o acompanham, um verdadeiro catálogo do sexo e do desejo, sempre em situações limítrofes.
Diz-se que é nos limites em que as identidades se impõem com maior clareza — não no universo moraviano, aqui vemos o diabo contar como se apaixonou por um pedófilo, uma enfermeira tão fiel aos princípios da profissão que só masturba os pacientes por cima do lençol e um professor que se desespera sem saber se vai abrir a porta para sua amante ou para a filha — ambas com o mesmo nome.
É um erotismo pós-freudiano, separado do horror moralista e do hedonismo vulgar. É complexo, difuso e misterioso. Ainda que alguns elementos lembrem os contos menos ferinos de Sade, como A flor da castanheira e O corno de si próprio, a própria matéria aqui é diferente.
No conto epônimo, por exemplo, Ludovica escreve uma carta à sua amante, contando sobre a visita à Diana, amiga e amante da juventude. Lá ela encontra uma figura emaciada no lugar da beldade de outrora, e entende a dinâmica presente. Margherita, amante de Diana, faz com que ela faça a coisa com um pônei:
O que eu chamo de “a coisa” não é tanto ele, mas o que eu e Margherita fazemos com ele. De resto, sobre ele eu deveria dizer como certas mulheres: meu namorado, meu homem. Sim, pois como Margherita não para de me repetir, não há nenhuma diferença entre ele e um homem, nenhuma mesmo […] exceto pela grossura que, no entanto, segundo Margherita, não é um defeito, aliás, em certos momentos é uma vantagem.
Ludovica recebe avanços de Margherita, que ameaça sacrificar o animal se Diana não fizer a coisa com ele. Seria fácil dizer que o texto é uma grotesca representação da zoofilia, e é, mas existe outro nível, o do sadismo, e não o sadismo de “um tapinha não dói”. Margherita sente prazer em desumanizar sua parceira, em vê-la fazendo sexo com um cavalo, por fazer isso sem ter de tocar um dedo nela, sente prazer, sobretudo, pelo poder que suas palavras têm.
É emblemático que esse seja o conto inicial do livro, o tema se repete, também, em O diabo não pode salvar o mundo, em que um cientista faz um pacto com o demo para ter tudo o que quiser, e este homem com tendências pedófilas, apesar de décadas de tentação pelo cramunhão, sente ainda mais atração pelo sucesso, sua resistência é tão grande que nosso demônio narrador se apaixona por ele e se converte em diaba para fazer sexo, mas o diabo não pode realizar seus próprios desejos, e evanesce numa nuvem de fumaça. Esse amor fugidio ressurge em A mulher da capa preta, em que um viúvo encontra uma mulher semelhante em tudo à esposa morta, não fazem sexo porque ela também perdeu o marido recentemente e ele se masturba na sacada:
Então pensa que fez amor não mais com uma mulher de carne e osso, mas com uma coisa infinitamente mais real, ainda que incorpórea.
O estilo dos textos é delicioso, mas não são fáceis. Moravia vai aos confins do desejo, sem cair num moralismo barato ou erotismo de banca de jornal, e faz de nós seus cúmplices, voyeurs, nós que também sentimos prazer com o poder da palavra.
Seleção e tradução
Esta é a segunda edição de A coisa e outros contos publicada no Brasil, a primeira é a de 1986, com tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, pela Difel.
A seleção dos contos na edição de 2024 — são seis a menos que o original e a tradução anterior — ficou a cargo de Eliane Robert Moraes, professora da Universidade de São Paulo. O critério de escolha foi justamente o erotismo, objeto central da coleção Sete Chaves, e Havia um cesto no Lungotevere, Um horrível bloqueio da memória, Ouço sempre em sonho passos na escada, O trovão revelador, Há uma bomba N para as formigas também e O passeio do olheiro ficaram de fora por não tratarem de erotismo.
Já a difícil tarefa de traduzir Moravia ficou com Maurício Santana Dias, também professor da Universidade de São Paulo e tradutor universal da literatura italiana, que já verteu de Dante a Elena Ferrante. O texto é extremamente fluido. A tradução atual supera a dupla formada por Bernardini e Andrade, responsáveis pela tradução de grande parte da literatura italiana e russa no Brasil. Uma breve amostra é este trecho do conto A mulher da capa preta:
Cheio de alegria, ele se aproxima, tira o membro para fora das calças, prepara-se para a penetração. Desilusão! As nádegas e as coxas da moça surgem fechadas e como que moldadas num invólucro branco e opaco, lá onde ele esperava encontrar o sexo, só acabou vendo o tecido esticado e hermético de uma cinta calça. (1986)
Cheio de alegria, ele se aproxima, começa a tirar o pau da calça e se prepara para a penetração. Decepção! As nádegas e as coxas da mulher parecem fechadas, como fundidas em um invólucro branco e opaco; ali onde ele esperava encontrar o sexo, não vê senão o tecido esticado e hermético de uma bainha. (2024)
Além de uma alteração da colocação pronominal que atualiza a prosódia do texto em outras partes, Santana Dias faz duas escolhas bem diferentes de Bernardini e Andrade, a dizer, pau e bainha. Aparentemente pau é uma traição do original membro, mas aqui, assim como em “vê que o pau agora lateja em estado de ereção completa, rígido e oblíquo” funciona muito melhor que o malemolente “membro”.
A segunda escolha que eu gostaria de comentar é bainha, guaina em italiano. A solução mais óbvia seria escolher a palavra cinta-liga, e aqui todos saem perdendo. No entanto, um exame mais detalhado do trecho, e a descrição toda acontece no plano onírico, mostra que nosso protagonista estava buscando uma fenda, ou ferida, específica, a da esposa morta, no sonho ele encontra uma mulher que corresponde em tudo a ela e se decepciona ao encontrar uma guaina, que ele tem de abrir com um canivete. Ora, não é preciso ser versado em Freud para entender que o canivete é uma imagem para o falo e que a tal guaina é uma vulva simbólica. Acontece que guaina é uma das — entre dezenas — palavras italianas para vagina. Então coloca-se um jogo muito claro: cinta-liga/vagina. Enquanto os tradutores anteriores apagam esse trocadilho, Santana Dias encontra uma palavra em português que resolve os três problemas, pois a bainha pode ser a cinta-liga, a vagina e o estojo onde se guarda um canivete.
Ao final do livro encontramos um belo ensaio da organizadora da coleção, um ensaio convidativo, mas que não se preocupa em explicar ou esgotar os temas do livro.
Afinal, no erotismo — como no humor — quanto mais se explica, menos se goza.
Para Moravia a coisa é a palavra, palavra que liberta e aprisiona, a essência absoluta, força primitiva que desafia a razão. Seu erotismo é um desafio ao prazer e à dor, onde são testados limites do desejo. O erotismo absoluto, sem filtros, sem moral. Desejo que se impõe, bruto e fatal. Aqui imperam o poder, o prazer e a dor, entrelaçados numa dança mortal.