As linguagens do medo

A equatoriana Mónica Ojeda empresta o tom de histórias de terror escritas na internet para construir um romance estranhamente perturbador
Mónica Ojeda, autora de “Mandíbula”
01/07/2022

Ao fim do romance Mandíbula, no último parágrafo dos agradecimentos e créditos, a equatoriana Mónica Ojeda interrompe os tradicionais obrigados a familiares, amigos e leitores para fazer o seguinte reconhecimento: “E, finalmente, obrigada a todos aqueles que escrevem boas creepypastas e me lembram com seus textos que o medo não é o quê, mas o como”.

Longe de ser apenas um pequeno detalhe, penso que a partir desse trecho é possível propor uma interpretação para o livro de Ojeda. Ao longo da narrativa pode-se perceber interesse no terror e no medo enquanto um modo de enxergar a realidade, neste como do qual se fala nos agradecimentos. Dito de outra forma, poderia colocar que o romance parece ter certa pretensão de nos lembrar, tal como diz a epígrafe de Julia Kristeva, que “todo exercício da palavra é uma linguagem do medo”.

O enredo do romance divide-se principalmente entre dois focos: de um lado temos Fernanda, Annelise e seu grupo de amigas. São estudantes de um colégio bilingue só para meninas ligado à Opus Dei, o Delta-high-school-for-girls, e filhas de algumas figuras da elite conservadora. A mãe de Fernanda, por exemplo, é uma advogada que se dedica a campanhas contra o aborto e os direitos das mulheres. Essas meninas recentemente descobriram um prazer enorme em se encontrar nas tardes depois da escola em um prédio abandonado para que pudessem fazer o que realmente queriam, que era estar longe dos olhos alheios. Do outro lado, há Miss Clara, a professora de inglês recém-chegada ao Delta que teve de mudar de emprego após ter sido atacadas por duas alunas antigas.

Jogo de inversões
O livro começa com Fernanda acordando e se dando conta de que foi sequestrada por Miss Clara. O foco da narrativa, porém, é dedicado principalmente aos dias que antecedem essa ação. O sequestro em si, que não é narrado em nenhum momento, parece existir como uma dúvida direcionada ao leitor. Um desenlace, que à primeira vista não parece se encaixar com a história sendo narrada, e que obriga o leitor a passar as páginas um pouco mais rapidamente buscando entender o que aconteceu. O que afinal levou essa professora de inglês a sequestrar sua aluna?

Nesses dias que antecedem o sequestro, a questão do medo que habita não o quê, mas o como aparece em vários momentos. Miss Clara é uma personagem que deixa isso muito evidente. Para ela, as situações mais simples e banais tornaram-se as mais assustadoras, causando severas crises de pânico: entrevistas de emprego, encontrar seus novos colegas de trabalho, o momento em que as alunas começam a chegar à escola, apresentar-se pela primeira vez para uma turma de Ensino Médio. Ao contrário da maioria dos agressores em romances centrados em torno de um sequestro, a personagem parece ser alguém para quem a própria existência mundana tornou-se aterrorizante.

Esse jogo de inversões é também um elemento muito central na vida de Fernanda e suas amigas. A adolescência, aliás, é um momento em que esses temores que parecem surgir quase do nada de maneira muito intensa são bastante comuns. Mandíbula foi um dos livros que me trouxe a memória mais tátil de como é o mundo quando se tem 16 anos. Embora as meninas se encontrem todas as tardes em um prédio abandonado, no qual se fazem desafios por vezes bastante perigosos — como pular de uma só vez um lance inteiro da escadaria mal construída do prédio —, o que de fato provoca o medo e pavor no grupo são acontecimentos que poderiam passar despercebidos à primeira vista.

Um mundo de terror
O caso emblemático disso são as histórias contadas por uma das amigas de Fernanda, Annelise. Ela, em um certo paralelo com Miss Clara, também tem vocação para tornar as coisas assustadoras. No entanto, Annelise aparentemente não sente de maneira tão direta o medo que é capaz de enxergar no mundo, mas o sublima em histórias que vão se transformando e incorporando diferentes elementos da vida do grupo.

Annelise tem um talento para reorganizar o mundo em histórias de terror. Isto é especialmente perceptível a partir do momento que suas histórias passam a ser ambientadas em torno da figura do Deus-Branco — uma deidade imaginada por Annelise a partir das paredes brancas do quarto em que as meninas se reuniam para contar as histórias enquanto permaneciam de olhos fechados.

A partir do olhar de Anne, a própria ausência de detalhes do quarto torna-se a característica principal do mundo insólito que ela narra obsessivamente. Mais tarde, a brancura do deus também será assimilada à brancura do leite materno e dos vários vazios que as cercam. A relação entre mães e filhas em Mandíbula é quase sempre de medo.

A paixão de Annelise por histórias de terror leva ela a postar algumas das histórias de seu deus particular na internet, em fóruns de creepypastas, sob o pseudônimo de WhiteGod001. Trata-se de um gênero da escrita de terror pensadas para a internet, que tem como objetivo serem facilmente copiadas e coladas. O nome é um trocadilho que mistura copy-paste (copiar-colar) com o adjetivo creepy, que pode ser traduzido como arrepiante.

Esse terror do estranho-familiar que Ojeda busca elaborar ao longo de seu romance são uma das marcas do gênero das creepypastas. Como a maioria delas tem que ser bem curta, muitas das melhores se aproveitam de uma situação que poderia parecer familiar à primeira vista, mas que vão se tornando crescentemente estranhas e perturbadoras. Neste sentido, o agradecimento a todos aqueles que escrevem boas creepypastas ao fim do livro me parece bastante justo. Dentre outras referências, elas parecem ter fornecido a Ojeda uma ferramenta para que pudesse escrever um romance como Mandíbula.

Mandíbula
Mónica Ojeda
Trad.: Silvia Massimini Felix
Autêntica Contemporânea
302 págs.
Mónica Ojeda
Nasceu em Guayaquil (Equador) em 1988. Mandíbula é seu terceiro romance. No Brasil, História do leite (Jabuticaba) também está publicado.
José Eduardo Landim

É formado em História pela UFRJ e mestrando em literatura pela PUC-Rio.

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