As cartas de Clarice

Resenha do livro "Minhas queridas", de Clarice Lispector
Clarice Lispector, autora de “Água viva”
01/11/2009

Minhas queridas é uma coletânea de cartas escritas por Clarice Lispector às suas irmãs. Como esposa de diplomata, ela passou parte de sua vida distante do Brasil. A maioria das cartas foi escrita no exterior, onde a escritora viveu alegrias e tristezas, curtiu as saudades de seu país, para onde, insistia, desejava voltar e permanecer.

Cartas, em certo sentido, podem ser consideradas monólogos, já que são produzidas na ausência do interlocutor. São falas a um ouvinte imaginário, certamente idealizado, e condensam a alma dos que as produzem. Ou apenas a pincelam.

Esse gênero dá uma liberdade infinita à espontaneidade. Mas, para usufruir de tal liberdade é necessário que o escritor domine a linguagem, utilize-a no sentido da maior expressividade possível.

Estamos diante de uma escritora no sentido mais completo da palavra: sensível, competente no manejo da linguagem, aguda na crítica, seja essa, à literatura, à sociedade, a si mesma e ao seu trabalho.

Penso que um artista que não possui ou não desenvolveu tais qualidades não está pronto para a produção artística. Infelizmente, o exagero de livros publicados e a duvidosa qualidade dos mesmos nos causam tristeza e desânimo e, quiçá, desencorajam os verdadeiros artistas que vivem às margens dos grupelhos que dominam os espaços midiáticos.

As cartas de Clarice são um documento precioso, pois refletem vivências, pensamentos, desejos, ações daquela que tinha como maior objetivo de vida ser escritora. É um conjunto maciço de significados. E vêm dar às prateleiras das livrarias um brilho intenso, delicado, imortal.

Clarice pensa. Clarice questiona. Clarice sente. Clarice existe e cria. Clarice cria Clarice e recria o mundo. Essa é função do artista. Alguns dirão que a arte não tem função. Mas é apenas uma questão de verborréia. A função da arte é vital: ela nos salva da mediocridade. A escritora reclama às irmãs da falta de cartas e respostas; pede que escrevam mais freqüentemente e mais longamente. A dor da solidão é aplacada pela correspondência. Para quem conhece o poder curador da escrita é fácil de compreender a insistência de Clarice para que as irmãs escrevam mais e mais.

Não é um livro para ser lido numa única respiração, pois as cartas carregam também as trivialidades da vida, o cotidiano — o tempo parado da vida, a mesmice de que também somos feitos. Nesse sentido, as cartas são cansativas. Felizmente, num bom número delas encontraremos as preciosidades da artista, daquela que investiga a própria existência, que critica e se critica, que filosofa.

As cartas não refletem a vida pessoal da escritora. As coisas do casamento são tocadas muito superficialmente. Temos descrições de lugares e culturas, mas nada planejado, intencionado — são conversas sobre o dia-a-dia de uma pessoa cuja rotina inclui mudanças de paisagens, novas adaptações, ou apenas tolerâncias às imposições do destino.

Clarice é muito verdadeira e profunda quando fala de si mesma. O trabalho, no caso, a escrita, era essencial à sua sobrevivência espiritual, como podemos atestar na passagem abaixo:

Querida, quem faz arte sofre como os outros, só que tem um meio de expressão. Se você vê por mim está vendo errado. Eu sofro com o trabalho não é pelo trabalho só, é que além do mais não sou normal, sou desadatada, tenho uma natureza difícil e sombria. Mas eu mesma, com esse temperamento e essa anormalidade de todos os instantes — se eu não trabalhasse estaria pior. Às vezes penso que deveria deixar de escrever, mas vejo também que trabalhar é minha moralidade, a minha única moralidade. Quer dizer, se eu não trabalhasse, eu seria pior porque o que me põe num caminho é a esperança de trabalhar.

Clarice desejava a perfeição. E que verdadeiro artista não o deseja? Suas cartas se adensam à medida que o tempo passa e a saudade aumenta. O cotidiano se mantém; se repete em todas elas, mas a reflexão sobre si mesma e sua literatura se aprofundam, se aprimoram. A escritora vive uma solidão necessária à sua atividade poética. Se o corpo está presente nas coisas, o desejo está na literatura. Cito mais uma passagem emocionante dessa artista que nos dá alento e orgulho.

Eu infelizmente sou um espírito cansado e “blazé”, pouca coisa me entusiasma, eu bebi demais na literatura. Mas como deixar por exemplo de ler e escrever por um tempo? No caminho em que eu entrei eu tenho que aprofundar ao máximo até meus defeitos, quanto mais tempo passar mais enfronhada eu deverei estar no que eu faço — só assim conseguirei um arremedo de perfeição. Só tenho na verdade interesse e esperança em certas pessoas, em conhecer certas pessoas. O mundo me parece uma coisa vasta demais e sem síntese possível.

Essas palavras de Clarice são um alento, pois eu também só tenho interesse e esperança em certos artistas, naqueles que se cobram o arremedo da perfeição, aqueles que não se consideram prontos e acabados, que intuem a arte como um processo contínuo e infinito de busca, encontros e frustrações. Como a vida.

Minhas queridas
Clarice Lispector
Rocco
328 págs.
Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

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