Ao nível do chão

Histórias absurdas de Rafael Sperling desnudam comportamentos cotidianos
Rafael Sperling, autor de “Um homem burro morreu”
30/01/2015

O cirurgião é exibido. Montou no meio da avenida Paulista a mesa de cirurgia e mandou cercar com vidro. Iluminou tudo adequadamente, para ver e ser visto. Mandou deitar o sujeito. O sujeito é todo mundo. E quando o público se aproxima — o público é cada pessoa —, tem a surpresa, o asco, a raiva, o medo e o que mais se pode sentir ao enxergar a si mesmo ali deitado, aberto, sangrando muito, exposto, os órgãos sendo retirados um a um, jogados em cantos branquinhos, às vezes esbarrando e criando o rastro cor de vinho no vidro transparente do devassado centro cirúrgico.

Rafael Sperling se apresenta como escritor, ele é o cirurgião maluco. Ou não é maluco, é o extirpador da verdade, bisturis nas mãos, do que mora atrás de cortinas, debaixo dos panos, dentro dos aposentos mais fechados, dos desejos e pensamentos mais íntimos. Um homem burro morreu é a sala pública de cirurgia. A sociedade de entranhas remexidas está em cada um dos 28 textos que compõem a obra (27 contos mais um texto final sem título).

Mas como se o cirurgião exibido fizesse umas mímicas engraçadas antes de cortar as veias do coração, o livro é capaz de arrancar riso. Um riso nervoso é o que tende a escapar. Porque doído. É violento. Esse contentamento provável do leitor vem de esbarrar em situações absurdas que depois desnudam comportamentos muito comuns, caricaturados. Aí o sorriso logo se desfaz, pela identificação inevitável com a realidade.

Bombas e metralhadoras
Tudo indica que seja uma obra bem distante da unanimidade. A violência, que é ao mesmo tempo explícita e metafórica (bem mais metafórica, com certeza, apesar de tão explícita), vai espantar fígados mais sensíveis. Foi escrito pela necessidade de existir, não para agradar — é o que sugerem sua temática e sua forma, como motivações principais.

Os contos são construídos com base no exagero. Esse exagero às vezes trabalhado com a repetição, como no primeiro texto, Caetano Veloso se prepara para atravessar a rua, e também no muito significativo Jesus Cristo espancando Hitler. Outras vezes o exagero é do tamanho ou quantidade das coisas, como Uma xícara de chá revela: “Derramei a água numa xícara de chá e dentro dela pus 250.000 quilos de chá preto, pois gosto do meu chá bem forte”. Assim, vai minando o equilíbrio do leitor, para que desabe no texto como num golpe de judô e enxergue as coisas ao nível do chão, onde são jogadas pelo autor as questões da humanidade.

O conto da xícara de chá trata dos casamentos. Caetano Veloso é acompanhado por uma espécie de repórter de celebridades, que narra tudo o que ele faz, repete perguntas tolas, ironiza a sociedade do espetáculo. Um homem briga violentamente numa fila de pão — a impaciência com o outro, o descaso. Há estupros de mulheres e homens, banalização do sexo, inclusive com personagens crianças. E muita escatologia. Come-se merda e joga-se cocô nas cabeças das pessoas como se trocam cartões de visitas. Sempre com profunda ironia.

O tom dos contos lembra meninos conversando sobre videogames: “Hahaha! Arranquei a cabeça daquele homem! Olha, olha, atropelei a velhinha atravessando a rua!”. Ou os pensamentos rudes que invadem cabeças atrás de volantes no trânsito cada vez mais hostil das cidades, na escuta das intermináveis ligações para reclamar de serviços, a cada sapo engolido nos ambientes corporativos de trabalho.

Os personagens fazem o que vaza desses pensamentos terríveis, vingativos: dão socos que explodem o cérebro dos oponentes, ou jogam bombas, usam metralhadoras, bastões de ferro, tudo do pior; armas surgem do nada, como em desenhos animados.

Provocação à literatura
Pode-se falar das piores coisas com lirismo. Mas não há lirismo nesses contos. E não contêm palavras além do uso muito comum. Aliás, os textos são descomplicados, mimetizando construções infantis de pensamento, o que se contrapõe à violência das cenas, criando extremos verdadeiramente incômodos — é justamente aí que mora o grande valor desse livro. Eis o gancho para voltar a citar Jesus Cristo espancando Hitler.

No décimo-quarto conto, Jesus Cristo tortura Hitler das formas mais vis, como talvez fizesse um soldado de Hitler com Jesus Cristo num campo de concentração nazista — como, com certeza, de diversas maneiras, fizeram soldados de Hitler contra milhões de judeus. O Jesus de Sperling chama milhares de pessoas a ajudá-lo nessa missão. Até que Hitler é pregado na cruz, “para que possamos, sempre que precisarmos, pensar em Hitler e em seu sofrimento, e possamos, assim, ficar um pouco mais felizes e reconfortados”. O texto é carregado de sentidos, cada leitor pode tirar seu punhado.

Famosos emprestam-se às prosas como metáforas: Dante, Kafka, além de Caetano Veloso. Até Branca de Neve entra na roda. Ela e o príncipe vivem um inferno que faria tremer os irmãos Grimm. Mas, no fim, depois de matarem a rainha má, vivem felizes para sempre.

Existe uma provocação (velada?) à própria literatura: a escolha pelas narrativas absurdas, com linguagem simples e muita repetição de palavras. Mas é óbvia a habilidade do autor em construir complexidade justamente a partir desses elementos crus. Gostar ou não é outra coisa.

O texto final, sem título, é também um conto, e é nele que está mais clara a provocação à literatura. “Ok. Eu vou fazer um texto bem bonito. Eu aprendi que as pessoas gostam de coisas bem bonitas, então farei um texto bem bonito.” Não fez, e de propósito. Como será castigado por isso?

Em vão
O título do livro vem de um dos contos, o vigésimo-sétimo. O homem burro tenta ligar uma torradeira e não consegue. Fica tão frustrado, tão triste, que morre. A esposa o encontra no chão da cozinha. “A torradeira estava desligada da tomada”, ela diz. “Mas que burro.”

A obra, diferentemente do que costuma acontecer, chegou ao resenhista com dedicatória do autor: “André, espero que a morte deste homem burro não tenha sido em vão”. Gostando-se ou não de como essas histórias estão contadas, com certeza não foram publicadas em vão. O personagem morreu para que possamos, assim, viver bem menos felizes e reconfortados. Por isso já valeu.

Um homem burro morreu
Rafael Sperling
Oito e meio
130 págs.
Rafael Sperling
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

Rascunho