Batalhas no coração do Brasil

"A cidade das aves", de Tereza Andrade, expõe conflitos entre indígenas, colonos e os poderosos num país em formação
Tereza Andrade, autora de “A cidade das aves”
01/04/2025

No início de A cidade das aves, a narradora nos revela:

Nos últimos dias de agosto, de um ano que não era de todo ruim, visitei o vale do Paranapanema e acordei para ver o sol nascer. […] fui invadida pelo desejo de sondar a capacidade humana de destruir coisas boas.

A seguir, com a habilidade de inventariar sua terra de origem, ela nos brinda com a linguagem, talvez a única prova de que o livro se trata mesmo de um romance:

Contemplei o olho do céu que se abriria no abissal precipício onde as palavras vagueiam. O firmamento aqui é abaulado — extenso e desimpedido, ainda assim, parece próximo. Lentamente o azul se firmou, tingiu-se de nuvens rabo-de-galo, e eles cantaram. Inspirei o frescor para que ele caminhasse dentro de mim e me deleitei nesse momento tão frágil que é o alvorecer. […] Esboços ganharam contornos. São as mangueiras de cabelos rosados perfumando o ar, jabuticabeiras em escadas de galhos que se acariciam com mãos e pés — hoje nem sei se ainda se lembram de mim.

Seguindo esses rastros, o romance vai nomeando não apenas o percurso humano no seio da natureza, mas também tudo o que ela pode nos oferecer.

A cidade das aves é um livro dividido em três partes: A terra extasiada, A terra devastada e A terra extenuada. Em cada uma delas, a autora aborda a ocupação do solo no extremo oeste de São Paulo, onde se encontram os estados de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul, com o rio Paranapanema desaguando no rio Paraná. Em cada uma dessas partes, privilegia-se um enfoque diferente: ora de admiração e êxtase (como demonstra o trecho acima), ora de preocupação com a ganância dos seres humanos e, sobretudo, dos poderosos, e, finalmente, de constatação sobre o resultado proporcionado pela devastação desenfreada.

Nós, que habitamos cidades dotadas, em sua maior parte, da infraestrutura necessária para a vida cotidiana, muitas vezes esquecemos como tudo começou. Passa despercebido o trabalho árduo dos primeiros colonos, atividades que levaram muitos à exaustão e ceifaram incontáveis vidas, em sua maioria prematuramente. Tereza Andrade parte em busca desse começo, tentando recuperar a história que se entrelaça à ocupação da terra. Se hoje reclamamos da violência que se expande por praticamente todas as cidades brasileiras, sobretudo as de porte médio e grande, e exigimos políticas públicas que a atenuem ou desenvolvam soluções eficazes, evitamos lembrar da violência empreendida pelos colonizadores, nossos antepassados, que iniciaram a ocupação do solo brasileiro com rastros de mortes, devastação e genocídio.

Conflitos
Estudando, inicialmente, como os habitantes originários foram desalojados de suas terras e como estas foram transferidas de modo fraudulento para o Estado e para os primeiros ocupantes, a autora expõe os conflitos entre indígenas, colonos e os poderosos vindos da capital ou de outras localidades. A narradora percorre praticamente dois séculos de ocupação, privilegiando o final do século 19 e todo o século 20, incluindo e resgatando também a história de sua linhagem familiar até chegar à sua própria existência. Acrescentam-se, nesse contexto, os conflitos gerados pela imigração — em especial a italiana —, cujos recém-chegados, muitas vezes, foram enganados pelas autoridades em relação às promessas feitas quando ainda estavam em seus países de origem.

O romance é rico em descrições, começando pela geografia local e pela fauna e flora, apresentadas com riqueza de detalhes, inclusive estão presentes nomes de árvores e animais desconhecidos pela maior parte dos brasileiros urbanos do século 21. Destaca-se o uso de um vocabulário oriundo da natureza local, com a nomenclatura de plantas e suas subdivisões, bem como a relação entre o homem e a terra em uma época em que ferramentas e maquinários ainda eram escassos. A narrativa incorpora o conhecimento tanto da cultura indígena quanto do homem e da mulher camponesa sobre a propriedade e a utilidade de cada planta, além de referências à indústria farmacêutica e como ela se apropriou desse saber para enriquecer estrangeiros.

No que se refere à linhagem familiar, a narradora empreende uma busca quase proustiana, recuperando a árvore genealógica que a originou, apresentando as características de cada antepassado, tanto do lado materno quanto do paterno: o que faziam, o que possuíam, como exploraram a terra ou como foram ludibriados pelos poderosos. Estão presentes também os conflitos entre as famílias, casamentos e batizados, mortes e enterros. E a lembrança, às vezes carregada de melancolia, dos seres queridos e dos momentos que não se desejam esquecer. Um universo de filhos e filhas, netos e bisnetos é apresentado ao leitor, sublinhando-se como se vivia em cada época e quais eram os recursos disponíveis, sobretudo escassos em comparação à facilidade de acesso que temos hoje.

A escritora atende às expectativas, empregando uma linguagem segura e capaz de abarcar tantas histórias, além de numerosos eventos históricos, geográficos e familiares. Além disso, há referências aos momentos políticos de cada período, incluindo intentos militares, movimentos tenentistas, a formação de colunas que percorreram o interior de São Paulo, passando pela região e, como não poderia deixar de acontecer, há a referência aos governos militares instaurados a partir de abril de 1964, extremamente nefastos, sobretudo, aos pequenos e médios agricultores, como ela pôde constatar na própria vida familiar.

Trata-se de um livro que precisa ser lido com calma, distante de todo o aparato tecnológico que nos cerca, como celulares e redes sociais. É uma obra que permite ao leitor resgatar o prazer da literatura, proporcionando uma experiência difícil de ser encontrada de outro modo. Outro ponto fundamental revelado pelo livro é a importância das palavras, pois, em um mundo saturado por imagens, muitas vezes pensamos que podemos prescindir dessas mesmas palavras. No entanto, a riqueza, o detalhamento e a beleza apresentados pela narrativa não podem ser transmitidos por outro meio.

Um livro deve ser avaliado pelo seu valor intrínseco, pelo tema que aborda em relação à realidade do período estudado e em comparação às obras semelhantes que trilham o mesmo caminho. A cidade das aves é um livro muito especial, talvez uma obra de uma vida inteira porque, além de satisfazer plenamente a estes tópicos, dialoga com um dos principais problemas da atualidade, cuja solução nos é difícil obter: o aquecimento global ou a reação cada vez mais violenta da Natureza devido às ações nefastas praticadas por nós, seres humanos, exímios em destruir ou alterar os princípios básicos da existência.

A autora tece com perfeição todo o ciclo dessa Natureza, desde a época dos índios Kaingang, momento em que estes conheciam o papel de cada ser e os respeitavam plenamente, sendo ele árvore, mato rasteiro ou bicho, até a etapa em que o homem de ascendência europeia chega com suas armas de destruição e genocídio e começa a fazer modificações que provocará o desaparecimento não apenas dos povos originários, como de várias espécies vegetais e animais, alterando todo o ciclo. Portanto, além da literatura, a importância da obra é de caráter magistral a respeito do entendimento do que é a vida sobre a face da Terra. É certo que Tereza Andrade aborda apenas uma região do Brasil, ou de um estado, mas isso serve de microcosmo para entendermos como tudo funciona, porque tanto a Natureza quanto o ser humano são os mesmos em qualquer lugar.

Volto ao início deste texto, retomando e reiterando as palavras da narradora: “fui invadida pelo desejo de sondar a capacidade humana de destruir coisas boas”. Felizmente, ela possui a literatura, pois essa arte tem o poder de recuperar ou recriar mundos, sejam eles bons ou não. Em caso de constatação negativa, cabe a nós refletirmos sobre o modo de reconstruí-los.

A cidade das aves
Tereza Andrade
Lamparina
422 págs.
Tereza Andrade
É escritora e editora. Graduada em Direito, foi livreira por alguns anos antes de fundar a editora Lamparina, que completou vinte anos em 2024. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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